Feitiço das fontes

Cristiane Nascimento

  • Estátua do primeiro presidente de Moçambique após a independência, Samora Machel.Moçambique tem orgulho de sua história e de seus heróis. Depois de mais de dez anos de guerra contra os colonizadores portugueses, o país finalmente conseguiu sua independência em 1975. Ao chegar a Maputo para fazer minha pesquisa de doutorado, vi monumentos como a grande estátua de Samora Machel, o primeiro presidente do país, localizada em uma das principais avenidas da cidade, e ruas que trazem em seus nomes o passado de luta. O orgulho não é apenas oficial. Ao caminhar, ouvimos com frequência as pessoas invocarem os heróis nacionais como exemplo de administração e força em contraste com a política do governo atual. A independência ainda está viva.
     
    Um país tão orgulhoso de sua história deveria dar acesso livre aos documentos para aqueles que desejam escrever sobre ela, além de uma política de recolha e preservação eficaz. Mas não é isto o que acontece. Os arquivos não estão acessíveis a todos e carecem de recursos suficientes para organização e preservação documental. A falta de catálogos que demonstrem todo o conteúdo dos acervos faz com que o pesquisador conte mais com a sorte do que com a perspicácia. A pesquisa torna-se uma aventura, no sentido mais difícil do termo. 
     
    Mas não é só de documento escrito que se faz uma tese de doutorado. Ao viajar para Moçambique com o objetivo de recolher material, desejava também encontrar pessoas que vivenciaram esse período e que me ajudassem a reconstituir uma certa “atmosfera” da época. Pude ouvir em detalhes relatos de padres que abandonaram tudo para se refugiar nos campos de treinamento da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), na Tanzânia, ainda na época da guerra colonial; de reverendos que tiveram a oportunidade de conhecer a fé e os receios pessoais de líderes do Estado, que eram vistos como ateus; de religiosos que foram encontrar, em um lugar inóspito, Dhlakama, o líder do principal grupo de oposição à Frelimo, em plena guerra civil, com o objetivo de selar a paz no país.
     
    É certo que todo historiador reconhece que o passado é inalcançável, inacessível. Porém, quando o período que estudamos é tão recente e os personagens ainda estão vivos e lúcidos, é tentadora a ilusão de conseguir capturar, reconstituir a história. Sem analisar os depoimentos criticamente, o pesquisador pode cair no “feitiço das fontes”. Foi esta a lição que aprendi: as falas ora distantes, ora inflamadas nas ruas e as entrevistas traziam incongruências, contradições e silêncios que só pude perceber quando me distanciei, reli as anotações e ouvi os áudios. Assim como todo discurso, os relatos desejam ser vencedores e detentores da verdade. Os personagens, assim como todos os mortais, estavam à disposição dos caprichos da memória – e esta, como dizia Pierre Nora, é feita de lembrança e esquecimento. 
     
    Cristiane Nascimento é pesquisadora da Revista de História e autora da dissertação “A relação entre os portugueses e os muçulmanos (1930-1960)”, (PUC-Rio, 2010).