Fábio Kühn

  • Esta história aconteceu quando eu me preparava para redigir meu projeto de doutorado e estava numa fase de levantamento de fontes, vasculhando arquivos em diversos estados. Numa dessas investidas, dirigi-me à cidade de Laguna, em Santa Catarina, povoação das mais antigas do sul do Brasil, fundada por volta de 1684. Ali eu esperava encontrar fontes que me trouxessem alguma informação sobre a sociedade lagunense do século XVIII, o que poderia me ajudar a compreender quem eram os primeiros povoadores do Continente do Rio Grande, como a região era chamada na época, e objeto da minha futura tese.

    Em 2001, finalmente pude passar alguns dias na pacata cidade histórica catarinense, onde saí “caçando” as fontes notariais que tanto queria encontrar. Ao chegar, fiquei sabendo que o Arquivo Público Municipal tinha sido recém-inaugurado. Instalado em um casarão do século XIX, o arquivo prometia. Mas logo na primeira visita, ao revelar minhas intenções ao funcionário, ele me olhou e disparou antes que eu pudesse reagir: “Meu amigo, veja bem, nós temos aqui alguns jornais que os alunos vêm pesquisar e alguma coisa antiga do século XIX, mas não tem nada sobre o período que te interessa”. Espantado, fui embora e me sentei para tomar um café, pensando em como poderia sair dessa situação.

    No dia seguinte, fui até o Museu Anita Garibaldi, no sobrado onde funcionou a antiga Casa da Câmara. Ali obtive uma informação preciosa: um expressivo acervo documental que estava guardado no depósito do Museu tinha sido enviado para o novo Arquivo Municipal. Quase sem me despedir, fui correndo novamente até o arquivo, onde, desta vez, encontrei outro funcionário, que fumava sossegadamente em meio a uma pilha de papéis. Expliquei o que procurava, e ele me disse: “Olha, sei que chegaram umas caixas com documentos esses dias, mas confesso que não sei bem o que tem ali. Isso não foi ainda classificado e está guardado em um banheiro no fundo daquele corredor”. Perguntei se podia dar uma olhada. Meio a contragosto, ele me autorizou e que eu ficasse à vontade, pois ele tinha que dar uma saída para tomar um cafezinho...

    Sem acreditar totalmente no que estava acontecendo, resolvi aproveitar para vasculhar aquelas caixas amontoadas. Na lateral das caixas havia uma etiqueta que informava o número de cada uma e o período abrangido. Sim, eu tinha encontrado o que buscava: os inventários e testamentos do século XVIII! Originalmente estavam no arquivo do fórum de Laguna, até que fossem transferidos para o Museu, onde ficaram, durante anos, inacessíveis aos pesquisadores, debaixo de uma lona, com a intenção de preservá-los da ação do tempo. Para minha sorte, fui talvez o primeiro pesquisador a poder manuseá-los em cerca de meio século! Estava garantida a pesquisa; pude terminar meu projeto e cursar com sucesso meu doutorado, no qual um dos capítulos da tese se debruçou sobre tais fontes.

     

    Fábio Kühné professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.