Francisco Julião – Uma Biografia

Carlos Augusto Addor

  • “Com Jesus Cristo na boca e Satanás no coração”. De acordo com Francisco Julião, o líder maior das Ligas Camponesas no nordeste brasileiro, nas décadas de 1950 e 1960, esta expressão sintetiza bem a postura dos latifundiários em relação aos trabalhadores rurais. Sempre se afirmando cristãos, usineiros e senhores de engenho, são cruéis na exploração do camponês e também impiedosos na aplicação de castigos violentos para punir eventuais atos ou atitudes de insubmissão.

    Exemplo típico da exploração é o cambão, uma espécie de herança da corveia da Europa feudal: alguns dias de trabalho gratuito por ano nas terras do senhor. Exemplo extremo de castigo violento, verdadeira tortura, é o cabocó: o trabalhador “rebelde” era jogado e mantido por longas horas ou mesmo dias seguidos num tanque com água fria na altura da boca. Mentalidade e práticas impregnadas de crueldade e autoritarismo.

    Nesse contexto nasceu Francisco Julião Arruda de Paula, em fevereiro de 1915, na Fazenda Espera (antes Boa Esperança), município de Bom Jardim, no Agreste Pernambucano. Seus pais, o major Adauto Barbosa de Paula e dona Maria Lídia Arruda, faziam parte de um núcleo familiar mais amplo composto por pequenos e médios proprietários de terras e engenhos. Inteligente e ativo, o menino (segundo de sete filhos), terminou os estudos básicos e preparatórios e, já rapaz, foi morar na capital, onde se formou, em 1939, na tradicional e prestigiosa Escola de Direito do Recife.

    Ainda muito jovem, advogado recém-formado, Julião, motivado por sincera indignação diante de tanta injustiça, começa a defender os camponeses em seus conflitos com os grandes proprietários de terras. Percorre, com o Código Civil embaixo do braço, fazendas e engenhos do Agreste, exortando os trabalhadores a não prestarem o cambão e explicando a eles que esta é uma prática ilegal, que trabalho não remunerado é trabalho escravo. Em suma, dizendo aos camponeses que, ao menos neste caso, a lei estava do lado deles. Conseguindo obter várias vitórias judiciais e cobrando honorários simbólicos (ou não cobrando nada), seu prestígio e sua popularidade junto aos camponeses crescem rapidamente. A grande questão, para além do cambão, é a concentração fundiária, a propriedade da terra e seu uso. Julião consegue algumas vitórias também no sentido de evitar, ou de postergar por longo tempo, ações de despejo de posseiros pressionados por latifundiários. Nesse meio-tempo, também defende prostitutas do Recife; enfim, vai se especializando em assumir causas muito malvistas pelas elites políticas de Pernambuco.

    Voltando à questão agrária: o caso do Engenho Galileia, no município de Vitória de Santo Antão, zona do Agreste, é o marco inaugural e simbólico no processo de formação das Ligas Camponesas. Depois de longo processo judicial, as terras são expropriadas pelo poder público em 1955, ano da fundação da Sociedade dos Plantadores (a Liga Camponesa) de Pernambuco. As terras e o engenho passam a ser administrados na prática pelos camponeses, os galileus, em gestão coletiva. Esse processo começa a incomodar profundamente os latifundiários da região. Os conflitos pela terra se radicalizam. Julião, além da defesa jurídica dos camponeses, escreve e divulga inúmeros manifestos, panfletos e cartilhas sobre a questão da terra, e organiza protestos e manifestações públicas com milhares de trabalhadores rurais. Aos poucos, vai elaborando a proposta de uma reforma agrária radical, “na lei ou na marra”.

    Ao mesmo tempo, constrói sua carreira política. Filia-se ao Partido Socialista Brasileiro, elegendo-se deputado estadual em 1954 e 1958, e deputado federal em 1962. Nesse momento, quando Julião já é o maior líder dos camponeses nordestinos, a reforma agrária (no contexto das reformas de base) ganha dimensão nacional, principalmente a partir da posse de João Goulart na Presidência da República. Os sindicatos rurais, que começam a ser organizados no início dos anos 60, seriam, na visão de Julião, uma espécie de “filhos” das Ligas Camponesas. Ele escreve um documento com esse sentido, “Bença, Mãe”, publicado em dezembro de 1963.

    Com o golpe militar de 1964, Julião, depois de alguns dias confinado no Congresso Nacional em Brasília, opta pela fuga e pela clandestinidade, de onde tentaria, sem êxito, organizar a resistência contra a ditadura. Depois de muitas peripécias, é delatado e preso em junho desse ano. Permanecerá cerca de um ano e meio em diferentes cárceres (“oito calabouços”), em Brasília, no Rio de Janeiro e em Recife, sofrendo maus-tratos e torturas físicas e psicológicas, e tendo sua já frágil saúde extremamente debilitada. Julião é indiciado como agitador social, comunista e subversivo em diversos inquéritos policial-militares, e presta depoimentos em inúmeros interrogatórios conduzidos por agentes do aparato repressivo da ditadura militar.

    Em dezembro de 1965, finalmente Julião consegue a liberdade através de um habeas corpus impetrado pelo Dr. Sobral Pinto. Antes do AI-5 ainda havia brechas legais na ditadura. O próximo passo será o exílio. Depois de tentativas frustradas nas embaixadas da Iugoslávia e do Chile, consegue asilo político no México. É importante lembrar que Julião já tinha reconhecimento internacional como o principal líder dos camponeses no Brasil, tendo viajado para muitos países e feito contatos políticos, dado palestras e conferências, inclusive na União Soviética, na China e em Cuba, onde constrói relação de amizade com Fidel Castro.

    O exílio será longo e, num primeiro momento, penoso. Entretanto, Julião vai aos poucos estabelecendo contatos com círculos políticos e intelectuais da esquerda latino-americana. O México preservava sua tradição de país acolhedor de refugiados políticos. Passa a publicar artigos na imprensa local e torna-se colaborador regular e remunerado da revista Siempre!, atividade importante para a sua sobrevivência, física e emocional. Os artigos abordam, quase sempre, aspectos da conjuntura política brasileira e latino-americana.

    A partir de meados dos anos 70, com o início do processo de abertura política no Brasil, Julião começa a sonhar com o retorno. As saudades eram imensas. Participa em Portugal do encontro de exilados que vai produzir a Carta de Lisboa. Dá-se então uma aproximação política com Leonel Brizola. Com a promulgação no Brasil da lei de anistia, em agosto de 1979, Francisco Julião, depois de 14 anos, volta à “pátria amada” em outubro desse ano.

    Depois de passar rapidamente pelo Rio de Janeiro, Julião é festivamente recebido em Pernambuco. Tentando reconstruir sua carreira política, filia-se ao PDT e se dedica prioritariamente à organização do novo partido em seu estado natal. Em 1986, candidata-se a deputado federal, mas não consegue se eleger. Frustrado com a derrota eleitoral, Julião decide voltar ao México, onde criara fortes laços políticos e afetivos. Tratava-se agora de um “exílio voluntário”. Em julho de 1999, depois de um ataque cardíaco, Julião falece, aos 84 anos, na casa simples onde vivia com sua companheira mexicana, no povoado de Tepoztlán, num vale “sagrado” cercado por montanhas monumentais. Seu principal legado: dezenas de livros, artigos, ensaios, cartilhas, manifestos e poemas de cordel e, em todas as suas obras, o sonho jamais abandonado de lutar para construir um país e um mundo mais justos e mais livres.

    O último projeto de Julião era escrever suas memórias. O título do livro, nunca concluído, seria As utopias de um homem desarmado.

    Francisco Julião – uma biografia, da Editora Civilização Brasileira (853 páginas) é um belo trabalho de Cláudio Aguiar, fruto de meticulosa e abrangente pesquisa, que permite ao leitor, e não apenas ao leigo, mas também ao profissional da área de História, aprofundar seu conhecimento sobre a vida do líder das Ligas Camponesas, e também sobre a história social e política do nordeste e do Brasil na segunda metade do século XX e no limiar deste século XXI.

    Carlos Augusto Addor é professor da Universidade Federal Fluminense.

    Francisco Julião – Uma Biografia

    Cláudio Aguiar

    853 páginas, R$ 75

    Civilização Brasileira

    www.record.com.br