Forças políticas

  • Apesar de ser um tema bastante comentado, o golpe de 1964 ainda é pouco estudado. É para entender esse evento, tão decisivo na história do Brasil contemporâneo – sem cair na teleologia de que o golpe era inevitável –, que Jorge Ferreira e Ângela de Castro Gomes escreveram o livro "1964; o golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao regime democrático e instalou a ditadura no Brasil"(Rio de Janeiro, Civilização Brasileira),  lançado no dia 13 de março de 2014. Nesta entrevista eles falam sobre a experiência liberal democrática que existiu entre 1945 e 1964 e as questões que enfraqueceram o governo Jango (1961-1964) e proporcionaram sua derrubada.

    Revista de História: Sobre o que é o livro?

    Jorge Ferreira: É uma obra que trata da história do governo João Goulart (1963-1964) e do golpe civil-militar, visto como um evento que encerrou a experiência democrática no Brasil. Analisamos as forças políticas envolvidas neste governo – tanto de esquerda, centro e direita – para entender a crise política que veio nos últimos meses.

    RH: Por que foi feita esta leitura?

    JF: Em geral, o golpe é visto como a culminância de um processo conspiratório contra o governo Goulart ou como o início da ditadura.

    Angela de Castro Gomes: Há poucos estudos sobre o golpe como um evento. Isso não é casual: o período todo da ditadura civil-militar chama muita atenção – principalmente com o processo de redemocratização. O interesse dos pesquisadores se debruça sobre este período em vários aspectos. O golpe como evento fica encoberto. Aqui, não esgotamos o assunto, mas tentamos estimular novas pesquisas.

    RH: E como isso foi feito?

    ACG: Para entender o golpe, o processo de reflexão histórica é voltar ao período anterior. Trata-se de pesquisar o governo procurando, através da sua dinâmica, entender processos que indicam a possibilidade do golpe, sem ser teleológico. Quer dizer, não assumindo uma perspectiva da história de que o governo Goulart estava condenado desde o início a ser um fracasso, um governo caótico e que, portanto, terminaria no golpe.

    JF: O golpe militar ocorreu por escolhas políticas, estratégias sociais tomadas, como o abandono do Plano Trienal e a não adesão a uma frente de centro-esquerda no Congresso. O futuro vai se construindo com estratégias e escolhas feitas no presente.

    RH: Que eventos vocês destacam?

    ACG: A renúncia do presidente Janio Quadros é o evento inaugural, porque demarca bem um procedimento golpista. Quer dizer, a renúncia foi ela mesma uma tentativa de desestabilizar as instituições liberal-democráticas vigentes. Não havia naquele momento um problema grave - do ponto de vista institucional - na República. O problema aparece com a renúncia.

    RH: Que forças políticas atuavam naquele momento?

    ACG: Insistimos que a experiência política vivida no Brasil entre 1945 e 1964 é uma experiência liberal-democrática. E o parlamento é um ator político importante. A ação de deputados e senadores em determinados momentos é decisiva para a manutenção da ordem institucional. Houve ali a consolidação de partidos políticos e de uma atividade parlamentar com poder legislativo que se fortalecia. Havia liberdade no sentido de realizações de campanhas eleitorais. A democracia só não era plena porque isso não existe nunca.

    RH: Por quê?

    ACG: Porque há sempre demandas quando há democracia. Uma de suas características é o movimento para expandir os direitos. Então quando se vive num regime democrático, sempre há o desejo de que seja mais democrático. Sempre há uma incompletude.

    RH: E como era a democracia no período?

    ACG: Houve, em momentos eleitorais, tentativas de desestabilização. O Partido Comunista não era legal. Mas no conjunto, é um período fundamental para o fortalecimento de instituições, como partidos políticos, sindicato, parlamento. Durante o governo Jango, o Legislativo aparece para resguardar seus poderes e consegue porque está em um período liberal.

    RH: Havia polarização ideológica?

    ACG: Sim, mas a cena política não era apenas isso. Quando se fala do golpe, se fala de direita e esquerda mais radicais. Mas havia forças progressistas de esquerda, sem um discurso extremista. Quando elas desaparecem, some a possibilidade de pensar que outro caminho poderia ter sido percorrido, com reformas e democracia.

    JF: Pesquisas do Ibope feitas no período mostram que a reforma agrária, em várias classes sociais, obtinha aprovação altíssima. Em pesquisas sobre as tendências políticas da população, o nível de aprovação dos candidatos daquilo que o Ibope chama de “centro” (Juscelino Kubitschek e Magalhães Pinto) passam de 50%. Ou seja, existe uma sociedade de tendência reformista, mas com posições políticas de centro. A dinâmica do congresso reflete isso.

    RH: Como a grande imprensa se posicionou durante o governo Jango?

    ACG: De forma variada. Faziam críticas, mas também elogiavam. Na fase final do governo, a maioria dos grandes jornais construiu a imagem de um presidente de alto risco, golpista e comunista.

    JF: Mostramos que a imagem de um governo sitiado e em crise ocorreu em um período delimitado: de setembro de 1963 a março de 1964. No início, há o apoio de forças conservadoras. Jornais como O Globo, Folha de S. Paulo, Jornal do Brasil elogiam Goulart e o Plano Trienal, porque queriam que a crise fosse controlada. Mas cada vez que o presidente se aproxima da esquerda, mais ele é hostilizado.

    RH: As forças golpistas eram contra a reforma agrária?

    JF: Não. Eram contra um tipo de reforma agrária. A questão de como fazer a reforma é chave, já que a esquerda radical defendia não indenizar os proprietários das terras improdutivas. O golpe foi contra um tipo de fazer a reforma e, sobretudo, contra as esquerdas radicais. Ele veio para derrubar o presidente após esta aliança. A reforma era pauta da discussão política.

    RH: Havia planos de fazer uma ditadura?

    JF: Não. Lembrando que as lideranças civis do golpe eram candidatas às eleições presidenciais de 1965. Quando as Forças Armadas assumem o poder, há conflitos, discussões e impõe-se um regime que se torna cada vez mais autoritário.

    ACG: A aliança era formada por conservadores de direita radical, mas principalmente conservadores moderados, que defendiam o regime democrático. Queriam a manutenção da ordem institucional, que Goulart chegasse ao fim de seu governo ou, se não chegasse, que houvesse ao menos eleições. O golpe depois mostra que não haverá eleições, mas isso ninguém podia saber.