O charuto aceso durante toda a entrevista foi a única condição imposta por Giovanni Levi para receber nossa equipe. “Estamos a poucas horas do Yom Kippur, e embora não seja praticante, gosto de respeitar este tradicional dia de jejum e abstinência. Deixem-me desfrutar este último prazer”, explicou. Entre nuvens de fumaça, acompanhamos o historiador italiano em seus variados caminhos, da Segunda Guerra às armadilhas da política, do revisionismo histórico às primeiras impressões sobre o Brasil.
Um dos pioneiros da micro-história, Levi é professor das Universidades de Veneza e de Sevilha, na Espanha – antigos portos que durante séculos se abriam, respectivamente, para o Oriente e para o Atlântico. Talvez por isso seus estudos ultrapassem o “micro” para alcançar grandes abrangências. Valem tanto para uma aldeia no norte da Itália como para a Rússia ou para o mercado das laranjas do Rio de Janeiro.
A formação socialista liberal, influenciada pelo marxismo, não o impede de fazer críticas aos esquemas interpretativos da esquerda, nem de arriscar leituras originais das sociedades do Antigo Regime. Desencantado com a situação italiana – “um país que perdeu o gosto pela política” – e crítico da inércia do mundo acadêmico, Giovanni Levi não perde o entusiasmo quando o assunto é seu novo tema de estudo, a história do consumo, mesmo sabendo que ainda levará dez anos para concluí-lo – se é que o fará: “Estou ficando velho”. O prazer da eterna busca, assim como o das baforadas, ninguém lhe tira.
REVISTA DE HISTÓRIA A origem judaica influencia seu pensamento?
GIOVANNI LEVI Eu não sou crente, mas tampouco ateu. O que gosto no judaísmo é que ele propõe uma busca infinita de Deus, sem nunca poder afirmar que Ele existe. Sua existência é inimaginável. Curiosamente, isto tem muito a ver com a pesquisa histórica. Ela é uma contínua reconstituição da realidade, mas nós sabemos que a realidade sempre nos escapará, sempre será mais rica do que podemos imaginar. Essa analogia me ensinou algo: a História é uma ciência da busca infinita. Este é o grande fascínio da profissão de historiador. Todo ano são publicados 150 livros sobre Carlos V. Não porque 149 sejam falsos e um só verdadeiro, mas porque cada um deles oferece sua interpretação, uma aproximação do infinito, de Carlos V e... de Deus.
RH O senhor viveu a Segunda Guerra Mundial quando criança e sua família lutou contra o fascismo. Pode falar dessa herança?
GL Meu pai foi para a prisão em 1935. Depois, foi partigiano e lutou na Resistência. Ele era engenheiro, um homem de ampla cultura e muito empenhado politicamente. Ainda sou muito ligado a ele. Creio que isto influenciou minhas idéias políticas e minha visão de mundo, mais até do que minha decisão de ser historiador. Eu poderia ter sido qualquer outra coisa. Veja meus irmãos: um é físico, a outra é bióloga e o terceiro é pintor e arquiteto. Ou seja: as tradições políticas de minha família foram muito importantes para mim, mas não sei se foram determinantes para minha decisão de me dedicar à História.
RH Então, como se deu essa opção?
GL Eu morava em Gênova e fui atraído pelo renascimento das lutas operárias em Turim. Era 1958 quando começaram as greves nas empresas da Fiat. Decidi ser historiador porque estava convencido de que esse era um dos instrumentos de compreensão da sociedade italiana. Acreditava que a História servia para entender e modificar a sociedade na direção do socialismo. Foi uma opção política. Estudei na Universidade de Turim com figuras importantes, como Walter Maturi, Franco Venturi e Aldo Garosci. Talvez eles tenham sido mestres negativos, pois desaprovavam minhas idéias políticas. Aprendi muito com eles, mas tivemos alguns conflitos.
RH Sua opinião política mudaria pouco depois, não é?
GL Sim. A partir dos anos 70, comecei a duvidar das estruturas dos partidos políticos de esquerda. Também passei a ver com outros olhos a forma como a historiografia de esquerda descrevia a sociedade. Creio que esta seja a origem daquilo que chamamos de micro-história: uma tentativa de ver o que havia por baixo de falsas classificações, como a suposta solidariedade automática da classe operária.
RH Como nasceu esse tipo de estudo?
GL Para mim, havia ficado claro que a esquerda tinha uma leitura muita rígida da sociedade. Costumávamos ouvir que “os operários agem assim”, “os camponeses, assado”. Isto é falso! O fato é que a classe operária era um pouco de esquerda, um pouco de direita, um pouco de centro, um pouco católica, um pouco anticatólica, e assim por diante. Quando explode uma greve, alguns trabalhadores aderem a ela e outros não. Precisávamos esclarecer isso, ler a sociedade para além dos esquematismos que se usavam. Assim nasceu a micro-história.
RH Como ela se dá na prática?
GL Dado um episódio, um lugar, um documento, devemos aplicar nele uma redução de escala. A micro-história é uma prática que implica o rompimento de hábitos generalizantes. Não buscamos a generalização das respostas, e sim das perguntas: quais são as perguntas que podemos criar e aplicar também em situações totalmente diferentes? Sendo bem sintético: estamos interessados na pergunta geral que emerge de uma situação local.
RH Seu livro A Herança Imaterial é um exemplo disso?
GL Sim. É uma história sobre o comércio de terras em um vilarejo sem importância na Itália do século XVII, mas teve uma dezena de traduções no mundo. Por que foi traduzido em chinês ou finlandês? Porque não se trata de uma história local, e sim de uma tentativa de encontrar perguntas gerais a partir de uma situação socialmente específica.
RH Houve polêmica quando ele foi lançado?
GL Muita. A historiografia conservadora inglesa afirmava que o mercado da terra era muito precoce, datado do século XIV-XV, quando já se encontravam contratos com preços. Minha tese era diferente: os valores desses contratos não tinham sentido, eram completamente arbitrários. Para o mesmo tipo de terra, os preços podiam variar de 5 a 500, dependendo das relações entre vendedores e compradores. O sistema mercantil estava baseado em relações sociais, e não em leis de mercado.
RH Essa conclusão podia ser aplicada em outros contextos?
GL Claro. Uma pergunta sobre o mercado da terra formulada acerca de uma aldeia do Piemonte pode também ser aplicada na Rússia três séculos antes ou depois, ou quando quisermos. O importante é pensar a relação entre vendedores e compradores. Embora as leis de mercado sejam muito mais fortes hoje, isso ainda funciona. Se você passear pelas ruas do Rio de Janeiro e resolver comprar laranjas, perceberá que elas têm preços diferentes de um bairro para outro. Por que isso? Todos os produtos chegam dos mercados centrais, todos partem do mesmo preço no varejo, então por que os valores mudam segundo as áreas sociais da cidade? Esta é uma pergunta de micro-história.
RH Apesar de ser formado em história econômica, seus trabalhos não se limitam a esta visão...
GL De acordo com Marx, considero que as ciências sociais são uma só. Acho até um pouco absurdo falar em história econômica, social... Essas divisões se devem a motivos exclusivamente acadêmicos. Deveríamos fazer uma mistura com tudo e pegar o melhor daquilo que as ciências sociais produziram para tentar compreender a sociedade. Porém, devo dizer que a História ficou muito atrasada se comparada às outras ciências sociais. Acho que nós, historiadores, ainda descrevemos de forma banal determinadas questões, como o funcionamento do cérebro dos homens.
RH O senhor também pesquisou sobre as relações entre centro e periferia. O que poderia dizer sobre o Brasil?
GL Recentemente, a historiografia brasileira discutiu muito essa relação. A dificuldade é abandonar certas simplificações. Após os estudos de Antonio Hespanha, temos que falar sempre de “centros” e “periferias”. Havia muitos centros no Império português: Rio de Janeiro, Lisboa, Macau, Luanda... E outro centro era Roma. O papa era extremamente importante. Esse aspecto ficou esquecido por muito tempo: o catolicismo não é apenas uma religião, é também um modo de construir um Estado moderno. E na visão católica, as periferias, para serem dominadas, têm que ser de alguma forma aceitas em sua diversidade. O centro não pode impor seu sistema. Os impérios espanhóis e portugueses, diferentemente do modelo francês ou inglês, são caracterizados pela idéia de que todo Estado tem que manter alguma forma originária diferente. Esta é, ao mesmo tempo, a grande fraqueza e a grande força dos impérios católicos: manter seus domínios sem obrigar à unidade pelo uso da força, mas com persuasão, com corrupção. Até com violência, mas uma violência cotidiana, e não administrativa.
RH Esta é sua primeira visita ao Brasil. Quais foram suas impressões sobre o país?
GL Viajando por Minas Gerais, acompanhei a campanha eleitoral para a prefeitura de Ouro Preto. Um dia, fui ao comício do prefeito, que, me parece, foi reeleito. Um sujeito de direita, digamos assim. Nesse comício estavam presentes todos os notáveis locais de seu grupo conservador, o lado urbano e o subproletariado. No dia seguinte houve a manifestação de todos os partidos de esquerda, de caráter eminentemente rural e com grande participação juvenil. Esta forte polarização campo-cidade, elite conservadora e subproletariado versus trabalhadores, me impressionou bastante. Outra impressão curiosa se deu em São João del-Rei. Fui visitar a Igreja do Carmo e constatei que todos os seus freqüentadores eram brancos. Na frente dela fica a Igreja do Rosário. Estava muito mais cheia e com uma forte maioria de negros. As duas organizam suas missas no mesmo horário. Então pensei que um dos grandes esforços da Igreja é ter que controlar, na grande massa de seus fiéis, os conflitos étnicos e sociais. Pensei que se esses conflitos forem bem gerenciados, as pessoas tenderão a ir com mais freqüência a uma igreja, a fim de mostrar sua superioridade sobre a outra.
RH E quanto ao mundo acadêmico?
GL Vi pouco, mas tive muitos alunos brasileiros. Dirijo doutorados em Veneza e em Sevilha, e por muito tempo dei seminários em Paris. Em todos esses países há estudantes brasileiros. Minha impressão é que existem certos temas-padrão. Alguns, novos e interessantes, como a reconsideração daquilo que são a periferia e o centro. Outros, como todos os problemas de emigração e imigração, se esterilizaram um pouco. Tive muitos alunos que desenvolviam teses sobre os italianos no Sul do Brasil, e me parece que este setor está muito envelhecido, não encontrou novos caminhos de leitura e interpretação, ficando muito descritivo, estandardizado. Mas os alunos brasileiros são apaixonados, muito mais que os italianos. Junto com os argentinos, estão entre os historiadores mais vivazes atualmente.
RH Há espaço para o Brasil nas universidades italianas?
GL A história da América Latina é ensinada nas universidades, mas é fortemente dominada por um grupo que se ocupa sobretudo do México. Também há pouca história portuguesa e brasileira, assim como pouca coisa sobre suas literaturas. Isso é uma pena; os historiadores brasileiros têm algo a nos ensinar e gostaria muito que houvesse mais deles por lá. Na Itália, temos poucas cadeiras não só sobre a história latino-americana, mas também sobre a francesa, a alemã... Quase todos estudam a Itália. O mesmo acontece aqui no Brasil. Trata-se de um forte limite da estrutura cultural da universidade italiana, e também da brasileira. Contudo, o amor pátrio me impede de dizer que a universidade italiana esteja em crise, fechada sobre si mesma.
RH A juventude italiana ainda se apaixona pela pesquisa histórica?
GL Não sei. Na inércia italiana, também o trabalho dos historiadores aos poucos se acomodou... Se tivesse que começar hoje, não sei o que faria. Talvez fosse investigador particular. Talvez na América Latina seja um pouco diferente. Aqui há um forte impulso político. Creio que ser historiador hoje é particularmente difícil. Não em todo lugar, mas na Itália, com certeza.
RH O que significa ser historiador?
GL Isso é tema constante de discussão com meus alunos e amigos. Por muitos anos, o instrumento fundamental da cultura histórica era o livro, escrevê-los. Hoje somos cercados por outras formas de informação, em especial a televisão. A ciência histórica busca a complexidade e trabalha lentamente para construí-la. Levamos anos de pesquisa para escrever um livro, ao passo que a televisão privilegia a simplicidade e a velocidade. A televisão nos diz: “Hitler é como Stalin”. A tarefa dos historiadores é demonstrar que Hitler é diferente de Stalin. Mas, com o tempo, o slogan predomina. Os livros são muito mais lentos do que a informação que produz o senso comum historiográfico.
RH Os historiadores deveriam discutir essa questão?
GL Com certeza. Deveriam utilizar outros meios, além dos livros. Poderiam usar mais filmes, televisão, mas sempre na busca da complexidade, e não da simplificação. Essa competição, por enquanto, nos vê derrotados. Acredito até que foi ela que permitiu um enorme desenvolvimento do uso político da História, num sentido pejorativo. A História é muito manipulada hoje, justamente porque é com slogans que se chega ao senso comum das pessoas. Pode-se dizer qualquer coisa. Creio que isso seja um dos problemas fundamentais da historiografia italiana contemporânea. Esta forte onda de revisionismo negativo, de simplificação um pouco superficial sobre o fascismo, por exemplo... É uma novidade muito difícil de combater.
RH Como assim?
GL Quando digo revisionismo sobre o período fascista, não estou falando de uma apreciação positiva do movimento, e sim de uma depreciação do antifascismo. Esta é a leitura que predomina hoje na Itália: “Não queremos falar bem do fascismo, mas nos divertimos em falar mal do antifascismo. Os dois são iguais, ambos cometeram atos de violência, etc.”. Ora, a mitologia que criou os grandes Estados modernos conta histórias do triunfo do bem sobre o mal no interior do próprio país. Foi assim na Guerra de Secessão americana e na Revolução Francesa. São modelos de guerra civil que afirmam a parte boa sobre a má. Na Itália, isto é difícil. Não conseguimos construir uma forte idéia da Resistência como vitória contra o fascismo, contra o mal. Aos poucos nos convencemos de que tanto a Resistência como o fascismo tinham muitas coisas erradas.
RH Quais são suas pesquisas atuais?
GL No momento estou escrevendo uma história do consumo, na qual tento mostrar como funciona uma economia católica do Antigo Regime. A idéia é mostrar como se consegue realizar a utopia católica – que é construir uma sociedade hierarquizada e, ainda assim, justa. Este fato, que em si é horripilante, é também importante para se entender como funcionou o Antigo Regime. Ajuda a identificar os resíduos deste sistema, na forma como aceitamos hierarquizações, subordinações a modelos... Creio que o consumo seja um dos setores onde isto se entende melhor. Existem hierarquias de consumo no interior da família, não somente entre homens e mulheres, mas também entre irmãos.
RH Isso é uma particularidade das sociedades católicas?
GL Sim. A minha impressão é que a Itália e os países católicos em geral possuem essa marca de viver com dois sistemas normativos, o do Estado e o da Igreja, sem escolher entre um e outro. Quase todos os países católicos, se analisarmos com atenção, tiveram uma hiperlegislação, com a emanação contínua de regras e leis para tentar manter unidas pessoas que desprezam as instituições. Quase todos os países católicos tiveram experiências autoritárias (fora o caso alemão; Hitler era católico, mas isso não me parece que tenha sido relevante): Itália, Portugal, Espanha, países da América Latina, Polônia, Croácia, etc. Esta é uma grande questão: como funcionam sociedades que hoje são democráticas, mas carregam uma série de dificuldades para se modernizar politicamente, arrastando modelos de origem quase teológica, ou a presença simultânea de uma pluralidade de sistemas normativos que não se resolveram um com o outro.
RH Quando sairá esse estudo?
GL Já faz uns dez anos que estou escrevendo. E não sei se conseguirei terminá-lo. É uma pesquisa enorme. Estou trabalhando com estes dois setores: uma história do consumo, mas com a atenção voltada para o modelo geral de construção do Estado, da economia e da sociedade que são específicos do mundo católico. Precisarei de outros dez anos para completá-lo e, você sabe, estou ficando velho...
Saiba Mais - Principais obras do autor:
A herança imaterial. Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
“Sobre a micro-história”. In BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas, págs.133-162. São Paulo: Editora Unesp, 1992.
História dos jovens (2 volumes), organização de Giovanni Levi e Jean-Claude Schmitt. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.