A pequena Curvelo, a cerca de 170 quilômetros de Belo Horizonte, não podia imaginar que seria o berço de um dos principais escritores brasileiros, autor do polêmico Crônica da Casa Assassinada (1959). Pelo jeito, até hoje boa parte dos moradores não sabe disso. A única referência a Lúcio Cardoso (1912-1968) na cidade é o nome da biblioteca de uma escola municipal. Este ano, no centenário do escritor, esta história deve mudar. Uma campanha vai divulgar a vida e a obra de Cardoso para os jovens da cidade e, no segundo semestre, Curvelo terá uma semana de exposição de livros, pinturas e filmes de Lúcio, além de debates sobre o tema.
As comemorações ultrapassam a pequena cidade mineira. A peça “Crônica da Casa Assassinada”, por exemplo, dirigida por Gabriel Villela, já foi apresentada em Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo no ano passado, mas voltará à cena. A atriz Xuxa Lopes tomou a dianteira e está buscando apoio para levá-la novamente às capitais carioca e paulista. As universidades também começam a se programar: a PUC-Rio terá um seminário em agosto com estudiosos, amigos e membros da família do escritor entre os convidados, e a Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), em Minas Gerais, está programando um evento sobre Lúcio Cardoso e Darcy Ribeiro, que estaria completando 90 anos.
Já o livro ganhará novo projeto gráfico, assim como outros títulos do autor publicados pela Civilização Brasileira. Clássicos da literatura mundial traduzidos por ele, como Anna Karenina, de Leon Tolstói, serão reimpressos pelo mesmo selo. Mas há livros inéditos vindo por aí. Depois de lançar Lúcio Cardoso: Poesia Completa (Edusp) em dezembro de 2011, o escritor e doutor em Literatura Brasileira pela USP Ésio Ribeiro prepara uma compilação dos diários de Lúcio, com material inédito. “Reuni ‘Diário Primeiro’, publicado por ele, uma continuação feita por Otávio de Faria, o material que encontrei na Casa de Rui Barbosa e publicações na imprensa. Nos textos, ele comenta leituras que fez, fala sobre encontros com personalidades, como Ferreira Gullar, e tem até algumas partes rasuradas, provavelmente censuradas por algum amigo. Vamos colocar tudo na publicação”, afirma Ribeiro.
Lúcio começou a carreira literária quando surgiu a linha regionalista do Romance de 30, com nomes como Rachel de Queiroz, Jorge Amado e José Lins do Rêgo. Ele, no entanto, seguiu outro caminho. “Seu primeiro livro, Maleita, era mais sociológico. O segundo, Salgueiro, era realista. Mas, depois disso, fez romances mais cerebrais, nos moldes do romance russo. Ele lia muito Dostoievski e Tolstói. Desenvolveu muito bem um romance psicológico, denso, em que vai fundo na alma dos personagens”, conta Ribeiro.
Além de romances, poesias, peças de teatro e até roteiros de cinema, Lúcio publicou muitos contos. Boa parte deles está sendo compilada, em dois volumes, pela jornalista e escritora Valéria Lamego. “São contos curtos que nunca tinham sido mapeados, publicados em jornais do Rio e de São Paulo entre as décadas de 1930 e 1950”, explica.
“Lúcio teve várias colunas em jornais, foi dramaturgo, diretor de teatro, de cinema... Levou os primeiros atores negros em cena, no Teatro Experimental do Negro. Mas seu maior talento era mesmo como poeta e romancista. Ele teve vida social muito intensa, era amigo de Vinicius de Moraes; frequentava a boemia carioca; e dentre os ilustradores de seus contos nos jornais estava Oswaldo Goeldi”, lembra Valéria.
A partir de 1941, quando foi redator no Departamento de Imprensa e Propaganda (D.I.P.), Lúcio se tornou grande amigo de Clarice Lispector (1920-1977). “Ela foi apaixonada por ele. Em um de seus textos, diz que os dois não se casaram por ‘incompatibilidade’, ou seja, porque Lúcio era homossexual. Eles foram muito próximos”, conta Ésio Ribeiro.
O último parceiro de Lúcio, Luiz Carlos Lacerda, está finalizando o roteiro de uma ficção inspirada em um argumento deixado por ele. O filme se chamará “Introdução à Música do Sangue”. “Ele me deixou o argumento, mas algumas partes desapareceram, pois muita coisa aconteceu, morei fora durante a ditadura... Mas consegui me lembrar de algumas coisas, e outras inventei. O filme vai ter um clima pesado de introspecção psicológica. Ainda estou fechando o roteiro”, explica Lacerda.
Outro projeto é o documentário sobre o filme “A mulher de longe”, dirigido por Cardoso em 1949. As filmagens foram interrompidas e os negativos ficaram perdidos por muitos anos. Só recentemente foram encontrados na Cinemateca Brasileira, em São Paulo. “Fiz entrevistas e vou usar o diário das filmagens que está na Casa de Rui Barbosa para ajudar a contar a história da produção desse filme. Começamos a filmar em dezembro e o lançamento deverá ser no segundo semestre deste ano”, diz Lacerda.
As novidades parecem não ter fim. Fábio Camargo, professor do Programa de Pós-Graduação em Letras e Estudos Literários da Unimontes, está preparando um livro para novembro. É um trabalho sobre as representações que o escritor mineiro fez dele mesmo a partir da figura paterna. “Usei três romances como base e vou pesquisar as cartas dele. Nos textos, Lúcio diz pouco, mas sempre coloca figuras paternas muito complicadas. Como se o pai fosse ausente, mas, quando chegava, tomava conta da casa. Uma ausência presente”, analisa Camargo.
Parte das programações do ano ainda está sendo planejada, e não falta material para preparar isso tudo. Maria Helena Cardoso, irmã de Lúcio, doou todo o acervo dele, aos poucos, a partir de 1972, à Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. Os organizadores preferem não adiantar ainda detalhes sobre exposições e eventos não confirmados, mas Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo podem se preparar, porque vem muito mais por aí.
Festival Lúcio Cardoso
Cristina Romanelli