Fechando a conta

Santiago Silva de Andrade

  • Quebrado. Era assim que se encontrava o nascente Império do Brasil em meados de 1823. A crise financeira era reflexo direto da custosa estada da corte de D. João no Rio de Janeiro (1808- 1821), que, ao partir, ainda por cima raspou os cofres públicos, deixando o Tesouro à míngua. Diante de tal situação, o imperador D. Pedro I se viu obrigado a cortar de forma radical as despesas de manutenção da Casa Imperial, medida que anunciou no dia 3 de maio daquele ano, diante de uma atenta Assembléia Constituinte.

    Era do Tesouro Público que vinham as grandes somas de dinheiro vitais para o funcionamento da Casa Imperial, dividida em repartições responsáveis pela roupa de cama e mesa (Mantearia), pelo transporte (Cavalariças) e pela alimentação (Ucharia) da família imperial, seus criados e cortesãos mais próximos, num total de aproximadamente 400 pessoas. Segundo D. Pedro, diante da calamitosa situação do Tesouro, só lhe restava “viver como um simples particular”, ou seja, abrir mão de todas as confortáveis prerrogativas a que tinha direito, e que seu pai, D. João VI, usufruíra plenamente: carruagens, banquetes, dezenas de médicos, além de um número exagerado de criados, disponíveis 24 horas por dia.

    Em 1823, o Tesouro Público tinha apenas 210 contos de réis. E só as despesas básicas da Casa Imperial do Brasil somavam 110 contos de réis anuais, mesmo após D. Pedro I tê-la reduzido a cerca de um sexto do que gastava a Casa Real do seu pai. Não havia previsão de melhora, pois as receitas futuras já estavam comprometidas, em grande parte, com o pagamento de dívidas inegociáveis, como salários de servidores públicos e pensionistas. Em outras palavras, o Estado brasileiro nascia à beira da falência e endividado. A contratação de empréstimos com credores internacionais foi a única saída aventada pelo ministro da Fazenda, Manuel Jacinto Nogueira da Gama (1765-1838).

    Cabia a D. Pedro I dar o exemplo e cortar na própria carne, livrando-se de todas as despesas que pudessem ser consideradas supérfluas pela opinião pública ou pelos deputados da Assembléia. Em momento político tão delicado, não era prudente fornecer a eventuais adversários argumentos que justificassem qualquer tipo de ingerência sobre a Casa Imperial.

    Mesmo antes da independência, D. Pedro já vinha adotando medidas de austeridade nos negócios da Casa Real. O jovem príncipe ficou responsável por todas as decisões domésticas dos Bragança no Brasil assim que D. João VI deixou o país, em abril de 1821. Em setembro, determinou que lhe informassem quantos moços da água (responsáveis pelo transporte das pipas de água até o Paço), serventes e varredeiras estavam na folha de pagamento da Casa Real. A resposta deve ter chocado D. Pedro: eram 46 moços, 70 serventes e 22 varredeiras. O corte de pessoal foi imediato e radical – restaram apenas quatro em cada função.

    Outra descoberta incômoda foi o valor das aposentadorias e pensões. Ao constatar que elas custavam à Casa Real cerca de onze contos de réis anuais, o príncipe regente determinou que, dali em diante, todos os pagamentos aos pensionistas deveriam ser feitos diretamente pelo Tesouro Público – não eram problema da Casa Real, já inchada com tantos gastos.

    Depois da independência, feito imperador, D. Pedro I precisou empreender grandes esforços militares e financeiros para pacificar as numerosas revoltas que estouravam nas províncias. No âmbito “caseiro”, deu continuidade aos planos de contenção de despesas.     Por tabela, a redução de pessoal lhe trazia outro benefício. Apesar de ter crescido na corte portuguesa, assistindo de perto aos lances políticos da aristocracia lusitana, D. Pedro I ainda não estava habituado ao jogo duro das intrigas palacianas. Não se sentia completamente seguro no ambiente da Casa Imperial. Sem saber em quem confiar plenamente, o imperador resolveu diminuir o quadro de empregados e escolher para cargos de confiança pessoas do seu círculo mais próximo.

    Para complicar a vida dos criados, em 1822 D. Pedro I baixou uma portaria determinando que todas as pessoas empregadas no seu serviço doméstico teriam que apresentar, ao receber o ordenado, um “título ou diploma” que comprovasse o exercício do ofício. A exigência causou um sério problema: embora o ingresso no serviço real fosse registrado em livros contábeis pelos escrivães da Casa, boa parte dos criados não solicitava qualquer comprovante de sua função doméstica. Além disso, muitos haviam sido admitidos verbalmente, sem qualquer documento comprobatório, e alguns estavam no serviço real havia tanto tempo que nem se lembravam da data exata de sua admissão.

    O resultado foi uma chuva de requerimentos enviados por criados “sem meios de subsistência”, reclamando do seu estado de penúria e suplicando que o imperador reconsiderasse a exigência dos diplomas. O próprio oficial do Tesouro, Pedro Nolasco Heitor, responsável pelo pagamento e subordinado ao ministro da Fazenda, admitia que “nunca foi costume” a emissão de tais diplomas, e também pedia que a remuneração dos criados fosse liberada. Segundo ele, era público e notório que os mesmos “estavam empregados diariamente no real serviço”. Nolasco foi demitido logo após o episódio, acusado de fraudar as contas do Tesouro Público. A intenção do imperador era adiar ao máximo o pagamento integral da folha da Casa Imperial, enquanto se procurava uma saída para a crise financeira.

    Um dos setores mais duramente atingidos pelas mudanças foi a cozinha. Durante o governo de D. João VI, esta repartição chegou a ter 28 cozinheiros, 13 ajudantes e 10 aprendizes de cozinha. Em fins de 1822, eram apenas quatro cozinheiros, seis ajudantes e cinco aprendizes. E em 1827, quem perdeu regalia foram os mestres de dança dos filhos do imperador, que deixaram de ter carruagens à sua disposição. Segundo D. Pedro, eles deveriam ir trabalhar “utilizando os seus próprios meios de transporte”.

    Mas engana-se quem imagina que o imperador passou a levar uma vida espartana. Sua educação, sua cultura e herança provinham da sociedade de corte, e D. Pedro não abriu mão de algumas das tradições que acompanhavam a nobreza portuguesa desde o século XVII. Seu dilema estava justamente em equilibrar passado e futuro de modo a garantir, ao mesmo tempo, a saúde financeira do Império e a dignidade da Casa Imperial.

    Há uma passagem curiosa, que ilustra como estavam arraigados em D. Pedro I os costumes da corte portuguesa. Em 1829, ao fazer uma visita de surpresa e passar toda a manhã na casa do ministro da Áustria, barão de Mareschal, o imperador ouviu do anfitrião um pedido de desculpas por não ter preparado uma refeição digna do ilustre visitante. “Não se incomode, o Chalaça se incumbe de organizar a refeição”, respondeu D. Pedro. Prontamente, Francisco Gomes da Silva, o Chalaça, secretário particular do imperador, fez o papel de cozinheiro, preparando o almoço e servindo, de joelhos, seu amo. O ministro ficou visivelmente espantado. Na corte austríaca, aquele costume já era considerado obsoleto.

    O imperador também não media despesas quando se tratava de valorizar os símbolos de sua autoridade. Por ocasião da confecção do uniforme dos criados da Casa Imperial, a ordem foi fazê-los da forma mais luxuosa possível, para denotar opulência e esplendor. Foi assim também no ato de sua coroação, em dezembro de 1822, quando ordenou aos burocratas do Tesouro Público que entregassem ao tesoureiro da Casa Imperial, Plácido Antonio de Abreu, “todas as quantias” pedidas por ele para providenciar a cerimônia. Determinou que Francisco Gomes da Silva, que também era ourives, utilizasse a quantidade de ouro necessária para a confecção da coroa.

    À moda do Antigo Regime europeu, abriu os cofres e despejou montanhas de dinheiro nas mãos dos seus homens de confiança. Se alguém tinha que pagar o preço da redução drástica de gastos na corte, que o aperto começasse (e terminasse) no andar de baixo. Afinal de contas, os interesses da Imperial Casa do Brasil estavam em primeiro lugar. E autoridade não tem preço.

    Santiago Silva de Andrade é doutorando em história pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERj) e desenvolve a Tese "Morar na casa do Rei, Servir na
    casa do Império: Sociedade, Cultura e Política no Universo Doméstico da Casa Real Portuguesa e Casa Imperial do Brasil (1808-1840)".


    Saiba Mais - Bibliografia:

    COSTA, Wilma Peres. “Do Domínio à Nação: impasses da fiscalidade no processo de Independência”. In: JANCSÓ, István (org). Brasil: formação do Estado e da Nação. São Paulo: Ed. Hucitec, 2003 p. 143-193.

    LUSTOSA, Isabel. D. Pedro I. Um herói sem nenhum caráter. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

    MACAULAY, Neill. Dom Pedro I: a luta pela liberdade no Brasil e em Portugal, 1798-1834. Rio de Janeiro: Record, 1993.

    SOUSA, Otávio Tarquínio de. História dos fundadores do Império do Brasil. A vida de D. Pedro I. 3ª ed., vols. II e III. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957.