- As populações indígenas e afrodescendentes brasileiras atravessaram séculos lidando com silêncios, estereótipos e distorções que ressoavam em salas de aula. Na última década isso vem mudando. Resultado da luta de educadores e das próprias populações tradicionais, a educação escolar diferenciada indígena e quilombola torna-se realidade.Em cada ponto do Brasil, comunidades indígenas vêm desenvolvendo currículos com suas marcas culturais: o estudo da língua materna, a relevância dos saberes dos mais velhos para a ação pedagógica e a vinculação entre o trabalho escolar e a vida social. As escolas indígenas diferenciadas são geralmente multilíngues, e desenvolvem a prática educativa a partir da noção de território educacional ampliado: consideram a relação entre cultura e natureza e também a importância das cosmologias e das práticas culturais na seleção de conteúdos e de abordagens.Muita gente ainda pensa que as populações nativas perdem sua condição ao entrar em contato com outros povos. Trata-se de um preconceito, pois os indígenas mantêm há séculos contatos culturais com outros povos. Ainda assim, existem populações no Brasil que permanecem isoladas ou tiveram recente contato com a cultura ocidental, o que demonstra a complexidade do tema. Cada povo tem seu próprio desafio educacional.Há pelo menos cinco aspectos a considerar para a compreensão da educação escolar indígena: o princípio da reciprocidade, a relação entre natureza e cultura, a ritualística indígena, a ancestralidade e o conhecimento dos mais velhos, o parentesco e a mitologia. Estes elementos estão presentes nas práticas dos educadores, influenciando seus modos de atuar. Os mais velhos vivem a vida escolar para compartilhar sua sabedoria ou a dos ancestrais. É comum que eles participem do Conselho da Escola, influenciando na elaboração do currículo e no planejamento das atividades. A vida social das comunidades muitas vezes define os tempos escolares, como ocorre no período das colheitas, do artesanato ou da pesca, com participação das crianças e jovens em um aprendizado intergeracional.Os educadores são desafiados a abordar assuntos que envolvem os saberes ocidentais em contraste com aqueles das tradições indígenas, garantindo o acesso dos alunos à informação e reafirmando o valor da diferença. É assim que se realiza o aprendizado da cultura: por meio do acesso às mais diferentes formas de conhecimento e com a ruptura de preconceitos e barreiras culturais.Mais recentemente, os povos indígenas também passaram a produzir materiais didáticos específicos, em substituição aos de circulação ampla, que em geral reproduzem representações distorcidas ou erradas sobre suas culturas e histórias. Os materiais feitos pelos indígenas podem também ser utilizados em instituições de ensino comuns, contribuindo para a superação de preconceitos e estereótipos. Muitos brasileiros aprenderam que os indígenas são povos presos ao passado, pois teriam sido totalmente exterminados ou “aculturados” ao entrar em contato com outros povos, ou seja, desligados de princípios essencialmente indígenas. Não são poucos os que acreditam que os índios vivem exclusivamente em florestas, andam normalmente nus, são caçadores e pescadores, além de possuírem aparência física única – canonizada pela literatura didática e pelo imaginário nacional: cocares, canoas, arco-e-flecha, e só.Várias pessoas ainda os concebem como naturalmente protetores das matas, reproduzindo o fundamento do mito do bom selvagem, que atribuía aos indígenas uma condição cultural inferior a outras sociedades. São ideias equivocadas, que impediram – e ainda impedem – que as populações indígenas sejam compreendidas como povos na história, em luta por direitos no passado e no presente.Por meio dos territórios étnico-educacionais, uma iniciativa do Ministério da Educação, indígenas protagonizam, atualmente, a implementação, a avaliação e a continuidade da Política Nacional de Educação Escolar Indígena. Ela considera a territorialidade das etnias, o protagonismo dos povos e a articulação entre os órgãos públicos. Os nativos também se dedicam a formular e a manter programas de formação de educadores para as escolas indígenas, e batalham pelo desenvolvimento de currículos e programas específicos, incluindo os conteúdos culturais correspondentes a cada comunidade, o estudo das línguas maternas e o princípio pedagógico e político da interculturalidade.Quanto ao currículo, há o permanente desafio de consolidar propostas que considerem o direito à memória e os embates pela história narrada do ponto de vista indígena. Este aspecto aproxima os educadores indígenas dos afrodescendentes: são comuns aos dois grupos os desafios de superar silenciamentos e preconceitos cultivados historicamente.Com raras exceções, não faz mais de dez anos que estados e municípios brasileiros vêm garantindo o direito à educação escolar quilombola. É um processo em fase de implantação, que conta com a liderança do movimento negro e de entidades sociais. Sua efetivação demanda a quebra de estigmas que historicamente marcaram não só as escolas, mas também as comunidades negras e quilombolas.O currículo é construído pelos quilombolas, protagonistas na abordagem dos saberes, das práticas e dos conhecimentos. O princípio fundamental é o respeito às marcas culturais de suas populações e a sua resistência identitária, política e social. Trata-se de uma educação diferenciada que considera a vivência e a organização coletiva, a ancestralidade e a sabedoria dos anciãos, as diferentes maneiras de relacionamento desses povos com o território, o sagrado, as artes e as ciências.São inúmeras as lições das escolas indígenas e quilombolas para as convencionais. Elas ensinam que a escola é um direito conquistado. Que a oferta da educação é resultado de lutas. Que a construção curricular é fruto de escolhas e de embates. Que os currículos postos em prática por povos indígenas e quilombolas são frutos de negociações e afirmações de educadores que, cientes da inadequação das abordagens historicamente consolidadas pela educação brasileira, assumiram o desafio de investigar a própria cultura e suas marcas. Com isso, conseguiram fazer com que a escola fosse um local de experiência pedagógica e cultural identitária, compromissada com as resistências e com a permanência dos povos em seus territórios.Ao assumirem o compromisso com a formação docente diferenciada, esses povos tradicionais põem em debate a relevância do protagonismo do profissional da educação para a consolidação das políticas da diferença. Fazem isso por meio de projetos educativos e sociais próprios, oferecendo ensinamentos valiosos a todos os outros educadores que, mesmo não atuantes em escolas diferenciadas, podem ver transformadas as suas práticas e concepções.Em ambos os casos, foi e continua sendo fundamental a atuação da sociedade civil contra as desigualdades sociais e culturais e pela garantia do acesso dos povos indígenas e afrodescendentes a direitos iguais, inclusive o da autorrepresentação. O combate à violência, à discriminação e à distorção de memórias vivenciado pelos povos indígenas e quilombolas está na base das lutas pelos direitos de cidadania e de reconhecimento à diferença. A escola tem um importante papel a cumprir nesse sentido, e vem sendo um projeto republicano diferenciado conquistado na última década, não sem dor, morte e manipulações.Júnia Sales Pereira é professora da Faculdade de Sducação da Universidade Federal de Minas Gerais e autora de Patrimônio cultural em Oficinas (Editora Fino Traço, 2015)Saiba MaisPareceres e resoluções sobre Educação das relações étnico-raciaisDisponível em: http://goo.gl/hGTfsRDiretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Quilombola.Disponível em: http://goo.gl/Vv6MHfDiretrizes Curriculares Nacionais para a Educação IndígenaDisponível em: http://goo.gl/f39Js5
Fazer sua própria escola
Júnia Sales Pereira