Futuro do passado

Regina da Luz Moreira

  • Augusto Malta, "Rua Uruguayana". Rio de janeiro, 11/04/1904. Dois anos antes, o trecho final da mesma rua, estreita e irregular, com as casas a serem demolidas pela prefeitura. (Arquivo geral da cidade do Rio de Janeiro)Augusto Malta é a cara de um Rio de Janeiro que não existe mais. Milhares de fotografias que produziu sobreviveram por mais de um século, e suas reproduções hoje são facilmente encontradas em produtos do comércio e usadas como decoração de bares e restaurantes.

    Imagens que hoje provocam nos cariocas a nostalgia de um passado remoto, em seu tempo cumpriram função oposta: eram um elogio à transformação urbana, um olhar voltado para o futuro. O “Rio de Janeiro que não existe mais”, nas fotos de Malta, era motivo não de nostalgia, mas de comemoração.

    No dia 14 de maio completam-se 150 anos do nascimento daquele que foi (ao lado de Marc Ferrez) o fotógrafo que mais intensamente registrou o dia a dia da cidade. Nestes tempos em que grandes eventos e polêmicos projetos urbanísticos voltam a prometer um Rio modernizado e de olho no futuro, o nome do prefeito Francisco Pereira Passos (1902-1906) é lembrado a todo instante. E sua administração foi crucial para que Augusto Malta inscrevesse sua marca na memória carioca.

    Augusto César Malta de Campos nasceu em Mata Grande, Alagoas, em 1864. Seu pai era escrivão e um de seus tios, Euclides Vieira Malta, foi presidente do estado (cargo equivalente ao de governador, atualmente) entre 1900 e 1912. Depois de tentar a carreira militar no Recife, Augusto mudou-se para o Rio em fins de 1888. Na capital empregou-se como auxiliar de escrita e, em seguida, como guarda-livros. Chegou a abrir seu próprio escritório de guarda-livros (uma espécie de contador) por volta de 1894, mas não teve sorte no negócio. Retornou para Alagoas falido, de onde voltaria com algum dinheiro no bolso e vários irmãos a tiracolo. Dedicou-se ao comércio de secos e molhados, mudou para o de tecidos finos, e então teve a ideia de inovar no transporte: adquiriu uma bicicleta, com a qual ganhou agilidade para percorrer diariamente toda a freguesia. Além de levá-lo a travar contato com importantes famílias, o comércio em duas rodas possibilitou a Malta adquirir um amplo conhecimento das ruas e dos bairros da cidade.

    Em 1900, trocou a bicicleta por uma câmera fotográfica. Passou a registrar não apenas amigos e familiares, mas também cenas urbanas. Era o primeiro fotógrafo brasileiro a ter uma visão jornalística dos acontecimentos. A trajetória do alagoano cruzou com a do prefeito cosmopolita por acaso: em meados de 1903, quando ainda fotografava amadoristicamente, Malta foi levado por um amigo, fornecedor da prefeitura, para registrar a visita de Pereira Passos a algumas obras. Deve ter sido um dia proveitoso, pois acabou rendendo sua contratação como “fotógrafo documentalista da municipalidade”, cargo até então inexistente. Sua função: registrar tudo o que se relacionasse com as atividades da prefeitura (e do prefeito, é claro).

    A intenção era usar a fotografia para documentar a histórica transformação da cidade, e Augusto Malta o fez com extrema competência, valendo-se de imagens que registravam o “antes”, o “durante” e o “depois” das obras. Ou seja, o atraso do Rio de Janeiro colonial, que se desejava deixar para trás; a grandiosidade de cada uma das intervenções públicas; e os resultados obtidos, prova do progresso civilizatório desejado por Pereira Passos.

    A serviço da prefeitura, as imagens produzidas por Malta tinham nítido caráter de divulgação e propaganda, mas ele extrapolava o simples registro documental, assumindo para si a curiosidade e a expectativa que se faziam presentes entre a população. Além das transformações urbanas em si, suas fotos frequentemente mostravam o elemento humano, as relações sociais.

    A lista dos logradouros registrados por suas lentes é uma sequência praticamente infindável de ruas, com a indicação dos prédios a serem demolidos: rua General Câmara, avenida Passos, rua do Catete, rua da Lapa, Campo de São Cristóvão, largo da Carioca, Treze de Maio, Ouvidor, Ourives, Sete de Setembro, Frei Caneca, rua do Resende, do Senado, Riachuelo, Gonçalves Dias, São Joaquim, Uruguaiana. Muitas foram abertas, outras tantas deixaram de existir. 

    São numerosas as imagens retratando as ruas estreitas do centro da cidade, seu trânsito confuso e emperrado, onde conviviam carroças, charretes e bondes lado a lado com os pedestres, calçadas irregulares e más condições de higiene. É o caso do trecho final da rua Uruguaiana, em que o fotógrafo deixa traçado o destino que aguardava o casario: as anotações realizadas perto das portas, com a numeração correspondente, equivaliam à “sentença de morte” dos prédios.

    Muitos registros incluíam mensagens indiretas, como a faixa de vitrine anunciando uma promoção contra a vontade do comerciante: “Alfaiataria do Povo em liquidação forçada por motivo de desapropriação”. A oposição dos proprietários também era assinalada pelo próprio fotógrafo, como na legenda “Esta casa resistiu por mais de um ano à demolição p. alongamento da rua 13 de Maio”.

    O “durante” da rua Uruguaiana mostra seu lado direito já quase totalmente alargado e o meio-fio colocado, embora a rua ainda estivesse com entulhos. No primeiro plano, o bonde já trafega na parte nova. À medida que as obras iam sendo concluídas, aquelas ruas transformavam-se em pontos chic da cidade. Por extensão, viravam também musas dos fotógrafos e temas de cartão-postal. Malta procura registrar as novas vias com pessoas transitando por elas, como se quisesse reforçar a ideia de que a população sabia responder aos planos empreendedores do presidente Rodrigues Alves e do prefeito Pereira Passos.

    Na nova rua Uruguaiana, veem-se prédios com o mesmo alinhamento, árvores plantadas, o cuidado dos comerciantes com a apresentação das vitrines e passantes trajados de acordo com as “posturas municipais” (era obrigatório o uso de sapatos, paletó e chapéu!). Imagem digna de tornar-se um postal!

    Ao retratar o “antes” do Campo de São Cristóvão,Malta consegue transmitir o total abandono em que se encontrava o lugar: um grande descampado onde a grama se confunde com o capim alto, entremeado por picadas irregulares. Abandono não só do local, mas também da população, obrigada a atravessar grande extensão de mato para ir de um ponto a outro. O “durante”é registrado no dia da inauguração, com uma parte não de todo urbanizada. Por fim, Malta capta o momento em que um grande número de pessoas, vestidas apropriadamente para a ocasião, se dirige ao coreto onde se realizará a cerimônia festiva. Enquadra também pessoas mais simples e mal-ajambradas, mas estas permanecem afastadas, próximas à mureta, como se a festa não lhes pertencesse.

    As imagens parecem traduzir a existência de duas cidades, em que o choque do novo com o velho – do progresso e da civilização com o atraso colonial – é concretizado visualmente: carroças de tração animal próximas a um bonde de passageiros, ou então transportando grandes tubulações de ferro, destinadas a obras subterrâneas de esgoto ou abastecimento de água.

    Como a maior preocupação de Malta é propagandear a administração de Pereira Passos, a cidade que desaparece é um tema indireto. O fotógrafo registra o “antes” das obras apenas como ponto de partida para a divulgação do “durante” e do “depois”, ou seja, o Rio de Janeiro antigo só encontra razão de existir enquanto referência para o enaltecimento da gigantesca obra de urbanização e “regeneração” da cidade, como os defensores das obras diziam na época.

    Acabou por prevalecer no imaginário do carioca a ideia de que aquele período foi o momento da implantação da civilização e da modernidade na capital da República. Uma República que, para documentar a grandeza de tal projeto, inovou contratando um fotógrafo para acompanhar cada um de seus passos. A estratégia de marketing funcionou.

    Somente em 1936 Augusto Malta se aposentou como fotógrafo oficial da Prefeitura do Distrito Federal, sendo então substituído por seu filho, Aristógiton. Mas a paixão pela fotografia permaneceria. Ao longo dos quase 50 anos em que atuou como fotógrafo, ele produziu mais de 30 mil registros. Essas fotos se encontram espalhadas em instituições de memória do Rio de Janeiro, como o Arquivo Geral da Cidade, o Museu da Imagem e do Som, o Museu da República e a Casa de Rui Barbosa, ou em empresas como a Light. Mas, infelizmente, esta é uma pequena parcela que sobreviveu ao tempo. A maior parte se perdeu ou foi danificada pela ação do tempo e pela pouca valorização dada a elas pelas sucessivas administrações municipais. Nem sempre o projeto do poder e a produção da memória fotográfica urbana caminham juntos.

               

    Regina da Luz Moreira é coordenadora do Programa de Arquivos Pessoais do CPDOC/FGV e autora da dissertação “Os cariocas estão mudando de cidade sem mudar de território: Augusto Malta e a construção da memória da cidade do Rio de Janeiro” (IFCS/UFRJ, 1996).

     

    Saiba mais

     

    BERGER, Paulo (coord.). O Rio de ontem no cartão-postal: 1900-1930. Rio de Janeiro: RioArte, 1986.

    KOSSOY, Boris. A fotografia como fonte histórica: introdução à pesquisa e interpretação das imagens do passado. São Paulo: Secretaria da Ind., Com., Ciência e Tecnologia, 1980.

     

    Internet

    Portal Augusto Maltahttp://portalaugustomalta.rio.rj.gov.br.

    Rio de Memórias (José Inácio Parente, 1987)
    www.youtube.com/watch?v=gdVU9FLZ_d0.