Ginga em papel couché

Giovanna Dealtry

  • A capoeira segundo K.listo (Kosmos, 1906).Quando o leitor habitual da revista Kosmos abriu seu exemplar de março de 1906, possivelmente estranhou ao se deparar com seis ilustrações retratando a capoeira. Afinal, a importante publicação mensal costumava registrar o cotidiano e os valores das classes burguesas naquele início de século, trazendo imagens das avenidas e dos cafés cariocas inspirados em Paris. A “luta”, que lembrava o passado escravocrata e colonial, aparentemente destoaria dos textos e fotografias, que serviam como uma reafirmação do projeto de modernizar o país segundo o modelo francês.

    Já em sua primeira edição, a Kosmos (1904-1909) anunciava que teria como modelo as mais notáveis publicações ilustradas europeias e norte-americanas. Quanto ao conteúdo, afirmava: “queremos fazer das páginas da Kosmos um artístico álbum de nossas belezas naturais, dos primores dos nossos artistas, propagando o conhecimento a outros pontos do país e do estrangeiro”.

    Em plena belle époque, a capoeira ganhava um espaço nobre, aparecendo na mais cara e graficamente sofisticada revista da época. O artigo “A capoeira”, assinado pelo escritor simbolista Lima Campos, contava com ilustrações do caricaturista Calisto Cordeiro (1877-1957), ou Kalixto.  Surpreende que o relato de Lima Campos, ao invés de desabonar a “luta”, trata de inseri-la no melhor de nossas tradições brasileiras e recompor um quadro em que o capoeirista deixa de ser um elemento perigoso, pertencente a maltas sanguinárias, para se tornar um símbolo unificador da nação. Afinal, não podemos nos esquecer de que os capoeiras trabalharam por longo tempo como “capangas” de políticos, especialmente em épocas de eleições.

    Mais do que meramente ilustrar o artigo, as imagens criadas por Kalixto formulam uma narrativa em paralelo. Permanecem não só atuais estilisticamente, mas também se transformaram em referência para o estudo da capoeira ao registrar em detalhes os movimentos e os nomes dos golpes utilizados.

    Em seu texto, Lima Campos compara a capoeira a outras lutas populares, como o jiu-jítsu japonês e o boxe inglês. Conclui que, de todas, a mais temível é a capoeira, caracterizada pela excelência dos golpes de defesa. Em seguida, o escritor revela seu verdadeiro objetivo: transformar a capoeira em um símbolo de um Brasil mestiço. A capoeira “nasce” nas páginas da Kosmos como uma luta de libertação e resistência ao inimigo comum, o português dominador, e como a mistura ideal das três raças conformadoras da nossa nacionalidade.

    Se os grupos de capoeiras praticamente desaparecem no início da República devido à repressão do chefe de polícia, Sampaio Ferraz, a visão idealizada da capoeira irá avançar pelas primeiras décadas do século XX. Os intelectuais desse período almejavam recuperar a capoeira para o mundo dos “esportes” e da busca de uma identidade cultural que abarcasse os elementos da cultura negra e mestiça anteriormente renegada.

    Apesar de os historiadores ainda divergirem sobre as origens da luta, alguns fatos são indiscutíveis. A capoeira escrava vincula-se notadamente ao espaço urbano, em especial ao Rio de Janeiro do século XIX. Já nos tempos de D. João VI, documentos policiais comprovam a prática da capoeiragem por escravos ou libertos. Dessa mesma época datam os primeiros registros das maltas de capoeira que serviam como espaço de proteção, sociabilidade e exercício de uma prática cultural. Este exercício confere à capoeira seu caráter lúdico, em que a dança e a música ocupam papel fundamental. Como se vê, a fala de Lima Campos está muito mais próxima de uma origem mítica do que comprovadamente documental.

    Menos preocupado com o contexto histórico do jogo, Kalixto recria os golpes e as gírias dos capoeiras que remetem diretamente à cultura e ao cotidiano de sobrevivência nas ruas. O trabalho de Kalixto não retoma somente um passado distante, mas insere, em meio às avenidas e aos cafés do afrancesado Rio de Janeiro, o corpo e a fala dos negros.

    O primeiro quadro nos mostra dois capoeiras representando os Nagôas e Guaiamus, dois grandes grupos de capoeiras no Rio do século XIX. Os Nagôas, que dominavam a periferia da cidade, eram reconhecidos pela cinta branca sobreposta à vermelha, ambas enroladas no chapéu que traziam com a aba baixa. Os Guaiamus usavam a cinta vermelha sobre a branca, o chapéu com a aba elevada na frente, e ocupavam o Centro da cidade. Esses detalhes revelam que o caricaturista conhecia intimamente os sinais de identificação dos capoeiras. Já nos primeiros registros policiais do século XIX, era costume anotar o tipo e a cor do chapéu e das fitas que o capoeira portava para depois identificá-los. Não por acaso, Kalixto era também um exímio capoeirista, formado nas rodas da Cidade Nova. Ou seja, a capoeira, que para muitos intelectuais daquele período fazia parte do passado da cidade, nas imagens de Kalixto aparece em todo o seu vigor, demonstrando a importância, ainda que em menor escala, dessa prática no início do século XX.  

    Cada um dos cinco quadros seguintes identifica um golpe da capoeira e suas denominações: “Peneiração”, “Cocada”, “Calço ou Rasteira”, “Lamparina” e “Meter o andante” (sapato). Destaca-se nos traços elegantes do caricaturista a imagem do capoeira negro, ágil e veloz, usando terno branco e “andantes” (sapatos) pretos. Abaixo de cada quadro, segue também uma pequena narrativa em primeira pessoa que simula a fala de um capoeira contando a aventura que vivera durante um “samba”, termo que designava as festas onde houvesse dança.
    Esse recurso ficcional criado por Kalixto permite ao leitor não só acompanhar o desenvolvimento da “briga”, mas também serve para que o caricaturista apresente as gírias utilizadas pelos capoeiras. “Com pouco vi um cabra peneirando na minha frente, dancei de velho. O tipo era bom! Sambou e entrou no cateretê comigo.” Pela ginga do desafiante, passo básico da capoeira, o narrador percebe a qualidade do oponente, fato que valoriza também sua futura vitória.  

    Nos desenhos, o corpo, os trajes e o discurso do capoeira compõem um todo que, ao contrário da ideia defendida por Lima Campos, tem por objetivo o ataque ao desafiante, e não apenas a defesa. É essa, justamente, a singularidade e a importância do trabalho aqui desenvolvido por Kalixto. Ele não procura domesticar ou apagar a violência do jogo. Pelo contrário, ele mergulha no universo fechado dos capoeiras para registrá-lo com maior veracidade. Estão presentes a navalha e a bengala, usadas como armas mortais; o olhar agressivo ou a expressão de dor resultante de um golpe como a “cocada”; os códigos de linguagem e, igualmente, a alegria final do capoeira que “volta pro samba garganteando” a vitória.  

    Fundamental é não nos esquecermos onde estas imagens estão sendo veiculadas. Afinal, capoeiras, malandros e outros personagens do “povo” eram uma constante em periódicos como O Malho. O instigante é pensar como Kalixto consegue, malandramente, inserir suas caricaturas em meio às páginas de papel couché da Kosmos. Se a revista pode ser entendida como uma representação da belle époque, o jogo produzido pelo texto com as caricaturas pode ser visto como a introdução da fala marginalizada no palco da cidade. Como lidar com esse capoeira? Tornando-o dócil, como faz a escrita de Lima Campos, ou trazendo para os periódicos o corpo e a linguagem transgressora das ruas, como nos mostra Kalixto?

    As revistas e os jornais tornam-se, simbolicamente, territórios tão importantes a serem ocupados quanto as áreas do Rio de Janeiro. Kalixto demonstra que é possível promover a inclusão dos grupos excluídos da cidade remodelada pela administração do prefeito Pereira Passos (1902-1906) em espaços tão improváveis como a Kosmos. Para isso, como outros caricaturistas da época, ele lançou mão da observação da vida nas ruas, da ironia e, acima de tudo, da destreza da pena.  

    Giovanna Dealtry é professora da PUC-Rio e autora de “No Fio da Navalha – malandragem na literatura e no samba” (Casa da Palavra, 2009)

    Saiba Mais - Bibliografia

    BROCA, Brito. Vida literária no Brasil de 1900. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005. 4ªed.
    LIMA, Herman. História da caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1963.
    SOARES, Carlos Eugênio Líbano.  A Capoeira Escrava – e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). Campinas: Ed. Unicamp, 2001.
    VELLOSO, Mônica Pimenta. Modernismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: FGV, 1996.