As imagens do mundo visível não foram mais as mesmas depois dos anos 1839-1840. A invenção que chamamos de fotografia foi apresentada à Academia de Ciências de Paris em 19 de agosto de 1839. O que veio depois, ou pelo menos bem depois, todos nós conhecemos: vivemos hoje em um mundo abarrotado de imagens fotográficas. Mas o que aconteceu nos meses que se seguiram àquela célebre reunião de cientistas, jornalistas e curiosos ainda esconde muitas surpresas e controvérsias. Uma delas é como essa novidade chegou por aqui.
Desde janeiro de 1839, os jornais franceses alardeavam a invenção da “daguerreotipia”, processo capaz de fixar sobre uma placa metálica as imagens obtidas com a câmara escura pela ação da luz solar. A partir daí, a imprensa mundial aguardou com ansiedade a história e a descrição do daguerreótipo. Em agosto, quando o segredo de Louis Jacques Mandé Daguerre (1787-1851) e de seu sócio Nicéphore Niépce (1765-1833) foi finalmente revelado, outros processos guardados a sete chaves também reivindicavam o reconhecimento por tamanha conquista. A disputa pela paternidade da fotografia estendeu-se por todo o século XIX, mas hoje já se consagrou a ideia de que muitos inventores trabalhavam nessa direção, inclusive Hercule Florence, francês radicado no interior de São Paulo, que em 1833, criou um processo fotográfico sobre papel [Ver artigo em RHBN nº 35, agosto de 2008].
O daguerreótipo embarcou em sua primeira viagem ao redor do mundo numa expedição que partiu da França logo depois de conhecido o processo para realizá-lo. Na madrugada de 25 de setembro de 1839, o navio Oriental partiu do porto de Paimboeuf, nas proximidades de Nantes, para uma longa viagem em volta da Terra que duraria cerca de dois anos. A embarcação chegou à América do Sul meses depois.
A presença do aparelho de Daguerre a bordo do navio Oriental não foi casual ou improvisada, mas fruto de uma complexa rede de interesses diplomáticos, transações comerciais e intercâmbios científicos. Essa viagem teve início já com a expectativa de ser a primeira expedição ao redor do mundo utilizando a fotografia como meio de registro. O pioneirismo da experiência e todos os desdobramentos culturais, políticos e econômicos do empreendimento evidenciam sua singularidade nas relações internacionais da primeira metade do século XIX.
A circunavegação já havia entrado para os anais da história marítima da França desde o século anterior, mas aquela era a primeira expedição ao redor do mundo destinada à formação dos jovens franceses e belgas que comandariam a marinha mercante de seus países. Idealizada pelo capitão de longo curso Augustin Lucas (1804-1854?), a “escola flutuante” levaria o nome de Hydrographe, palavras com as quais ele traduzia a grandiosidade de seu projeto. Mas a viagem acabou se realizando na embarcação de três mastros Oriental, pertencente a dois armadores de Nantes. Quando passou por Salvador, no Brasil, o Correio Mercantil resumiu assim o objetivo da expedição: “fazer a viagem de instrução à roda do mundo, a fim de obter tudo o que pode interessar às ciências, ao comércio e à indústria da França”.
Durante um ano e meio, Lucas comandou em terra uma série de articulações para o sucesso do empreendimento: conseguiu apoio oficial e cartas de recomendação dos governos da França e da Bélgica; divulgou o roteiro nos jornais locais; elaborou e publicou instruções para os noviços e suas famílias; firmou contrato com os proprietários do Oriental e cláusulas de seguro; reuniu equipagem, professores, médico e capelão; convenceu entidades científicas, como o Instituto de França, e comerciais, como a Sociedade de Encorajamento à Indústria Nacional, a apoiarem sua iniciativa. Às vésperas de partir, visitou o ateliê de Daguerre, adiou por algumas semanas o início da expedição e ainda encontrou tempo para aprender a daguerreotipia, a fim de demonstrá-la nos principais portos por onde passasse o Oriental (ver infográfico).
Aparelhado com armamento de guerra, à semelhança de uma corveta, o Oriental levava a bordo, para surpresa de muitos, a esposa, a cunhada e duas filhas do capitão, além de outros passageiros e de novos equipamentos. Entre eles, a “cozinha destilatória”, para o suprimento de água potável com o aproveitamento da água do mar, e o “fisionotipo”, aparelho para a moldagem em miniatura de perfis cranianos, também destinado às pesquisas etnográficas. O sobrinho do inventor, o jovem Frédéric Sauvage, era um dos inscritos no Oriental.
Quando chegou a Portugal, a expedição foi recebida com pompa: os alunos uniformizados desfilaram pelas ruas de Lisboa e a rainha Maria II recebeu em audiência o comandante Lucas e o capelão Louis Comte para uma demonstração do daguerreótipo. Mas a experiência não funcionou, o que frustrou as expectativas e levou o cônsul francês a dizer que se tratava de um mau presságio. De fato, na travessia do Atlântico, os jovens enfrentaram enjoo, tédio e brigas; chegando a Recife, alguns desistiram de prosseguir; no Rio de Janeiro, outros desertaram. Entre Pernambuco e Bahia, registrou-se o único óbito da viagem – a morte de um aluno belga. E a expedição estava apenas começando...
O Oriental entrou na baía do Rio de Janeiro às vésperas do Natal, como informavam as “entradas e saídas do porto” no Jornal do Commercio. O comandante Lucas e outros membros da expedição logo desceram em terra. As novidades trazidas pelo Oriental também não ficaram a bordo por muito tempo. Em 17 de janeiro de 1840, o jornal noticiava, em primeira mão, uma experiência inédita nas imediações da atual Praça XV de Novembro: “Hoje de manhã teve lugar na hospedaria Pharoux um ensaio fotográfico tanto mais interessante quanto é a primeira vez que a nova maravilha se apresenta aos olhos dos brasileiros. (...) É preciso ter visto a coisa com os próprios olhos para se poder fazer idéia da rapidez e do resultado da operação. Foi o abade Combes [sic] quem fez a experiência: é um dos viajantes que se acham a bordo da corveta francesa L’Orientale (...). Em menos de nove minutos, o chafariz do largo do Paço, a praça do Peixe, o mosteiro de São Bento e todos os outros objetos circunstantes se acharam reproduzidos com tal fidelidade, precisão e minuciosidade, que bem se via que a coisa tinha sido feita pela própria mão da natureza e quase sem a intervenção do artista”.
No dia seguinte, o jornal relatou a apresentação do fisionotipo a D. Pedro II e suas irmãs, Leopoldina e Francisca. A novidade fez tanto sucesso que o jovem Sauvage resolveu ficar no Brasil por um ano para explorá-la comercialmente. Informações mais detalhadas sobre a daguerreotipia chegaram aos leitores três dias depois, incluindo a tradução dos anais da Academia de Ciências de Paris e a demonstração do processo a D. Pedro II e às princesas. As articulações do capitão e a repercussão do invento na cidade foram responsáveis pela visita de Lucas e Comte ao Paço de São Cristóvão, residência do imperador. Quando a expedição seguiu seu curso, deixou por aqui uma grande paixão pela fotografia.
Machado de Assis nasceu em 1839, e aos 20 anos trabalhou na tradução do álbum Brazil pittoresco, do fotógrafo francês Victor Frond, com texto de Charles Ribeyrolles. No dia 7 de agosto de 1864, como redator do Diário do Rio de Janeiro, deixou-nos as primeiras linhas de que se tem notícia sobre a história da introdução da daguerreotipia no Brasil em uma “crônica da semana”. Para outra geração de leitores, ele comentava os primeiros passos de uma novidade já agora amplamente reconhecida entre as maiores invenções de todos os tempos: “Há vinte e quatro anos, em janeiro de 1840, chegou ao nosso porto uma corveta francesa, L’Orientale, trazendo a bordo um padre de nome Combes [sic]. Este padre trazia consigo uma máquina fotográfica. Era a primeira que aparecia em nossa terra. O padre foi à hospedaria Pharoux, e dali, na manhã do dia 16 de janeiro, reproduziu três vistas – o largo do Paço, a praça do mercado e o mosteiro de São Bento. Três dias depois, tendo Sua Majestade aceitado o convite de assistir às experiências do milagroso aparelho, o padre Combes [sic], acompanhado do comandante da corveta, foi a S. Cristóvão, e ali fez-se nova experiência; em 9 minutos foi reproduzida a fachada do Paço, tomada de uma das janelas do torreão (...).”
A história lembrada por Machado ainda devia estar na memória dos contemporâneos, mas o Jornal do Commercio foi, certamente, a gazeta consultada. Sua crônica reproduzia os mesmos erros, como os nomes da embarcação e do padre fotógrafo. Mas ele teve o cuidado de indicar que a primeira demonstração do aparelho na cidade ocorrera no dia 16, isto é, na véspera, e não no dia 17, data em que o relato foi publicado. Seria uma dedução equivocada do cronista ou um indício de que por muitos anos os livros de História registraram esse acontecimento com um dia de atraso? As informações sobre o prelo mecânico adquirido pelo Jornal do Commercio em 1836 e a circulação das notícias da véspera já nas primeiras horas da manhã confirmam que Machado é quem estava certo.
Quando o Oriental partiu do Rio de Janeiro, Soulier de Sauve – um dos cientistas e professores da expedição – e sua esposa ficaram na cidade. Em 1845, ele se tornou o primeiro diretor do Imperial Observatório. Antes que o navio seguisse de Montevidéu para o Chile, Comte também desistiu da viagem (ver box). Buenos Aires estava sitiada pela Marinha de Guerra francesa e Valparaíso era a parada habitual dos que pretendiam atravessar o Pacífico. No porto chileno, mais um professor abandonou a expedição. Por fim, quando deixava Valparaíso, o Oriental naufragou, encerrando ali as promessas de uma memorável viagem de circunavegação. O Jornal do Commercio, com base no Mercúrio, de Valparaíso, reproduziu o relato do capitão Lucas sobre o acidente, ocorrido em 23 de junho de 1840, antes de sua publicação nos jornais europeus.
Na França, cresceram as suspeitas de um naufrágio “provocado”. Esse tipo de fraude não era impossível de acontecer, e a acusação causava danos irreparáveis à reputação de um comandante. Razões não teriam faltado ao capitão Lucas: a indisciplina a bordo, o desligamento dos professores, as deserções da tripulação, a censura de agentes diplomáticos e comandantes navais, as vantagens oferecidas pelo seguro da embarcação... Para agravar as suspeitas, o acidente ocorrera de dia, perto da praia, e todos os náufragos e pertences a bordo foram salvos. Lucas se defendeu das acusações com veemência, e no ano seguinte já estava em Sidney, na Austrália, onde também foi responsável pela primeira demonstração do daguerreótipo. Lá, envolveu-se na disputa pela posse de terras com os ingleses, até que seu rastro desapareceu dos arquivos franceses. Especula-se que tenha morrido nos Estados Unidos na década seguinte.
Desde então, esta controvertida expedição ficou submersa em completo esquecimento, sem referência nos anais da história marítima francesa, embora os registros de bordo do Oriental tenham retornado à França. A iniciativa de trazê-la à tona demorou mais de um século, mas seu alcance foi limitado pela dificuldade de se juntar todas as peças desse quebra-cabeça. Coube a Adrien Carré (1908-1999), médico francês e historiador da Marinha, residente em Nantes, o mérito de realizar as primeiras investigações sobre o tema, publicadas em 1970 em um boletim local, com circulação restrita. A presença do daguerreótipo a bordo era desconhecida pelo pesquisador, como revela seu arquivo pessoal, mas Carré pretendia retomar suas anotações em obra mais ampla, que nunca chegou a escrever.
Tempos depois, o historiador da fotografia Derek Wood encontrou no artigo de Carré várias pistas para desvendar os primeiros tempos da fotografia na Austrália. Wood queria esclarecer como o daguerreótipo chegara a Sidney e quem era o capitão que teria feito por lá as primeiras experiências com o aparelho. O pesquisador teve o pioneirismo de disponibilizar, desde a década de 1990, fontes e artigos no site www.midley.co.uk. Historiadores latino-americanos também mencionaram a chegada do Oriental e da daguerreotipia à América do Sul, graças aos periódicos locais. Mas a dispersão das fontes sobre essa expedição em arquivos franceses, belgas, portugueses e sul-americanos sempre dificultou uma análise global da experiência. A oportunidade de consultar in loco documentos oficiais, relatórios diplomáticos, registros civis, correspondência familiar, diários de bordo e notícias diversas revelou surpresas e controvérsias inesperadas.
Ao juntar no tabuleiro todas as peças dessa história, o imaginário, os preparativos e as circunstâncias que envolveram a viagem de circunavegação do Oriental formaram uma imagem singular. Mesmo sem completar a volta ao mundo, essa expedição levava consigo o daguerreótipo, ilustre passageiro que em pouco tempo revolucionaria a maneira de registrar o planeta e seus habitantes. Afinal, quando tinha apenas 24 anos de história, a “máquina do padre Combes” já levava Machado de Assis a indagar: “Até onde chegará o aperfeiçoamento do invento de Daguerre?”
Maria Inez Turazzi é pesquisadora do Museu Imperial, associada ao Centre d’Histoire des Techniques et de l’Environnement e autora de Iconografia e patrimônio (Fundação Biblioteca Nacional, 2009).
Saiba Mais - Bibliografia
KOSSOY, Boris. Hercule Florence, a descoberta isolada da fotografia no Brasil. 3ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Edusp, 2006.
SANDRONI, Cícero. 180 anos do Jornal do Commercio, 1827-2007. Rio de Janeiro: Quorum, 2007.
VARESE, Juan Antonio. Historia de la fotografía en el Uruguay; fotógrafos de Montevideo. Montevidéo: Banda Oriental, 2007.
Saiba Mais - Internet
www.fotoplus.com/fpb/fpbintr.htm
Foco na viagem
Maria Inez Turazzi