“Se o tempo fosse medido pelo acúmulo dos fatos, eu teria vivido duzentos anos”. O autor da frase não estava exagerando. Pierre-Augustin Caron de Beaumarchais (1732-1799) conheceu a glória e a miséria, desfrutou a vida na corte e viu nascer um mundo novo e perigoso. A biografia e o teatro do autor de As bodas de Fígaro bem representam o tempo em que viveu – o século do Iluminismo, do fim do Absolutismo, da chegada da Revolução Francesa. Por isso mesmo, a leitura de Beaumarchais permite aos alunos identificarem as normas de conduta cortesã, o cuidado com as palavras e as contradições básicas do Antigo Regime – como a naturalização das desigualdades – que seriam expostas pela crítica iluminista. Vida e obra que servem de matérias-primas para entender uma época de contradições.
Quis o destino que Pierre-Augustin nascesse no momento em que a profissão de relojoeiro, ofício de seu pai, alcançava seu mais alto grau de refinamento e prestígio na corte de Luís XV (1715-1774). Foi assim que ainda jovem passou a frequentar a corte e assumiu um modesto posto administrativo. Ao se casar, trocou “Caron” por “de Beaumarchais” e criou um brasão para o novo sobrenome.
Vindo do mundo “de fora”, Beaumarchais compartilhava com os nobres uma educação refinada, perspicácia intelectual, delicadeza e gosto requintados. Mas isso não era suficiente para mantê-lo na órbita dos grandes aristocratas e receber os seus favores. Como seu personagem Fígaro, ele se desdobrou e estudou latim, história, matemática, devorou os clássicos da literatura e aperfeiçoou suas habilidades musicais. Em 1759, foi nomeado professor de harpa das filhas do rei. Alcançava um espaço privilegiado no coração da corte.
Em sua rápida ascensão acumulou inimigos, envolveu-se em calúnias e passou por dificuldades financeiras. Beaumarchais era um polemista público: manifestava suas ideias por meio de panfletos e jornais, lidos nos salões aristocráticos e círculos literários. Expôs a corrupção em que estava mergulhado o sistema judiciário francês e conquistou a opinião pública ao vencer uma briga judicial com o Conde de La Blache em torno de um suposto suborno oferecido pelo aristocrata a um representante da Justiça francesa. Por meio de acordos com membros da alta nobreza, tornou-se agente secreto do rei da França e investigou a agitação que levou à independência dos Estados Unidos em 1776. Em seguida, mobilizou recursos e contatos para montar uma empresa e enviar provisões aos norte-americanos que lutavam contra a Inglaterra desde que declararam a independência. A ousadia de seus textos lhe custou prisões por difamação, insulto, por perturbação da ordem, a perda dos direitos civis e de quase todos os seus bens, e até um período de internação no Saint-Lazarre, uma casa de correção para jovens depravados, por ter escrito um panfleto considerado difamatório pelo rei. Aos43 anos, Beaumarchais já tinha autoridade para sintetizar a vida na corte através de seu alter-ego, o barbeiro Fígaro: “Receber, tomar e pedir. Este é, em três palavras, o segredo”.
A cultura cortesã já tinha sido alterada e assimilada por boa parte da sociedade francesa. O Estado Absolutista passou a dar menos valor à linhagem familiar, aceitando membros da aristocracia e da burguesia em seus quadros administrativos e círculos sociais – eram considerados bonne compagnie.Claro que o rei Luís XVI mantinha ritos e práticas simbólicos para reafirmar seu poder. Ao seu redor a etiqueta era transformada em cerimonial. Ele também concedia privilégios e elevava o poder de uma família ou pessoa em detrimento de outra. Essa ética era reproduzida nos diversos níveis existentes no interior da corte e, para além dela, em novos núcleos sociais situados cada vez mais distantes da autoridade real. É nessa “corte ampliada” que crescem as críticas às contradições do Antigo Regime, incômodas aos burgueses – como as amarras mercantilistas e a cobrança de impostos. Ganha força, também, a consciência do aperfeiçoamento individual e dos povos e a ideia de civilização. São esses burgueses, unidos a nobres reformistas, que fermentam a Revolução de 1789. Em resumo: a etiqueta cortesã não entrou em crise com o Antigo Regime que lhe deu origem. Pelo contrário, a cultura de polidez herdada dos palácios disseminou-se como um instrumento da intelligentsia burguesa, um aspecto do caráter nacionalfrancês e sinônimo de civilidade.
Beaumarchais esteve atento a essas sutilezas dos costumes. Em suas peças, criou personagens que haviam aprendido a lidar com os “senhores condes” utilizando a perspicácia cortesã. Percebeu que a politesse dos cortesãos, além de civilizar os costumes e domesticar os impulsos, servia para mascarar a ausência de virtudes. No primeiro ato de O barbeiro de Sevilha (1773), Fígaro desmascara o conde de Almaviva. Este, apaixonado por Rosine, procura uma forma de tirar Bartolo, protetor e candidato a marido da moça, de seu caminho. Ele então pergunta a Fígaro se Bartolo é um sujeito íntegro. Ao que o barbeiro responde:
“Fígaro: Íntegro? Apenas o suficiente para não ser enforcado.
O Conde: Melhor ainda. Punir um patife e ao mesmo tempo alcançar a própria felicidade.
Fígaro: Isso é combinar interesse público e vantagens privadas! Verdadeiramente, um golpe perfeito de moralidade, meu Senhor!”.
A sequência de O barbeiro de Sevilha só estreou nos palcos em 1784, e retrata um mundo em transformação. Em As bodas de Fígaro o personagem está situado entre duas épocas: a do Antigo Regime e aquela que emergirá das cinzas da Revolução. No longo discurso final, ele faz uma análise ferina da sociedade francesa com seus privilégios, censura, autoritarismo, injustiças e mazelas sociais. “Nobreza, dinheiro, posição, palácios, dão muito convencimento! O que é que o senhor fez para merecer tudo isso? Deu-se apenas o trabalho de nascer e nada mais: fora isso, é um homem perfeitamente medíocre! (...) Como eu gostaria de agarrar um desses poderosos bissextos, tão levianos na hora de ordenar o mal dos outros, quando uma boa desgraça lhes tiver quebrado o orgulho!”, diz um trecho do monólogo.
Registros de época chegaram a apontar As bodas de Fígaro como um dos estopins da Revolução, mas os historiadores acreditam que havia exagero nesse julgamento. De qualquer forma, a repercussão da peça extrapolou os limites do circuito cultural parisiense e até mesmo francês. Foi, de fato, um acontecimento político. Fígaro fez a aristocracia rir de si mesma e aplaudir de pé a própria ruína, surpreendendo o autor: “Existe uma coisa mais disparatada do que a minha peça: o seu sucesso!”.
Mas o mundo de Beaumarchais estava se dissolvendo. Os baluartes de poder eram atacados por homens cujos métodos ele desconhecia. Encorajavam o “teatro patriótico” em detrimento do que consideravam mediocridades; rebatizaram o Comédiens-Française de Teatro da Nação, e este deixou de ter o monopólio sobre as encenações; inúmeros teatros surgiram por toda a França. A estreia de Mãe culpada, última peça da trilogia de Fígaro, foi um fracasso. Em 1789, Beaumarchais aguardava a proclamação da Constituição para colocar um limite ao poder real, mas condenava publicamente a onda de violência e saques que varria o país. À Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que extinguiu anobreza hereditária, Beaumarchais reagiu afirmando: “O que será de nós? Estamos perdendo nossa honra, reduzida a nomes de família, sem brasões ou criadagem! Céus!”. Será que Beaumarchais, envelhecendo e tendo perdido parcialmente a audição, se afastava das demandas populares e se apegava aos valores aristocráticos de seu velho mundo, que via ruir? Para o biógrafo Maurice Lever, Beaumarchais “estava à frente de seu tempo denunciando arbitrariedades, mas nunca empunhou o estandarte da revolta”.
O exame da sua interessante biografia enriquece a discussão iluminista, pois torna claro o desejo de reforma e a multiplicidade de interesses dentro da própria corte. Outro bom debate possível é sobre os desencontros entre o tempo individual e o tempo histórico. Libertário e agudo leitor de sua realidade, Beaumarchais foi atropelado pelas reviravoltas da França e terminou incomodado diante da radicalização em 1789 e, sobretudo, de 1792. Ele não viveu o suficiente para ver a Revolução se tornar conservadora. E certamente teria condenado a prática neocolonialista de “civilizar o mundo” – o próximo ato da “comédia” europeia.
Camila Koshiba Gonçalves é professora no ensino fundamental e médio e autora da dissertação “Música em 78 rotações. ‘Discos a todos os preços’ na São Paulo dos anos 30” (USP/2006).Saiba Mais
BEAUMARCHAIS, Pierre-Augustin Caron de. As Bodas de Fígaro. São Paulo: Edusp, 2001.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
STAROBINSKI, Jean. As máscaras da civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
Filme
Beaumarchais, o insolente (Édouard Molinaro, 1996)
Fígaro entre dois mundos
Camila Koshiba Gonçalves