Fé no sertão

Júlio Bezerra

  • O patrimônio histórico brasileiro está mudando de cara. Prova disso foi a seleção de projetos feita pelo Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, o mais importante do gênero, promovido há 21 anos pelo Iphan. Entre as 254 ações inscritas – e as sete premiadas –, sobressaem aquelas distantes dos centros mais importantes e voltadas para a cultura popular. “Este ano consolidou a tendência dos anteriores: a interiorização das ações. Está nascendo uma nova visão do que é patrimônio, com mais ênfase nas expressões culturais”, explica Luiz Philippe Peres Torelly, coordenador-geral de Promoção do Patrimônio Cultural do Iphan.

    Um bom exemplo é o trabalho da Fundação Padre João Câncio, de Salgueiro, sertão de Pernambuco. Com suas ações de valorização da cultura da caatinga, a instituição faturou a categoria “Salvaguarda de Bens de Natureza Imaterial”. O bem imaterial, neste caso, é o vaqueiro nordestino. 

    A Fundação foi criada em 1989 com um objetivo claro: levar adiante a celebração da Missa do Vaqueiro, que perdera naquele ano o seu patrono, o padre João Câncio. Ao lado de Luiz Gonzaga, ele deu início à tradição em 1971, quando a cidade de Serrita recebeu vaqueiros de todo o Nordeste em uma homenagem à memória de Raimundo Jacó, vaqueiro assassinado em 1954. Desde então, o ato religioso é celebrado sempre no terceiro domingo do mês de julho, ao ar livre. Os vaqueiros sobem ao altar e fazem oferendas, adaptando a liturgia à cultura local: a hóstia é substituída por queijo, rapadura e farinha de mandioca, e a maioria do público assiste à cerimônia montada em seus cavalos.

    A missa virou sucesso de público: recebe, em média, 50 mil pessoas por ano. “Isso foi em 2007. Este ano foram 60 mil”, corrige Helena Câncio, viúva de João e diretora-presidente da Fundação. “O valor cultural da vida do vaqueiro nordestino é inestimável”, defende.

    Investir em artesanato foi a conseqüência natural do fenômeno turístico da Missa do Vaqueiro. Em  parceria com organizações como a Comunidade Artesã de Serrita e a  Academia de Design de Eindhoven (Holanda), o projeto passou a incentivar a confecção de casacos, bolsas e calçados. As peças são trabalhadas com peles de bovinos, caprinos e ovinos e fazem uma releitura dos símbolos, bordados e vazados da indumentária do vaqueiro.

    A Fundação João Monteiro Filho também se juntou à iniciativa, investindo em pesquisas acadêmicas sobre a região e lutando pela regularização da profissão do vaqueiro: foram coletadas milhares de assinaturas e enviada uma petição ao Congresso. Presidente da instituição, João Monteiro está esperançoso: “Se os repentistas conseguiram, não vejo como nós também não possamos ganhar”. Além de se preocupar com a segurança previdenciária desses trabalhadores, Monteiro é um apaixonado pelas raízes históricas do personagem: “A figura do vaqueiro, com origem no século XVII, está na origem do próprio Nordeste. Um não vive sem o outro”, resume.

    Como dizem os próprios vaqueiros: “Sertanejo não esmorece”.