Fé inabalável

Júnia Ferreira Furtado

  • Foi Nossa Senhora da Luz quem salvou Thereza de Jesus Perpétua do terremoto que assolou Lisboa em 1o de novembro de 1755. Devota da santa, ela saiu ilesa da tragédia depois de fazer uma promessa. E dedicaria boa parte de sua vida a cumpri-la.

    A cidade acordou naquele sábado, feriado de Todos os Santos, com o dia claro e o céu azul. Pouco depois das nove da manhã, quando a terra começou a tremer, anunciando uma das maiores catástrofes da Era Moderna, seus moradores se dirigiam ou já se aglomeravam nas igrejas para assistir às missas em comemoração à data. Encurralados nos templos ou nas vielas estreitas, foram milhares os que morreram esmagados sob a massa de escombros em que a fulgurante Lisboa se tornou em questão de minutos. Vários tremores se seguiram, provocando um maremoto: o Rio Tejo se levantou de seu leito e uma onda gigantesca se abateu sobre a cidade baixa. Por fim, um terrível incêndio acabou por destruir grande parte das construções que ainda tinham resistido em pé.

    Em reação à gigantesca catástrofe, as manifestações de religiosidade e de misticismo se intensificaram entre os moradores. Os lisboetas estavam acostumados a dedicar boa parte de seu tempo a Deus, e sua vida era regida por uma constante sensação de proximidade entre o profano e o sagrado. Naquele momento de extrema aflição, buscaram no Senhor, na Virgem, em Jesus, nos anjos e nos incontáveis santos da corte celestial a proteção para o que lhes parecia um inexplicável infortúnio.

    “A população, aparentemente, estava convencida de que aquele era o dia do Juízo Final”, relatou o inglês Thomas Chase. Enquanto a cidade desmoronava ao seu redor, muitos se empenhavam “em tarefas piedosas, carregavam crucifixos e imagens de santos. Homens e mulheres, sem distinção, nos intervalos entre os tremores de terra, ou se dedicavam a cantar ladainhas ou com fervor zeloso se punham a apoquentar os moribundos com cerimônias religiosas; e sempre que a terra tremia, nas mais pungentes vozarias possíveis, todos de joelhos exclamavam ‘Misericórdia!’”.

    O culto a Nossa Senhora da Luz cresceu após a tragédia, pois vários sobreviventes contavam que tinham sido salvos após apelarem à santa. Tal devoção surgira em Lisboa por volta de 1463, creditada a um certo Pero Martins, que estivera preso no norte da África e relatara aparições da Virgem lhe assegurando que a libertação estaria próxima. Em troca, teria lhe pedido que, quando regressasse a Lisboa, erigisse uma igreja dedicada a Nossa Senhora da Luz, cuja imagem ele encontraria em Carnide, sua freguesia natal. O homem voltou, encontrou a imagem e ergueu o santuário, que se tornou um centro de peregrinação. Quando veio o terremoto, três séculos depois, todo o edifício ruiu, exceto a capela-mor e aquela imagem original, que ficou intacta.

    Em outro ponto de Lisboa, Thereza de Jesus testemunhou um milagre parecido. No momento do terremoto, ela invocou a ajuda de Nossa Senhora da Luz, de quem era fervorosa devota e cuja estátua estava disposta em um dos altares laterais do templo onde se encontrava. Prometeu que, se sobrevivesse, daria início à construção de um novo local para abrigar a imagem. Foi salva, e nunca mais se separou daquela estátua.

    Se era a fé que unia a beata à imagem da santa, foram os diamantes que levaram ambas para o outro lado do Atlântico. A mudança ocorreu quando o marido de Thereza, o sargento-mor Manoel José Duarte Franco, foi transferido para trabalhar na Real Intendência dos Diamantes, que monopolizava a exploração da pedra preciosa no arraial do Tejuco (atual Diamantina), pequena localidade na porção nordeste da capitania de Minas Gerais.

    Thereza, seu marido e a santa chegaram ao Tejuco na década de 1780. O núcleo urbano florescente já vivia uma economia pujante e contava com mais de 500 casas, bastante para o padrão da época. À imagem de Lisboa, também no arraial o mundo religioso se espraiava pelas ruas. No centro, a Matriz de Santo Antônio abrigava a irmandade do Santíssimo Sacramento, que congregava as pessoas mais importantes, e a das Almas, muito procurada pelo papel central de São Miguel na boa condução das almas do purgatório. Em seu entorno, as igrejas proliferaram ao longo de todo o século XVIII, com suas irmandades refletindo a diversidade social. A Igreja do Rosário abrigava os negros; a do Amparo e a das Mercês, os forros; a de São Francisco e a do Carmo disputavam entre si os corpos e as almas da elite. Foi em meio a essa profusão de santos que Thereza de Jesus resolveu encontrar abrigo para a imagem milagrosa que a acompanhava desde o dia do terremoto lisboeta. Inicialmente, a imagem foi colocada em um altar na Igreja do Amparo, depois ela escolheu pessoalmente um sítio aprazível nos subúrbios do arraial, na parte alta da Serra de Santo Antônio, para construir uma pequena igreja.

    Embora não lhe faltassem dinheiro e determinação, a beata precisava resolver trâmites burocráticos para pôr em prática o seu projeto. Em 1802, encaminhou a Lisboa uma petição, intermediada pelo Conselho Ultramarino, pedindo permissão para fazer funcionar a sua igreja. No documento, afirmava que tinha “uma particular devoção com a Virgem Santíssima, como mãe e protetora dos pecadores”. Aceita a proposta, partiu para a empreitada, iniciada no ano seguinte. A obra arrastou-se por 16 anos, consumindo parte considerável do patrimônio da devota. A imagem só foi colocada no altar-mor quando a capela foi concluída, em 1819. Junto à igrejinha, Thereza também instalou um pequeno recolhimento para dar auxílio a órfãs que se casavam: elas recebiam enxoval completo, um faqueiro de prata e um dote de três mil cruzados.

    Se o trauma do terremoto e a intensa devoção à Virgem salvadora já haviam influenciado profundamente o comportamento de Thereza de Jesus, depois que ficou viúva ela deve ter passado a se dedicar integralmente ao sentimento religioso. Além de empreender grande esforço para cumprir sua promessa, expressava sua devoção em um estilo de vida extremamente modesto. Sua casa tinha pouquíssima mobília. Como não tinha cama, é provável que dormisse no chão, em uma esteira. Os itens do enxoval contavam-se nos dedos: dois lençóis, duas cobertas e uma toalha de mesa. No armário, apenas duas camisas de bretanha e um vestido de cetim preto – veste de viúva. Sua mesa também não devia ser farta, pois os utensílios de cozinha eram poucos e rústicos. Apesar de viver sozinha, por vezes devia receber alguns convidados, dispondo para isso de nove pratos de pedra, seis xícaras e dez canecas. Tinha ainda uma chocolateira, para servir a iguaria muito apreciada na época – provavelmente destinada somente aos convivas, pois, para a beata, a frugalidade caía melhor.

    Fato inusitado para a época, Thereza não possuía um único escravo, o que é revelador da vida simples que levava, de seu espírito caridoso, de sua verdadeira conversão espiritual. A palmatória, normalmente usada para aplicar disciplina aos cativos ou às crianças, era provavelmente usada para seu autoflagelo. Na falta de escravos para ajudá-la nas tarefas do dia a dia, é provável que se ocupasse sozinha dos serviços de casa, o que justificaria possuir dois aventais grosseiros.

    Os hábitos monásticos eram fruto de escolha pessoal, pois ela tinha recursos suficientes para usufruir de muito mais conforto. Participava de uma sociedade que fazia o comércio de alimentos e de fazenda seca importada (como tecidos e chapéus), e deixaria significativa herança para seu sócio, o capitão João Baptista da Fonseca: 6:857$148 réis (seis contos, oitocentos e cinquenta e sete mil, cento e quarenta e oito réis). Além disso, dispunha de mais de 20 contos em dinheiro e bilhetes da Real Extração dos Diamantes, que deve ter recebido como pagamento pelo fornecimento de víveres aos escravos contratados por essa Companhia Régia, que monopolizava a extração das pedras. Esses bens parecem ter se destinado essencialmente à caridade.

    Thereza de Jesus Perpétua morreu no Tejuco em 13 de julho de 1827, sem filhos ou qualquer parente vivo. Parece que já era inválida, pois entre seus bens figurava uma cadeira de rodas, ainda que quebrada. Apesar de ter pedido em testamento que fosse enterrada na Igreja Matriz de Santo Antônio, reza a tradição que seu corpo foi sepultado sob o coro de sua Igreja da Luz , onde ainda hoje reina a estátua milagrosa de Nossa Senhora.

    Júnia Ferreira Furtado é professora da Universidade Federal de Minas Gerais e autora de Chica da Silva e o contratador de diamantes (Companhia das Letras, 2003).

    Saiba Mais - Bibliografia:

    ARAÚJO, Ana Cristina; CARDOSO, José Luís, MONTEIRO, Nuno Gonçalo, ROSSA, Walter, SERRÃO, José Vicente. O terremoto de 1755: impactos históricos. Lisboa: Livros Horizontes, 2007.

    PRIORE, Mary Del. O mal sobre a terra: uma história do terremoto de Lisboa. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003.

    TAVARES, Rui. O pequeno livro do grande terramoto. Lisboa: Tinta da China, 2005.


    Marias, Maria


    Quantas Nossas Senhoras existem?, pergunta o fiel, confuso diante da miríade de igrejas, capelas e imagens que trazem em seu nome um “Nossa Senhora disso” ou “Nossa Senhora daquilo”. Parecem muitas, mas todas são uma só: Maria, a mãe de Jesus. Invocada nas mais diversas circunstâncias, celebrada como padroeira de santuários ou de categorias profissionais, Nossa Senhora viu acrescentados ao seu nome títulos que se referem ao lugar de culto ou a etapas de sua vida.

    Tem Nossa Senhora da Conceição, concebida sem pecado original, Nossa Senhora das Dores ou da Piedade – sofrendo ao pé da cruz do filho – e Nossa Senhora da Luz, aquela que salvou Thereza do terremoto. Da Luz ou da Candelária, ambas se referem ao momento em que Jesus foi exibido no ritual da purificação (praticado pelas mães judias após o parto) e saudado como “luz dos povos”.

    Como intercessora dos homens perante o Todo-Poderoso, Maria é chamada por suas várias qualidades: da Ajuda, do Amparo, do Perpétuo Socorro, das Graças, Medianeira. A capacidade de resolver problemas complexos lhe valeu o apelido de Desatadora de Nós. E até na derradeira hora podemos recorrer a ela, na forma de Nossa Senhora da Boa Morte.

    Outros títulos são ligados aos locais de suas aparições, como Nossa Senhora de Guadalupe (México, 1531), de Lourdes (França, 1858), de Fátima (Portugal, 1917), da Cabeça (Pico da Cabeça, Espanha, século XIII), ou à descoberta casual de uma estátua, como Nossa Senhora da Lapa (Portugal, 1498) e a padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida (cuja imagem foi encontrada por pescadores no Rio Paraíba do Sul em 1717).
    De tão popular, no Brasil virou até exclamação cotidiana, em momentos de susto ou espanto. Nestes casos, dispensa títulos adicionais. É “Nossa Senhora!”, e só. (Equipe RHBN)