Em meio a guerras marítimas que envolviam piratas, corsários e comerciantes das grandes potências europeias, os Países Baixos realizaram, em fevereiro de 1603, seu mais poderoso ataque contra uma frota comercial portuguesa. A nau Santa Catarina, comandada pelo capitão Sebastião Serrão, retornava à Europa carregada com especiarias, açúcar, seda e porcelana, quando, entre Macau e Goa, foi seguida por duas frotas holandesas, somando cerca de dez navios, comandadas pelo almirante Heemskerck, a serviço da Companhia das Índias Orientais. Após um dia de batalha, a frota de Heemskerck conseguiu render o capitão Serrão e seus 750 tripulantes, apreendendo a Santa Catarina – considerada a mais rica nau portuguesa – com toda a sua carga.
Seria apenas mais um caso de cerco marítimo e pirataria não fosse este episódio o responsável por desencadear, na Europa, debates inéditos sobre a diplomacia internacional. Na tentativa de reaver a carga da nau, os portugueses levaram a questão aos magistrados europeus, buscando uma solução pacífica. A Companhia das Índias Orientais, por sua vez, contratou para sua defesa os serviços de um jovem jurista holandês, Hugo Grócio (1583-1645). Hoje ele é conhecido como o “pai do direito internacional”.O cenário no qual aconteceu o ataque não era nada favorável para a defesa holandesa. Portugal foi pioneiro na expansão marítima e comercial europeia, logo seguido pela Espanha. Esta primazia lhes permitiu estabelecerem-se na Ásia, firmando portos, fortalezas e postos comerciais pelo caminho. Por terem iniciado o comércio ultramarino mais de um século depois dos portugueses e dos espanhóis, Países Baixos e Inglaterra depararam-se com os mares tomados pela declarada soberania ibérica (entre 1580 e 1640, Portugal encontrava-se sob o domínio espanhol, período conhecido como União Ibérica). Holandeses e ingleses não tinham mais espaço para atuar comercialmente de forma legal sem pagarem tributos aos espanhóis.Diante desta situação, Hugo Grócio decidiu deixar de lado a defesa dos atos de pirataria, e se pôs a questionar os direitos adquiridos pelos reinos ibéricos. Para isso, recorreu a um objetivo ousado: laicizar o Direito, isto é, tirar a discussão da esfera religiosa. A tática levou-o a enfrentar os dois maiores poderes da Europa: a Espanha de Filipe III e a Igreja Católica. Os ibéricos embasavam sua defesa nos direitos adquiridos pela alegação de descoberta e primazia de conquista, e pelos poderes cedidos pela Santa Sé durante o século XV.Três bulas papais editadas pela Igreja Católica garantiam a legitimidade das ações ibéricas. A Dum Diversas (1452) concedeu aos portugueses o direito de atacar, conquistar, submeter e tomar as posses de sarracenos, pagãos e infiéis, em defesa da Igreja. A Romanus Pontifex (1455) deu-lhes ainda mais poder: anunciou que a expansão da fé cristã deveria ser recompensada, e por isso garantiu à monarquia portuguesa o direito exclusivo e soberano sobre mares, rotas de navegação e comércio. Este mesmo documento afirmou a autonomia de Portugal no comércio com os potentados africanos e asiáticos e, mais importante, as posses das terras que já haviam encontrado e daquelas que ainda haveriam de encontrar. De acordo com o historiador Charles Boxer, esta bula foi “justamente denominada de carta do imperialismo português”.
A partir de 1492, os espanhóis também passaram a investir no comércio e na expansão ultramarina e da cristandade. Com a “descoberta” da América, veio a necessidade de oficializar seus direitos de alguma forma, e por isso reivindicaram junto à Santa Sé os mesmos poderes concedidos aos portugueses. No ano seguinte foi expedida a bula Inter Caetera, através da qual monarcas portugueses e espanhóis receberam livre e absoluto poder de jurisdição sobre homens e terras do mundo oriental, a atribuição de vigários de Cristo (título que lhes permitia atuar em nome da Igreja e exercer alguns de seus poderes) e a autorização para a conquista das Índias Ocidentais. Por fim, este documento garantiu aos ibéricos a posse de todo o mundo recém-descoberto e ainda a ser descoberto, dividindo o globo em duas partes: tudo o que estivesse a 100 léguas a oeste e ao sul das ilhas de Açores e de Cabo Verde era de posse dos castelhanos, e o que estivesse a leste e ao sul desta marca, de posse portuguesa.Foi contra esta forma de aquisição de poder que o jurista Hugo Grócio se posicionou, colocando em pauta duas questões: a primeira, e mais polêmica, referente ao alcance do poder dos papas. O holandês entendeu que esses homens poderiam legislar apenas sobre assuntos espirituais, e intervir exclusivamente na vida de homens de confissão católica. Determinar de que forma e com quem os povos asiáticos poderiam ou não comerciar estava visivelmente fora deste alcance. Grócio procurou demonstrar que os homens não católicos, fossem eles protestantes ou pagãos, não tinham obrigação de ordenar sua conduta pelos ensinamentos da Igreja, pois não lhe deviam obediência.Quem concedeu aos papas a posse de todo o mundo para que pudessem repassá-la aos monarcas ibéricos através da bula Inter Caetera? Esta foi a segunda questão levantada pelo jurista. Em nenhum documento utilizado pela Igreja ou pelos ibéricos este direito havia sido comprovado.Desde a época da Reforma Religiosa, no século XVI, o governo e a população dos Países Baixos, assim como os ingleses, não compreendiam a Igreja Católica como autoridade suprema, nem que ela devesse se encarregar de questões mundanas, como comércio, colonização e guerras. O comércio era visto como assunto dos homens, independente da religião, e pertencente a um direito maior, este sim capaz de legislar sobre as questões de todos os povos: o direito natural. Este código de leis era responsável por organizar as relações entre os homens. Pensado por Aristóteles na Grécia antiga, o direito natural era, portanto, muito anterior ao direito divino. Previa a importância do comércio para o desenvolvimento da comunicação entre os homens e os povos, e direito igual para todos. Outro direito natural e igual para todos era o de navegação por todas as partes: os mares, assim como o ar, não podiam ser ocupados, logo, não podiam ser de posse de ninguém.
Toda a defesa e a argumentação de Hugo Grócio foram expressas em um pequeno panfleto intitulado Mare Liberum. Publicado anonimamente em 1608, o trabalho alcançou grande repercussão nos Países Baixos, Inglaterra, Espanha e Portugal. Muitos não concordavam com seus argumentos, mas compreenderam a necessidade de laicizar o direito internacional para que todos os países pudessem participar de forma igual da nova lógica comercial – a exemplo dos ingleses, que defendiam o direito ao monopólio de rotas de navegação, desde que não houvesse interferência da Igreja, fosse ela católica ou não.A autoria do panfleto foi creditada a Grócio apenas no século XIX, mas suas ideias compuseram debates sobre a diplomacia internacional por todo esse período, e auxiliaram na construção de normas de conduta e de um direito com contornos mais definidos e bases menos relacionadas às confissões religiosas.A intenção de Grócio em constituir um direito laico não foi facilmente aceita. Os povos ibéricos, baluartes da religião católica e beneficiários de seu poder, tentaram combater a influência do pensamento do holandês. Em 1625, o jurista português Frei Serafim de Freitas publicou o tratado Do justo império asiático dos portugueses, no qual refutou um a um os argumentos expostos no panfleto Mare Liberum. O texto de Freitas reflete a crença de que cabia à Igreja Católica resolver e regulamentar os problemas entre os povos, evitando que causas “mundanas” gerassem crises espirituais – como uma guerra e atos de crueldade, por exemplo. Freitas resgatou interpretações da Bíblia há muito contestadas, mas que garantiam a Pedro, e por consequência à Igreja, direito sobre as terras e os mares do mundo.A nau Santa Catarina, motivo do início do debate entre Grócio e Freitas, foi devolvida aos portugueses cerca de seis meses após o seu apresamento. Mas as reivindicações de Grócio quanto à regulamentação de atos e navegação e comércio foram incorporadas em tratados entre a Coroa portuguesa e outras potências após a União Ibérica.A obra de Freitas teve pouca repercussão, pois foi editada em um período em que já nem os próprios ibéricos buscavam defender seus direitos recebidos da Igreja. Um mundo no qual a Reforma Religiosa já estava consolidada, e onde os países que adotaram novas confissões possuíam destaque no cenário internacional. Um mundo que Grócio ajudara a construir.Lúcia Chueire L. Witoslawski é autora da dissertação “Um novo direito para uma nova geografia: Hugo Grotius, Serafim de Freitas e a Liberdade dos Mares” (UFPR, 2011).Saiba MaisBOXER, Charles. O império marítimo português 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.DORÉ, Andréa. Sitiados. Os cercos às fortalezas portuguesas na Índia. São Paulo: Alameda, 2010.MELLO, Evaldo Cabral de. O negócio do Brasil. Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003.MORSE, Richard. O espelho de próspero. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.PAGDEN, Anthony. Povos e impérios. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.
Grócio e o Novo Mundo
Lúcia Chueire L. Witoslawski