Fontes de mitos

Marcelo Motta Delvaux

  • Obra de Vicenzo Coronelli, 1689. No interior do Brasil, além das famosas lagoas, a localização da "Serra do Sabarabussu". Acreditava-se na existência de uma serra resplandecente no interior do território. (Fundação Biblioteca Nacional)Se os espanhóis haviam se deparado com tesouros durante a conquista do império inca, entre 1531 e 1533, por que não haveria preciosidades semelhantes no interior do Brasil? Apesar de as terras brasileiras parecerem imensas e difíceis de explorar, os cronistas e viajantes do século XVI estavam convictos de que as áreas pertencentes a Portugal e Espanha no Novo Mundo tinham as mesmas características. O sertão brasileiro prometia ser tão próspero em metais preciosos quanto o Peru, já que ambos, supostamente, constituíam uma mesma realidade geográfica.

    Nos dois primeiros séculos de ocupação da América, os portugueses se espraiaram pelo litoral. O interior do território era praticamente desconhecido e esse imenso “vazio geográfico” inspirava a crença em tesouros magníficos, escondidos nas vastidões do Brasil. Por isso, diversos lugares lendários aguçaram a imaginação dos aventureiros, que se arriscavam no interior em busca de riquezas minerais. E os cartógrafos, movidos pela fé em lugares míticos, preenchiam as lacunas dos mapas com lagoas, serras e cidades fantásticas.

    Os mitos difundidos na América têm basicamente duas origens: o Eldorado, que está ligado à penetração e à ocupação dos Andes peruanos pelos castelhanos e às investidas pioneiras na Amazônia; e o imaginário elaborado durante o povoamento do rio da Prata e do Chacoparaguaio no século XVI.

    A lenda do Eldorado surgiu a partir da conquista de Quito pelo espanhol Sebastián de Benalcázar, em 1533. Nessa época, contava-se a história de um chefe indígena que se banhava em uma lagoa com o corpo coberto por ouro em pó. Anos depois, o Eldorado se converteu, no imaginário dos exploradores, de lagoa para a cidade mítica de Manoa, migrando dos Andes para a Amazônia. O local passou a ser representado em muitos mapas, como na carta da Guiana elaborada pelo holandês Jodocus Hondius em 1599, às margens de um lago denominado Parima, na região entre a Venezuela e a Guiana.

    Outra lagoa lendária figurava em fontes cartográficas da América portuguesa: o “Alagoado Eupana”. Gigantesca, era considerada a nascente de rios importantes como o São Francisco, o Rio da Prata e alguns afluentes do Amazonas, tendo sido conhecida por vários outros nomes, como Alagoa Grande, Lagoa Dourada e Paraupava.

    Um dos conquistadores espanhóis a percorrer a região do rio da Prata e o Paraguai foi o capitão Hernando de Ribera, nos anos de 1543 e 1544. Em suas narrativas, encontram-se muitas referências fantásticas, como a menção às “amazonas”, as mulheres guerreiras da mitologia grega, e à existência de um lago denominado Casa do Sol: “Informaram [os índios] ainda que por aquela parte em que moravam as ditas mulheres havia ainda muitas outras populações, (...) perto de um lago muito grande, que os índios chamavam de Casa do Sol, porque era ali que o sol desaparecia”.

    Outros textos produzidos por cronistas portugueses davam descrições parecidas, como os de Pero de Magalhães Gandavo (1540?-1579?), do padre Manoel da Nóbrega (1517-1570) e de Gabriel Soares de Sousa (1540?-1590). Gandavo menciona uma lagoa existente na nascente do rio São Francisco: “Principalmente é pública fama entre eles [os índios] que há uma lagoa mui grande no interior da terra donde procede o Rio de São Francisco”. Gabriel Soares de Sousa, além da alusão às amazonas, chama esse lago de Alagoa Grande: “Ao longo deste rio [São Francisco] vivem agora alguns caetés, de uma banda, e da outra tupinambás; mais acima vivem os tapuias de diferentes castas, tupinaés, amoipiras, ubirajaras e amazonas (...). Este gentio se afirma viver à vista da Alagoa Grande”.

    Como as regiões andina e amazônica eram distantes da costa atlântica, onde os portugueses estavam nessa época, o Eldorado não exerceu tanta influência sobre esses colonizadores. Outra razão para este pouco interesse foi a prioridade dada à prata e às esmeraldas, em vez do ouro, pelos aventureiros que adentravam o sertão. Já na primeira metade do século XVI, as notícias transmitidas pelos índios guaranis do sul do Brasil levaram ao surgimento da lenda sobre uma Serra da Prata no interior do continente. Falava-se também, na capitania de Porto Seguro, sobre uma Serra Resplandecente, acontecimento revelado por Gandavo: “A esta Capitania de Porto Seguro chegaram certos índios do Sertão a dar novas dumas pedras verdes que havia numa serra muitas léguas pela terra dentro, (...) e que esta serra era mui formosa e resplandecente”.

    Esta serra pode ter originado outras montanhas lendárias brasileiras. Conforme revela Gandavo, a Serra Resplandecente era vista como um monte riquíssimo em esmeraldas. A partir do século XVII, surgiram duas novas referências míticas: o Sabarabuçu e a Serra das Esmeraldas. O vocábulo Sabarabuçu corresponde à denominação na língua tupi para a Serra Resplandecente dos cronistas portugueses. Mas, no lugar de esmeraldas, o Sabarabuçu era uma montanha de prata, possivelmente uma influência da Serra da Prata quinhentista, cuja existência era largamente comentada, no século anterior, ao longo do litoral brasileiro e do rio da Prata até o Paraguai.

    O Sabarabuçu e a Serra das Esmeraldas foram, durante o século XVII, os principais alvos das expedições ao interior do Brasil. Vários mapas e relatos da época incluíam essas montanhas fabulosas como elementos geográficos “reais”. A descrição da capitania do Espírito Santo, elaborada pelo cartógrafo português João Teixeira Albernaz em torno de 1626, apresenta a primeira representação gráfica da Serra das Esmeraldas. O Sabarabuçu, por sua vez, é retratado no mapa da América Meridional do cartógrafo italiano Vincenzo Maria Coronelli, de 1691. O curioso é que esses dois desenhos exibem uma lagoa sem nome junto dessas serranias míticas, sugerindo sua vinculação com a lenda da Alagoa Grande. Esta associação é feita, explicitamente, em um mapa da capitania de Sergipe, ao mostrar um lago denominado “Upabuçû Lagoa Grande” próximo a um monte chamado “Itaberaba”. Aqui, vale a pena chamar a atenção para a nomenclatura: Itaberaba e Sabarabuçu, etimologicamente, possuem o mesmo significado na língua tupi.

    As montanhas e lagoas lendárias não foram rapidamente esquecidas com a descoberta do ouro nas Minas Gerais, no final do século XVII. Em um mapa produzido por volta de 1700 pelo padre jesuíta francês Jacobo Cocleo, é possível observar citações míticas como o Sabarabuçu, a Serra das Esmeraldas e a “Itaberaba monte que resplandece”. Além destas referências herdadas dos séculos anteriores, a abundância das jazidas auríferas enriqueceu a imaginação dos exploradores com novas crenças e lugares fabulosos, como o Morro da Esperança – supostamente localizado no sertão do Rio Grande, ao sul da capitania –, a Casa da Casca, a Ibituruna e a Serra das Ametistas, avidamente buscadas nos “sertões do leste”, nas regiões orientais do rio Jequitinhonha e do rio Doce.

    À medida que a mineração avançava por áreas até então desabitadas, alguns mitos perdiam seu fascínio, enquanto outros se deslocavam para zonas ainda desconhecidas do sertão, como o leste da capitania de Minas Gerais. Pelo menos até meados do século XIX, terras inexploradas provocavam o desejo de riquezas e, claro, muita fantasia. 

     

    Marcelo Motta Delvaux é autor da dissertação “As minas imaginárias: o maravilhoso geográfico nas representações sobre o sertão da América portuguesa – séculos XVI a XIX” (UFMG, 2009).

     

    Saiba mais - Bibliografia

             COSTA, Antônio Gilberto. Roteiro prático de cartografia: da América portuguesa ao Brasil império. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.

    GANDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da terra do Brasil; História da Província Santa Cruz. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1980.

    HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do paraíso. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

    MICELI, Paulo. O tesouro dos mapas: a cartografia na formação do Brasil. São Paulo: Instituto Cultural Banco Santos, 2002.