Excelentíssimo cadáver

Douglas Attila Marcelino

  • Mais do que meras solenidades, os funerais de presidentes são cerimônias que dizem muito sobre a história política do Brasil. Diferentemente dos enterros de chefes de Estado ou figuras ilustres da Primeira República (1889-1930), certos rituais fúnebres de presidentes das últimas décadas se transformaram em verdadeiros espetáculos da política. A ampla cobertura feita pelos meios de comunicação de massa mudaria a forma como o Brasil enxergava o enterro de seus líderes. Em determinados casos, os setores populares tomaram as rédeas dos cortejos fúnebres e procuraram ditar por si próprios os rumos dos acontecimentos. Em algumas ocasiões, a suntuosidade e o caráter solene que supostamente deveriam inspirar essas cerimônias acabaram sendo substituídos por verdadeiras festas cívicas, com farta utilização dos símbolos nacionais por parte das pessoas ali presentes. Tais eventos serviram à construção de mitos em torno do morto ilustre, como aconteceu no episódio dos funerais de Tancredo Neves, em 1985. Antes disso, o suicídio de Getulio Vargas, em 1954, e o falecimento do ex-presidente Juscelino Kubitschek, em 1976, já haviam levado verdadeiras multidões às ruas: o povo se unira para lamentar a morte e exaltar figuras com as quais havia desenvolvido fortes laços afetivos.

    No dia 24 de agosto de 1954, horas depois do disparo com o qual Getulio Vargas selou sua vida, a capital da República tornou-se palco de intensas agitações por conta do suicídio do presidente. Muitas pessoas, ao saberem da morte de Vargas, foram imediatamente ao Palácio do Catete, onde permaneceram horas em busca da oportunidade de ver o corpo. As ruas do Rio de Janeiro próximas à sede do governo também foram tomadas por populares desde cedo. À tarde ocorreram distúrbios mais violentos, quando centenas de pessoas, armadas com pedaços de madeira e dando vivas ao presidente morto, percorreram as ruas da cidade rasgando cartazes de propaganda dos candidatos antigetulistas. Grupos da Polícia, do Exército e da Aeronáutica foram chamados para conter a população, mas, ainda assim, houve a depredação de edifícios, como o da Esso, além das ameaças que pairaram sobre a sede do jornal Tribuna da Imprensa, da Rádio Globo e da Embaixada Americana. Na Praia do Flamengo, quando a notícia da morte de Vargas foi veiculada pelo rádio, carros particulares, táxis e coletivos pararam em plena avenida e seus passageiros, estupefatos, se dirigiram aos passageiros de outros carros em busca de informações, como se não quisessem dar crédito ao que ouviam nos rádios. Outras capitais, como São Paulo, Belo Horizonte e Recife, também foram focos de agitações. As mais graves ocorrências foram verificadas em Porto Alegre, quando a população incendiou dois jornais e uma emissora de rádio identificados como de oposição ao governo Vargas.

    Estatísticas de órgãos de imprensa getulistas, como o jornal Última Hora, calcularam em um milhão de pessoas a multidão que teria passado pelas imediações do Palácio do Catete no dia 25. Dali saiu um enorme cortejo fúnebre em direção ao Aeroporto Santos Dumont. Já a revista Manchete descreveria o acontecimento como “uma das maiores manifestações populares jamais verificadas no Brasil”. As fotografias do período dão conta de uma enorme multidão a percorrer o trajeto em direção ao aeroporto, a partir do qual o corpo de Getulio Vargas seguiu para o sepultamento em São Borja, sua cidade natal.
     

    A marcha em direção ao aeroporto durou cerca de quarenta minutos e foi marcada por um grande número de desmaios e incidentes. Em vários episódios, os populares procuraram ditar os rumos do cortejo fúnebre, como aconteceu na área militar do aeroporto: indiferente aos vários fuzis dos soldados da Aeronáutica que apontavam para o campo de pouso, a multidão arrebatou o caixão da carreta e ingressou no local cantando o Hino Nacional. Em seguida, os restos mortais de Getulio Vargas foram conduzidos para São Borja, onde seriam vistas outras cenas de forte apelo emocional.

  • Episódio semelhante aos funerais de Vargas só aconteceria durante o regime militar, com a morte e o cerimonial fúnebre do ex-presidente Juscelino Kubitschek, em 22 e 23 de agosto de 1976. Vítima de um fatídico acidente na Via Dutra, quando o Opala em que viajava junto ao seu motorista chocou-se com um caminhão, Juscelino ainda detinha uma popularidade que contrastava com os vários anos de ostracismo em que esteve afastado da vida pública pelo regime militar. No dia seguinte à sua morte, cenas de forte carga simbólica seriam vistas nas homenagens que lhe foram prestadas nos cortejos fúnebres do Rio de Janeiro e de Brasília, que também reuniram uma multidão bastante expressiva. As cenas de forte comoção popular, na verdade, já podiam ser percebidas logo depois que as emissoras de rádio começaram a divulgar a notícia do acidente. Muitas pessoas se dirigiram ao Instituto Médico-Legal buscando informações sobre a hora da chegada do corpo do ex-presidente ao Rio de Janeiro.

    Mas foi em torno do edifício da revista Manchete, na Praia do Russel, que ocorreram as cenas mais comoventes. O número de pessoas que participaram do velório foi calculado em cerca de cinco mil. O episódio foi marcado por momentos de grande emoção, uma vez que gritos e choros intermitentes eram ouvidos com freqüência por todo o saguão do edifício da Manchete. Na rua, milhares de acompanhantes cantavam a música preferida do ex-presidente, “Peixe Vivo”, e entoavam os hinos Nacional, da Independência e à Bandeira. O acontecimento durou cerca de dez horas, até que, depois de os populares exigirem carregar o caixão em seus próprios ombros, a procissão saiu em direção ao Aeroporto Santos Dumont. Foram cerca de três quilômetros de caminhada, com freqüentes vivas a JK. Dali, o corpo de Juscelino seguiu para o Aeroporto do Galeão e depois para Brasília, onde um cortejo ainda mais espetacular o esperava. Quando o avião aterrissou na capital, cerca de 30 mil pessoas já aguardavam a chegada dos restos mortais do presidente para fazerem suas homenagens. O cortejo fúnebre foi seguido até a Catedral de Brasília por cerca de quatro mil veículos. Na catedral metropolitana, a cerimônia celebrada pelo arcebispo de Brasília foi interrompida quando centenas de pessoas romperam o cordão policial que a cercava aos gritos de “JK, JK, JK”. Muitas tinham crises de choro. Enquanto autoridades religiosas pediam aos presentes para “não se esquecerem de que ali era a casa de Deus”, uma multidão invadia o templo e as flores das coroas – que se estendiam em tapete do altar até a entrada da catedral – eram atiradas sobre o caixão. Do lado de fora, nem os três choques da Polícia Militar e os três da Polícia Especial, com 500 policiais, conseguiam conter o ímpeto dos populares, que se comprimiam gritando o nome do ex-presidente. Muitas outras cenas comoventes se sucederam no último trajeto do esquife, em direção ao cemitério Campo da Esperança, onde Juscelino foi finalmente sepultado. 

     Nenhuma das cerimônias anteriormente mencionadas atingiu, em termos de presença de populares, a marca do cortejo fúnebre de Tancredo Neves, calculado em cerca de dois milhões de pessoas. Contrastado com a sisudez e a discrição dos funerais dos generais-presidentes da ditadura militar que então se encerrava, o enterro de Tancredo Neves foi marcado por um aumento do caráter de espetáculo, como já ocorrera com os de Vargas e Juscelino. A prolongada agonia do presidente eleito, diariamente transmitida pelos meios de comunicação, certamente serviu para acentuar a dramaticidade que o evento ganhou. Houve cenas inusitadas, como as que antecederam a saída do corpo de São Paulo, quando a população assumiu à força a incumbência de escoltar a urna mortuária que se encontrava sobre o caminhão do Corpo de Bombeiros.

    A multidão que aguardava em frente ao Instituto do Coração se conteve apenas num primeiro momento, passando em seguida a tomar conta de tudo. A seguir, os populares atravessaram as barreiras dos esquemas de segurança, afastando os batedores e ditando, “com sua dor coletiva e sua emoção, seu próprio cerimonial: os carros oficiais foram esquecidos e o caminhão vermelho do Corpo de Bombeiros foi acariciado e protegido”, como descreveu o Jornal do Brasil no dia seguinte. A urna mortuária foi acompanhada por um número imenso de pessoas que, “correndo, andando, cantando, chorando”, a conduziram por mais de dez quilômetros, formando, ainda segundo a revista Manchete, “um cortejo sem precedentes na história do país”. Assim, “nem Getulio Vargas, que deu um tiro no coração em 1954, nem Juscelino Kubitschek, que morreu num acidente de automóvel em 1976, conseguiram reunir multidão tão grande”.

  • Após o cortejo de São Paulo, o corpo de Tancredo Neves seguiu para Brasília, onde cenas semelhantes puderam ser observadas. Vale destacar que sua morte ocorreu no momento que despontava o que muitos intelectuais chamaram de clima de “renovação cívica” ou de “retomada dos símbolos nacionais pelos populares”, conforme já se tinha evidenciado no ano anterior, por conta da campanha pelas eleições diretas para presidente. Agora, mais do que nunca, o ritual de enterro de presidentes assumia novas feições, adquirindo características típicas de uma festa cívica.  Tanto o canto “Um, dois, três, quatro, cinco, mil, Tancredo continua presidente do Brasil!” quanto o uso pouco solene dos símbolos nacionais demonstram o caráter excepcional que também assumiu o cortejo na capital.  

    A cerimônia ganharia também um certo tom de manifestação política contra a ditadura militar. Os protestos perpassaram todo o episódio, assim como tinha acontecido nos funerais de Juscelino Kubitschek. Além das bandeiras do Brasil, que podiam ser observadas tremulando em diversos pontos, e do Hino Nacional, ouvido várias vezes, o cortejo também contou com proclamações mais veementes, feitas em uníssono pelos populares: “O povo, unido, jamais será vencido!”; “O povo, na rua, a luta continua!”.

    Ao longo da caminhada de mais de quatro horas com o corpo de Tancredo Neves, do Aeroporto de Brasília até o Palácio do Planalto, foram freqüentes as cenas de choro convulsivo ou mesmo de desmaios repentinos. Depois de uma cerimônia religiosa no Palácio do Planalto, os restos mortais do presidente eleito seguiram ainda para Minas Gerais, passando pela capital mineira e por sua cidade natal, São João del-Rei. Em Belo Horizonte, a agitação popular provocou tumultos e acidentes em frente ao Palácio da Liberdade, devido ao empurra-empurra das pessoas que queriam ver de perto a urna mortuária. A confusão levou a viúva, Risoleta Neves, a discursar pedindo calma aos presentes, o que aumentou ainda mais a aura de heroína que vinha sendo criada em torno de sua figura (como, aliás, já tinha acontecido com Sarah Kubitschek por ocasião da morte de Juscelino). Em São João del-Rei,  o corpo do presidente eleito ainda passou pelo solar dos Neves, local reservado exclusivamente à família, sendo depois velado na Igreja de São Francisco de Assis, também repleta de populares e de demonstrações de pesar por parte dos são-joanenses. Naquela mesma igreja em que Tancredo Neves foi enterrado, não faltaram outras manifestações de civismo e de esperança na chamada Nova República.

     A morte e os funerais de Tancredo Neves talvez sejam alguns dos melhores exemplos de como esses acontecimentos podem servir para a formação de uma imagem heróica em torno de um determinado personagem. Durante os 39 dias em que o presidente eleito esteve internado no Instituto do Coração, ele já havia sido objeto de diversas representações que o identificavam como uma “síntese das aspirações do povo brasileiro”. Após sua morte, a figura de Tancredo Neves se concretizou como a de um mártir que lutou em favor das instituições republicanas e da consolidação da democracia. Não foi à toa, portanto, que sua imagem foi logo associada à do alferes Tiradentes, principal símbolo da instituição da República no Brasil, ou mesmo à de outros personagens históricos que compõem o panteão dos heróis nacionais. 


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    Na sociedade atual, a memória assume um papel de grande importância, tornando-se objeto de intensas disputas. Questionar o significado que tais acontecimentos adquirem para a construção de uma memória política nacional é fundamental. É nos momentos que se seguem à morte de uma grande personalidade que se acirram as disputas por sua memória. E a morte de Tancredo, assim como aconteceu com Vargas e Juscelino, serviria ao impulso de reescrever a História do Brasil, consolidando uma certa memória política nacional, segundo a qual determinados personagens e eventos figuram como os elementos-chave dentro do longo processo de desenvolvimento da nação brasileira.

    Diferentemente dos casos já mencionados, certos presidentes brasileiros foram enterrados sem provocar qualquer comoção mais efetiva. Isto pôde ser visto particularmente nos funerais de alguns ex-chefes de Estado dos governos militares. No recente enterro do ex-presidente João Baptista Figueiredo, em 26 de dezembro de 1999, não se contavam mais do que 200 pessoas, além dos cerca de 500 militares presentes. Morto no dia anterior, Figueiredo certamente sabia da impossibilidade de qualquer cerimônia consagradora. Na verdade, no momento de sua saída do governo, em janeiro de 1985, ele já tinha gerado polêmica num programa de TV, pedindo que todos os brasileiros o esquecessem.

    A imagem negativa associada a muitos representantes do regime militar fez com que boa parte deles optasse por tentar passar despercebido em seus momentos finais. O esquecimento, nesse caso, valeria mais do que a lembrança: como aconteceu recentemente com Pinochet, a morte deles poderia gerar não só dor, mas também alegria e comemoração para muita gente.

    Douglas Attila Marcelino é doutorando em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde desenvolve a tese “Rituais fúnebres e memórias de presidentes: de Getulio a Tancredo (1954-1985)”.