Francisco José Calazans Falcon

Revista de História

  • A trajetória de Francisco José Calazans Falcon confunde-se com o estabelecimento do ofício de historiador nas universidades do país. Presente nos cursos mais importantes, parecia ter a capacidade de estar em todos os lugares ao mesmo tempo, dando muita aula e integrando-se àqueles que criaram as linhas de pesquisa.

    Seu livro A época pombalina é leitura obrigatória para quem se propõe a estudar o governo do marquês de Pombal (1750-77), tornando-se referência central não só pela qualidade da análise, mas também pela abrangência das fontes utilizadas. O tempo afinou seu senso crítico. Nada passa despercebido ao mestre, nem mesmo sua própria tese: “Quando fui começar a estudar, Pombal era para mim um momento único excepcional da história portuguesa; um momento de visão modernizadora, secularizante. Depois que continuei a estudar, comecei a relativizar esse caráter excepcional, porque percebi que existem muitas coisas já antes de Pombal”.

    O professor Falcon recebeu a Revista de História em sua casa para um bate-papo descontraído cheio de revelações: os primeiros anos de carreira, “uma correria danada, atravessando a baía e subindo a serra”; a difícil missão de lecionar história driblando os agentes da ditadura militar e o processo do qual foi réu nos anos de chumbo, acusado “de espalhar comunistas pelas faculdades do Rio”. Sobre o papel da crítica para o trabalho do historiador, é contundente: “Acredito que o trabalho intelectual, o trabalho do historiador, avança justamente pelo confronto das divergências, das oposições. Uma unanimidade acaba sendo ilusória”.

  • Revista de História – Como nasceu sua paixão pela história?

    Francisco Falcon – Isso remonta aos meus tempos de ginásio, no internato do Colégio Pedro II. O que mais me incentivou foi, na quarta série, quando meu professor era o Álvaro Lins, grande crítico de literatura, mas excelente professor de história. Ele me estimulou muito. Um dia eu fui fazer uma exposição sobre a conquista da Guiana Francesa, na época do d. João. Ele achou uma maravilha! Aí comecei a me interessar... Terminado o quarto ano, fui para o Colégio de Aplicação da Nacional de Filosofia, recém-fundado. Minha turma foi a segunda, em 1949. E lá tive como professora de história, por três anos seguidos, a Marina São Paulo Vasconcellos, que realmente me incentivou muito, despertou meu interesse. Acho que aí eu comecei a gostar mesmo de estudar história... Eu e vários da mesma turma fomos fazer curso de história na Nacional de Filosofia.

    RH – Era uma época muito marcada por essas opções quase obrigatórias – direito, engenharia... Era um gesto corajoso fazer história?
    FF – Ah, era. Meu pai achou que eu ia morrer de fome e era preferível eu fazer jornalismo. Mas eu teimei, com apoio de minha mãe. Mas a gente vivia realmente muito preocupado. Lembro que, no final do curso, ainda tivemos um movimento grande justamente contra uma portaria ministerial que facultava a médicos, advogados, juízes, engenheiros (cada qual na sua área) a lecionar sem cursar a faculdade de filosofia: direito podia lecionar história, português, latim; médico podia lecionar história natural, ciências; engenheiro podia lecionar matemática, física. Foi uma greve fantástica, se não me engano em 55.

  • RH – E sua trajetória como professor?
    FF – Comecei a lecionar quando ainda fazia o último ano da faculdade, em 1955, dando aulas na Faculdade Fluminense de Filosofia – Universidade Federal Fluminense (UFF) nem sonhava existir. Em 1956, fui convidado pela professora Maria Yedda Linhares a dar aulas na Faculdade Nacional de Filosofia.  Eu era o que se chamava “auxiliar de ensino não-remunerado”. Mas eu não era exceção, aquilo era uma praxe: os que começavam a trabalhar tinham que ficar algum tempo – alguns anos, às vezes – trabalhando sem remuneração, à espera de que viesse um contrato, uma nomeação, um concurso – que eram coisa rara. Em seguida, comecei a lecionar também na Católica de Petrópolis, no Instituto Rio Branco, no Itamaraty e na Escola de Sociologia e Política da PUC. Uma correria danada, atravessando a baía e subindo a serra.

    RH – E como era o ensino de história nessa época?
    FF – É um meio século em que as coisas mudaram radicalmente. O doutorado, por exemplo, não existia. Não era mais que uma inscrição que você podia fazer na secretaria. Eu tenho guardado um canhotozinho, “inscrito do curso de doutorado”. Que curso? Não tinha curso, nada.

    RH – Quando isso mudou?
    FF – A discussão sobre pós-graduação é dos anos 60, ligada à Reforma Universitária, aos movimentos estudantis. O envolvimento dos docentes tinha um sentido, mas sofreu uma inflexão após 64, quando se transformou em uma forma de contestar o regime militar e por isso se tornou alvo da repressão. Então, misturou-se a luta política mais geral com a luta pelas reformas na universidade. Nisso, o governo militar solicitou ao Conselho Federal de Educação um parecer do Newton Sucupira, o qual ainda hoje, em grande parte, rege essa estrutura. Veio o AI-5 e o governo aproveitou isso e fez a nova lei do ensino superior, que consagrou a Reforma Universitária.

  • RH – Havia espaço para pesquisa?
    FF – A gente nem pensava em pesquisa. O que eu acho graça é que as pessoas pensam que as coisas sempre existiram tal como existem hoje. A gente começou, realmente, a pensar em pesquisa talvez em 1959 ou 1960 – eu, a professora Yedda –, a partir dos nossos primeiros contatos, em 1958, com o pessoal da Universidade de São Paulo, onde a preocupação com a pesquisa estava sedimentada.  E os alunos de história começaram a se movimentar, criaram seus núcleos de estudantes.

    RH – Mas havia, nessa época, contato entre as universidades, entre os departamentos? 
    FF – Os contatos eram muito escassos. Até que em 1960 apareceu um grupo – José Roberto do Amaral Lapa, Maria da ConceiçãoVicente de Carvalho e Olga Pantaleão. Vieram nos convidar – eu, a Yedda, o Hugo Weiss e, por sugestão nossa, o professor Fernando Lima, da UERJ – para participar de um seminário previsto para 1961, em Marília, onde iriam participar os professores Fernando Novais, Eduardo de Oliveira França, Sérgio Buarque e ainda muitos outros. Esse seminário tinha um objetivo: produzir um currículo de história.

    RH – E qual foi a direção tomada a partir de então?
    FF – Começamos a ficar convencidos de que tínhamos que fazer duas coisas: pesquisar e redirecionar o nosso curso para alguma coisa mais atual.

    RH – E como isso foi feito na prática?
    FF – Bem, ao contrário das outras cadeiras, a gente já trabalhava com documentos – embora limitados à história, vamos chamar assim, diplomática. Nossa primeira idéia era fazer uma pesquisa sobre o que chamamos o Atlântico Luso-Afro-Brasileiro. Era um estudo sobre relações comerciais entre esses três pontos, e cada um de nós pegaria um porto brasileiro. Existia um Conselho de Pesquisa para distribuir recursos para projetos de pesquisa. Um dia eu encontrei a professora Yedda furiosa da vida, porque ela tinha sido informada de que, quando o nosso projeto foi apreciado nesse conselho da universidade, um professor se levantou e disse: “Bem, mas onde está a embarcação, possivelmente um submarino, para eles fazerem essa pesquisa do Atlântico?”. [Risos.] Para você ver o nível!

  • RH – E como ficou o ambiente das universidades com o Golpe de 1964?
    FF – No 1o de abril houve uma invasão na Faculdade Nacional de Filosofia. Nós tínhamos uma pequena biblioteca de história moderna e contemporânea que foi toda saqueada, depredada. Era um momento pesado. Nesse mesmo ano a Yedda sumiu, porque foi perseguida por ser diretora da Rádio Ministério da Educação. Ficamos eu e o Hugo Weiss com a responsabilidade de levar adiante a cadeira de história moderna e contemporânea. Foi tenso o dia em que tivemos que entrar na faculdade: “Será que eles estão à nossa espera? Será que vão acabar conosco?”. Mas depois a gente foi levando, reorganizando as coisas, tocando para a frente.

    RH – O clima piora muito com o AI-5?
    FF – Foi um período difícil, os chamados anos de chumbo. O Eremildo Viana vigiava todo mundo, tinha auxiliares – faxineiros, varredores, todo mundo prestava serviço a ele. Eu dava as aulas do modo que sempre dera, com os mesmos autores. Usava muito o Maurice Dobb para dar Revolução Industrial; o Albert Soboul nas aulas sobre a Revolução Francesa. Nunca mudei nada em função do clima existente, mas tinha um indivíduo estranho, encostado em uma vassoura, que diziam ser um agente do Eremildo para saber o que eu estava dando. Não sei se um pobre-diabo daqueles podia entender alguma coisa. Nesse período – de 70 até 78, quando finalmente o Eremildo saiu –, o que eu fiz foi, na medida do possível, reduzir ao mínimo a minha presença lá. Tirei tudo que podia de licença-prêmio e dois anos de licença sem vencimentos. Tratava de driblar o que eu podia, entrar lá, botar as aulas em horário em que eu tivesse chance de não encontrar com ele, e assistir o mínimo possível de reunião de departamento. E ficar mudo.

    RH – Que grupo o apoiava?
    FF – Ele se dizia muito bem apoiado pelos militares. Mas o José Linhares, que tinha bons contatos na área militar, dizia que eles detestavam o Eremildo. Aturavam, mas o consideravam um sacripanta, um indivíduo realmente inqualificável. A Yedda conta que num belo dia, na entrada da faculdade, o Elio Gaspari deu umas boas bolachas no Eremildo. Chamou ele e, bum!, arrebentou. Me lembro de um dia, a única vez em que eu tremi. Subi no elevador, a Yedda estava possessa porque o Eremildo tinha arquitetado um processo contra ela. Ela abriu a bolsa e puxou uma pistola. “Eu vou acabar com aquele crápula!” E eu: “Yedda, não faça isso. Não vale a pena. Guarda esse negócio.” E ela com aquele trabuco.

  • RH – E o senhor nunca sofreu diretamente com a repressão?
    FF – Chegaram a abrir um processo no meu nome, do qual só fui saber depois, e que fazia parte de uma pilha imensa de processos de professores que deveriam ser cassados – no mínimo, aposentados. Meu processo foi arquivado, mas em 1973 eles receberam ordem de rever aqueles processos para poder saber se iam ter seqüência ou seriam definitivamente arquivados. Foi aí que eu entrei na brincadeira e fui me defender na justiça. O processo dizia que eu, sob a orientação da Yedda, estava espalhando comunistas pelas faculdades do Rio.

    RH – E como nasceu o interesse pelo tema da ilustração portuguesa?
    FF – Comecei a pesquisar companhias de comércio, e daí o mercantilismo. Em seguida, passei para o absolutismo ilustrado, em Portugal e Espanha, me dedicando especialmente ao período pombalino. Porque, na verdade, meu ambicioso projeto de doutorado era fazer um imenso estudo comparativo entre o reinado de d. José e o reinado de Carlos III na Espanha, mas vi que não dava, por causa do  prazo para a entrega da tese.

    RH – E o que é específico dessa história portuguesa que produz um marquês de Pombal?
    FF – Eu já tive, em épocas diferentes, visões também diferentes sobre isso. Quando comecei a estudar, Pombal era para mim um momento excepcional da história portuguesa; um momento de visão modernizadora. Depois, vi que devia relativizar esse caráter excepcional, pois percebi que já existiam muitas coisas antes de Pombal. Eu já tinha estudado muito sobre o início do século XVIII, a época do padre Rafael Bluteau, dos Ericeiras. Mas o que é interessante perceber são as idéias iluministas depois de Pombal, assumindo outras características. Eu tentei mostrar como o mercantilismo era incongruente e, no entanto, era lógica a associação entre mercantilismo e práticas ilustradas. Porque, na verdade, o mercantilismo – em termos de idéias econômicas – era antiilustrado por excelência. Mas é interessante ver como isso se articula, em Portugal, de modo a adquirir uma certa logicidade na prática pombalina.

  • RH – E qual a importância das reformas pombalinas para a história de Portugal e do Brasil?
    FF – Acho que as práticas reformistas foram decisivas em alguns setores e praticamente inexistentes em outros. Do ponto de vista educacional, houve muita coisa importante que se realizou. Na parte econômica não há grandes mudanças. No caso do Brasil, havia grande preocupação com a extração de ouro e diamantes do Distrito Diamantino. Esse foi um problema sério: uma minúcia dos regulamentos que não condizia com a precariedade dos recursos postos à disposição de quem devia aplicá-los. Então, para mim, as reformas pombalinas não podem ser analisadas a partir dos textos emanados da metrópole. Você tem que ver como esses documentos foram lidos, entendidos e, eventualmente, postos em prática. Procurei mostrar que uma coisa são as belas declarações dos textos pombalinos, cheias de referências às Luzes, e outra a realidade dessas providências no âmbito colonial, ou, como chamamos agora, na América portuguesa. Recentemente, escrevi um artigo desmistificando o Tratado de Methuen [ver “O Império luso-brasileiro e a questão da dependência inglesa”, Nova Economia 15 (2), pp. 11-34, maio-agosto de 2005].

    RH – Por quê? O Tratado de Methuen não teve tanto peso?
    FF – Acho que não tem. Na própria visão do Pombal, o Tratado de Methuen é quase irrelevante. Ele está muito mais preocupado com os tratados do século XVII, aqueles, sim, fatais para Portugal, durante as Guerras da Restauração. Aqueles tratados – acho que de 1654 e 1660 – é que, segundo ele, deram a vantagem decisiva aos ingleses. Na verdade, colocar o Tratado de Methuen na origem de todos os males é uma afirmação que aprendi com o Nelson Werneck Sodré. Tudo bem, depois a gente vai revendo essas coisas. Há um excesso de valoração atribuído ao Tratado de Methuen.

    RH – O Brasil herdou o peso da palavra escrita, da legislação?
    FF – Acho que sim. Embora também tenha se tornado um tabu, as pessoas falam em iberismo, mas a gente não sabe bem que diabo é isso. Explicação das nossas culpas, das nossas falhas ou reconhecimento de uma tradição? De fato, o Brasil herdou essa tradição pesada – que você vê também em Portugal – da valorização das funções burocráticas.  Acredito que, quando você fala hoje em iberismo, é preciso saber em que sentido está tratando. Para alguns iberismo tem uma conotação negativa – síntese de todos os males, de todo arcaísmo –, para outros é apenas o reconhecimento de uma tradição cultural, que não é necessariamente má ou boa, mas tem aspectos variáveis. É apenas o reconhecimento de uma diferença em relação, por exemplo, ao anglo-saxônico e a outras tradições.

  • RH – E esse iberismo encontra continuidade no Brasil?
    FF – Acho que de um lado há uma herança autoritária, ora no primeiro plano, ora semi-submersa. Basta ver a época do reinado do d. Pedro I para perceber como essa coisa está presente. Já na época do d. Pedro II... Eu não me considero tão em condições de discutir essa questão, mas acho que ela sobrevive de outras maneiras. Não de forma tão ostensiva. De fato, essa visão iluminista das coisas, de ser detentor de um conhecimento, de uma racionalidade que não pode ser contestada, isso é mais ou menos constante. É cíclico na história brasileira. Mas, dizer se isso aí é devido ao Pombal, às vezes é exagerado também. Mas acho que está dentro da estrutura.

    RH – A figura do Pombal ficaria mais diluída?
    FF – Ah, sim. Ele, de fato, não é aquele deus que surge, que faz e acontece. Ele tem uma trajetória, não surge assim de repente empolgando, determinando. É preciso considerar a importância, por exemplo, que teve para a posição dele o terremoto de Lisboa. Seria uma especulação: como seria Pombal sem o terremoto? Isso é uma das tais histórias hipotéticas. Mas acho que é preciso ver sob vários ângulos, e não atribuir tudo a essa figura, a esse Pombal que só existe na imaginação.

    RH - O que interessa ao senhor atualmente?
    FF – Estou mais preocupado com a historiografia contemporânea. Eu gosto de ler as coisas do Capistrano de Abreu, considerando, sobretudo, os endeusamentos, as louvações do José Honório Rodrigues – tentando trazer a importância do Capistrano para um terreno mais real, mais concreto.

  • RH – A história hoje vai bem?
    FF – O historiador espanhol Carlos Barros, que organiza os encontros da História Debate, na Espanha, diz que a história andou para trás. Eu morro de rir. A história deu retrocesso e hoje está mais para Ranke, para Langlois e Seignobos do que para os Annales ou para o marxismo. Eu acho interessantíssimo. Ele diz que o processo da história foi o inverso: ela foi buscar cada vez mais o empirismo, a neutralidade do historiador, o medo de o historiador tomar posição. Apenas dizer: “Os textos nos dizem isso, assim”.

    RH – E a postura crítica na universidade?
    FF – A crítica seria importante, se existisse. O problema é que a crítica sofreu um eclipse. As pessoas, ou dizem apenas banalidades, obviedades sobre os trabalhos apresentados, ou elogios. Ninguém quer mais se comprometer, ou poucos querem. Você assiste às defesas de tese e raramente vê uma crítica contundente ou mesmo construtiva ao trabalho que está sendo examinado. E eu acredito que o trabalho intelectual, o trabalho do historiador, avança justamente pelo confronto das divergências, das oposições. A unanimidade acaba sendo ilusória.
     
    RH – Que personagem histórico gostaria de ter sido?
    FF – Nas minhas fases mais radicais, eu adorava Robespierre. Depois, fui me contentando com Tocqueville ou, quem sabe – eu gostava muito de história inglesa –, o Gladstone. Mas, na verdade, nunca me fixei em um personagem. Em épocas diferentes, foram diferentes modelos. Gostava muito de Trótski. De todos da Revolução, o que eu achava o mais genial, o mais sofrido também, era Trótski. Mas, em história do Brasil, não sei qual seria a figura ideal. Durante muito tempo quiseram me convencer de que era o Rui Barbosa. Mas isso era o meu ramo de origem baiana – minha mãe era baiana, e eu tinha um tio que, quando eu chegava lá, dizia: “Homem era o Rui!”.