Gente de pés ligeiros

Fernando Pitanga

  • Durante a União Ibérica (1580-1640), período no qual a Coroa espanhola assumiu o trono português, o Nordeste do Brasil se viu ameaçado por invasões holandesas que exigiram grande esforço de defesa das capitanias nordestinas. Tropas luso-espanholas foram especialmente enviadas pela Coroa para auxiliar a resistência, e seu comandante, o conde de Bagnuolo – em carta ao rei espanhol Felipe IV datada de 3 de junho de 1633 –, informava o monarca sobre a dificuldade de obter sucesso na sua empreitada. Ao se referir aos soldados recrutados na Colônia, sua opinião é ácida: “gente de pés ligeiros, servindo-se mais deles do que das mãos”. Para ele, os soldados coloniais, tão logo viam uma oportunidade, abandonavam seus postos, dando mostras de uma decidida covardia. A colônia portuguesa na América sofria cotidianamente com a ameaça de ataques de inimigos externos, como os piratas e os corsários, e dos inimigos internos, isto é, índios bravios e negros aquilombados. Para conter esta avalanche de problemas lá estavam as combalidas, famintas e destreinadas tropas coloniais.

    Mas quem eram esses “frouxos” soldados no Brasil Colônia? Se dependesse das autoridades metropolitanas, os soldados coloniais viriam todos do reino, sem exceção. Contudo, Portugal nunca pôde dispor de homens em abundância, principalmente de homens aptos para o serviço militar. O fim da União Ibérica envolveu os lusitanos num longo conflito com a Espanha: a Guerra de Restauração, que se estendeu até 1668 e consumiu uma quantidade colossal de recursos e homens em defesa da soberania nacional. Era impossível deslocar soldados do reino para compor as tropas coloniais.

    Segundo orientações da metrópole, as tropas aqui formadas deveriam apresentar em suas fileiras prioritariamente homens brancos. Entretanto, eram poucos os dispostos a se sujeitar ao duro cotidiano do serviço d'armas. A contragosto, as autoridades responsáveis pelo recrutamento tinham que aceitar o engajamento de pardos, mulatos e todo tipo de mestiços. Além disso, o alistamento voluntário respondia por uma parcela mínima das tropas coloniais, formadas majoritariamente por homens recrutados à revelia. De tempos em tempos, de acordo com a necessidade dos capitães-donatários e governadores, abria-se a temporada de “caça aos soldados”. Procurava-se enquadrar principalmente os vadios, criminosos – enfim, todos os grupos que estavam à margem da sociedade colonial, não inseridos na esfera produtiva ou amparados pela proteção de algum senhor. De elementos desclassificados que ameaçavam a ordem, ao serem colocados nas tropas transformavam-se em defensores da ordem colonial. Mas as duras condições de vida a que estes homens eram submetidos acabavam por causar as altas taxas de deserção apresentadas pelas tropas pagas durante todo o período colonial. Em Salvador, no início do século XIX, o comerciante inglês Thomas Lindley testemunhou a penúria dos soldados: “Impressiona-me não a miséria, mas como podem sobreviver, sustentando-se apenas de bananas e farinha, e comendo dois ou três peixes pequenos de vez em quando, pois o soldo não lhes permite melhor passadio [refeição].”

  • Além de insuficientes, os soldos eram freqüentemente atrasados. O sistema de pagamento das tropas no Brasil centrava-se nas Câmaras, que deveriam sustentar os militares garantindo o seu soldo, que era parcialmente pago em farinha de mandioca. Para honrar este compromisso, as Câmaras impunham um acréscimo na comercialização de alguns produtos, sobretudo o vinho importado do reino. A Coroa complicou muito a situação ao delegar a arrendatários o fornecimento das fardas e da farinha para a tropa. Para isto, estes contratadores assumiam a função de cobrar o montante do subsídio arrecadado no comércio do vinho. E apesar da lucratividade do negócio, quase sempre atrasavam o pagamento da tropa por vários meses, honrando apenas o mínimo, em tecidos e farinha, para manter os soldados em seus postos. Mas, muitas vezes, o que julgavam suficiente para garantir a permanência dos homens nas fileiras não impedia as deserções.

    Mas a fuga dos quartéis não foi a única forma de os soldados tentarem pôr um fim a seus sofrimentos e privações. Havia um outro meio – arriscado, sem dúvida, mas de certa forma "em moda” no século XVII – de sensibilizar as autoridades régias para as demandas das tropas: a revolta. Até então demonizada, a idéia de rebelião ganhou um novo sentido após a Restauração de 1640, pois a separação de Portugal da Espanha se deu por meio de uma rebelião contra a tirania do monarca espanhol. Abria-se um precedente histórico, e os súditos viram-se no direito de se rebelar contra seu soberano se este não cumprisse seus deveres. Caso o monarca não garantisse a segurança da sua população contra os inimigos externos, a aplicação da justiça régia sempre que o direito consuetudinário (baseado nos costumes) não fosse suficiente ou mesmo a preservação dos privilégios de cada grupo social, era legítimo que seus súditos o destituíssem do poder.

    Tratados como párias, desqualificados diariamente não só pelas autoridades, mas por diversos segmentos sociais, estes homens concluíram que a revolta era um artifício válido. Eles também eram súditos injustamente molestados e prejudicados no exercício de sua função. Restava o recurso à rebelião. E a Bahia seria um modelo para o restante da Colônia.
    Salvador, capital da Colônia desde 1549, sediava duas tropas: o Terço Velho e o Terço Novo, criadas em 1626 e 1631, respectivamente, durante a ocupação holandesa (1624-1654), quando o medo de invasões assombrava a população e as autoridades. Os terços eram os corpos de tropas do exército português dos séculos XVI e XVII, que correspondem aos regimentos atuais. Mas, com o fim do conflito, começaram a surgir vozes que, procurando amenizar a carga tributária, solicitavam a extinção de um dos terços, já que o perigo imediato do assédio inimigo não existia mais. Nada foi feito, e a tropa foi mantida com a habitual rotina de atrasos no pagamento. Com a epidemia de febre amarela, que atacou boa parte da capitania da Bahia em 1686, e a seca do verão de 1687-88, a desgraça anunciada se confirmou. Mortes, plantações arruinadas, queda na arrecadação, toda uma conjunção de adversidades motivou a tropa, e em 21 de outubro de 1688 os soldados se declararam em estado de rebelião. Ocuparam o Desterro – área ao redor da cidade onde ficava a Casa da Pólvora – exigindo o pagamento imediato de três pagas (nove meses) de soldos atrasadas. Caso não fossem atendidos, ameaçavam saquear a cidade, especialmente as casas dos oficiais da Câmara. Outra exigência dos amotinados era o perdão total dos participantes. Apesar de toda a retórica legitimadora, a rebelião era um crime passível de punição exemplar. O perdão assinado e o dinheiro arrecadado pela Câmara desmobilizam os soldados, mas a rebelião deixa um rastro de 22 mortes. Muitos revoltosos escaparam ao castigo fugindo para outras regiões ou simplesmente se aproveitando do esquecimento daqueles que presenciaram os fatos. Apenas um soldado foi preso, sob a acusação de liderar a rebelião, e por isso enviado para Angola, em degredo.

    O século XVIII não vê mudanças nos atrasos dos soldos, e novas rebeliões eclodem. Durante o Motim do Maneta (apelido do negociante João de Figueiredo da Costa, líder do motim), em outubro de 1711, a população de Salvador se revoltou contra o aumento do preço do sal e com o anúncio de novos impostos trazido pelo novo governador-geral, D. Pedro de Vasconcelos, que logo quis reprimir o tumulto. De espada em punho, pretendia intrepidamente atirar-se à turba, mas foi convencido a refrear seu ímpeto quando informado da adesão da tropa ao motim. Na Colônia as coisas não eram tão simples. Aqui as autoridades régias precisavam lidar com súditos melindrados por um fisco voraz e, na questão da defesa, atormentados pela noção de que pagavam inúmeras taxas, fintas, contribuições de vários tipos, sem verem um sistema defensivo mais forte, apesar das constantes ameaçadas de invasão por outras potências estrangeiras.

  • Quando a insatisfação partia dos militares, então todo cuidado era pouco. A metrópole temia pela segurança da ordem estabelecida. Mesmo mal treinados, mal armados, mal alimentados e maltrapilhos, os soldados despertavam temor nas autoridades. Por isso, o Conselho Ultramarino aconselhava o rei a ordenar aos governadores que colocassem “segredo perpétuo” sobre o assunto da revolta, não sem antes punir exemplarmente os líderes com a morte ou o degredo.

    Na noite de 10 de maio de 1728, os soldados do Terço Velho se rebelariam de novo, comemorando “às avessas” os quarenta anos do primeiro motim da guarnição. Rebelam-se contra o ouvidor do Crime e da Justiça Militar, acusado de punir rigorosamente qualquer delito cometido pelos soldados, mesmo os mais pueris. Reunindo-se na Casa da Pólvora, resolveram se encaminhar para a casa do ouvidor. No caminho, um destacamento de 50 rebeldes foi interceptado pelo vice-rei, D.Vasco Fernandes César de Meneses, que tenta, sem sucesso,  convencê-los a voltarem para seus quartéis. Depois de muitas negociações, as reivindicações dos soldados são aceitas e o perdão é assinado. Mas a “devassa” é instaurada mesmo assim e 23 militares são indiciados por crime de sedição. Dez são condenados à morte, mas, com as apelações, somente dois foram executados, sendo os demais degredados para Angola ou trancafiados. Os enforcados são esquartejados em frente ao quartel onde teriam fomentado a rebelião e as partes dos seus corpos ficam expostas nos pontos por onde a tropa passou, sem deixar dúvida sobre o fim que teriam as pessoas que ousassem se opor à justiça régia.

    O vice-rei foi muito criticado por ter ultrapassado suas atribuições ao conceder o perdão para os revoltosos, pois o perdão era uma prerrogativa real. E mais grave: ele empenhou a palavra régia e atraiçoou os revoltosos. Mas ele alegou que ou agia rápido e debelava o motim ou veria a desordem instaurada. Sua decisão acabou reconhecida pelo Conselho Ultramarino, que o isentou de qualquer culpa. Em 1729 ele foi agraciado com o título de conde de Sabugosa, pelos relevantes serviços prestados à Coroa.

    E os soldados? Estes continuaram a ter uma existência penosa, atribulada, mas ainda acreditando que, como súditos reais, deveriam ter seus privilégios garantidos – ainda que fossem mínimos – e ser respeitados pelas autoridades régias. Do contrário, não hesitariam em se transformar novamente em rebeldes. Com causa.


    Fernando Pitanga é mestrando em História na Universidade Federal Fluminense (UFF), onde desenvolve dissertação de mestrado sobre as Revoltas do Terço Velho na Bahia (1688-1728 ).