Os europeus adotaram diferentes táticas para tentar controlar os índios guaranis ao longo dos séculos XVI e XVII. Ao lado de estratégias como as alianças ou a força bruta, incentivaram a presença de missionários cristãos encarregados da “conquista espiritual” dos nativos. O resultado foi o surgimento de uma disputa da fé dos índios entre os padres vindos da Europa e os xamãs, líderes religiosos indígenas e importantes focos de resistência à dominação estrangeira. Nessa briga, quem levou a melhor foram os missionários, que conseguiram desacreditar os xamãs.
A ordem religiosa que nessa época teve mais sucesso na tarefa de catequizar os índios do Brasil e das regiões do Prata foi a dos jesuítas. Talvez por isso, a Informação de um jesuíta anônimo, de 1620, consiga explicar tão bem as dificuldades que os espanhóis vinham encontrando até então para “pacificar” os guaranis.
“É gente valorosa na guerra, e, onde quer que estejam, são senhores das nações vizinhas. São altivos (...) e a todos outros povos chamam de escravos, com exceção dos espanhóis, a quem chamam de cunhados (…). Porém (...) vendo que os espanhóis os tratavam não como parentes, mas como criados, começaram a fugir e a não querer servi-los. Os espanhóis tentaram obrigá-los, e começou a guerra que dura até hoje”, diz o texto.
A necessidade de conquistar os guaranis se deve à sua importância estratégica para os europeus. No início do século XVI, quando as fronteiras entre os impérios ibéricos eram imprecisas, eles viviam numa região de disputa entre espanhóis e portugueses. Habitavam basicamente os vales dos rios Paraguai, Uruguai e Paraná, ocupando áreas cobertas por florestas, espaços de terras férteis onde poderiam plantar suas roças.
Desde as primeiras viagens dos europeus para a região, atribuíam-se aos guaranis histórias como as dos exploradores capitaneados por Juan Díaz de Solís (1470?-1516), que em 1516 desembarcaram em uma praia do Rio da Prata, atendendo a sinais feitos por nativos, e acabaram sendo mortos. Um dos náufragos do grupo, o português Aleixo Garcia, decidiu checar se algumas histórias repetidas pelos guaranis sobre a existência de uma “serra da prata” eram verdadeiras. Após uma jornada com dois mil índios pela trilha indígena chamada Peabiru, acabou morto pelos índios paiaguás às margens do Rio Paraguai.
O primeiro documento histórico em que aparece o termo “guarani” data de 1528. Em carta escrita por Luiz Ramírez, um marujo da expedição de Sebastião Caboto (1526-1529), lê-se que os guaranis viviam “espalhados por esta terra e por muitas outras como corsários, porque são inimigos de todas estas nações”. Entre seus inimigos estavam tupis, paiaguás e guaicurus, que periodicamente assaltavam as aldeias guaranis em busca de alimentos e mulheres.
Os guaranis formaram uma sociedade que valorizava qualidades guerreiras, como a destreza e a coragem nos enfrentamentos, mas nem isso foi capaz de impedir que os espanhóis fundassem cidades em seu território. A primeira foi Nossa Senhora da Assunção, em 1537. Vencidos, os índios estabeleceram com os brancos uma aliança que, na sua ótica, estava baseada na noção de parentesco. Eles forneciam esposas para os forasteiros, além de hospitalidade, alimento e ajuda para o trabalho; em troca, passavam a contar com os espanhóis e suas armas de fogo nas investidas contra seus inimigos tradicionais.
Esta “aliança” nunca deixou de ter bases muito frágeis, mesmo porque não era compreendida da mesma forma por brancos e índios. Em pouco tempo ela foi rompida, especialmente devido às crescentes exigências para que os guaranis abastecessem contingentes cada vez maiores de espanhóis. Depois de 1556, quando as autoridades locais instituíram o trabalho obrigatório dos índios como uma espécie de “imposto” (a chamada “encomienda”), uma série de mais de 23 rebeliões sacudiu a região.
Caraís (xamãs de maior renome) percorriam as aldeias discursando contra os brancos, reafirmando o valor das antigas tradições e até ameaçando os índios de punição. Muitas vezes pregavam o fim iminente do mundo e o início de um tempo melhor, ao qual teriam acesso os que praticassem os ritos adequados.
Um bom exemplo é o da revolta liderada por um índio chamado Oberá, ocorrida em 1579. De acordo com o padre Pedro Lozano (1697-1752), historiador da Companhia de Jesus, Oberá nasceu em uma das aldeias confiadas aos espanhóis, onde recebeu educação cristã. Ao se levantar contra os brancos, passou a se apresentar como “filho verdadeiro de Deus Pai, concebido e nascido de uma virgem”, e a prometer liberdade aos que abandonassem o trabalho e se entregassem aos cantos e às danças tradicionais. Garantia que iria derrotar os espanhóis lançando contra eles o fogo de um cometa. Apesar de ter conseguido muitos seguidores e se propagado por uma extensa área, o movimento foi derrotado.
Muitas dessas revoltas parecem associar elementos da tradição religiosa guarani com as novidades da colonização. Outro líder de uma delas, em 1556, apresentava um menino que dizia “ser Deus ou filho de Deus”, atraindo seguidores que se animavam a voltar “aos seus cantares passados”. Os brancos denunciavam essas práticas como “a perdição dos índios”, pois, durante as revoltas, “não semeiam (...), mas como loucos, de dia e de noite, outra coisa não fazem senão cantar e dançar, até que morrem de cansaço”.
O incentivo europeu à presença de sacerdotes cristãos entre os índios nasce como reação ao fracasso da aliança e das medidas repressivas. Primeiro chegaram os franciscanos, que instalaram seus “pueblos” nas redondezas de Assunção, Paraguai. Estes não tiveram vida longa, em boa medida porque os índios que os habitavam permaneciam na órbita dos espanhóis da cidade.
A partir de 1609, começam a ser fundados os povoados dos jesuítas, as chamadas “reduções”, em que os índios viviam sob rígida disciplina, mas livres do trabalho para os colonos. Os padres estenderam sua área de missão a territórios que hoje são parte do Brasil, nos atuais estados do Paraná, do Rio Grande do Sul e de Mato Grosso do Sul.
A estratégia jesuíta era tratar bem os caciques e desacreditar as lideranças religiosas indígenas. Os chefes das tribos que aceitassem conduzir sua gente para as novas aldeias mantinham alguns de seus papéis sociais tradicionais. Assim, continuavam organizando o trabalho da sua gente e conduzindo seus guerreiros nas situações de conflito. Além disso, ganhavam alguns privilégios, como uma educação especial para seus filhos e o título de “Don”. Já os xamãs eram hostilizados porque se apresentavam como radicais defensores dos costumes dos antepassados e daquilo que os padres chamavam de “superstições” e “enganos” das suas tradições.
A disputa entre novas e velhas lideranças tornou-se uma “guerra de messias”, em que as duas partes usavam estratégias semelhantes para convencer os índios: discursos inflamados, promessas e ameaças.
Algumas armas dos missionários para atrair os índios eram seu próprio desapego dos bens materiais e a distribuição de presentes, como anzóis ou machados de ferro. Pareciam ainda ser detentores de poderes de cura mais eficientes que o dos xamãs, num tempo em que a disseminação de doenças infectocontagiosas dizimava populações inteiras. Prometiam, portanto, proteção neste mundo e salvação na vida eterna.
Talvez numa tentativa de apropriar-se dos poderes que os missionários pareciam controlar, alguns xamãs adotavam elementos do rito cristão, como se lê na queixa do padre Montoya (1585-1652) sobre o índio Miguel Artiguaye: “Adornando-se com uma capinha de plumas (...) e outros enfeites, simulava estar dizendo a missa. Punha sobre uma mesa algumas toalhas e em cima delas uma torta de mandioca e um vaso (...) com vinho de milho, e falando entre os dentes, fazia muitas cerimônias”.
A leitura de passagens escritas pelos jesuítas sugere que a vida cotidiana nas “reduções” era cheia de prodígios. Aparições, curas, ressurreições e outras manifestações do sobrenatural eram instrumentos de “sensibilização” dos índios. Mas não foi por ingenuidade que os guaranis aderiram à vida nesses povoados. Havia também vantagens materiais. Os padres tinham maior capacidade de negociar com as autoridades brancas do que os xamãs, e assim garantiam alguma proteção contra os colonos espanhóis e os bandeirantes que assaltavam as aldeias para capturá-los e vendê-los como escravos.
O resultado é que, no final do século XVII, um conjunto de aldeias chamado de “30 povos das Missões” obteve prosperidade a partir do trabalho de missionários e guaranis. Com essa nova aliança, o tempo dos xamãs ficou para trás. O quanto os guaranis haviam sido efetivamente “controlados” é um tema sempre em debate. A guerra guaranítica iniciada pelos índios dos Sete Povos das Missões (RS) em 1753, desafiando o disposto pelo Tratado de Madrid entre os reis de Portugal e da Espanha, é um bom demarcador dos limites da autoridade dos padres sobre eles.
Maria Cristina Bohn Martins é professora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e autora de Sobre festas e celebrações: as reduções do Paraguai (séculos XVII e XVIII) (Ed. Passo Fundo: Editora da UPF; ANPUH - RS, 2006).
Durante as rebeliões, xamãs percorriam as aldeias discursando contra os brancos, reafirmando o valor das antigas tradições e até ameaçando os índios
Jesuítas e xamãs disputaram a preferência dos índios guaranis com estratégias semelhantes: discursos inflamados, promessas e ameaças
Saiba mais - Bibliografia
CASTELNAU-L’ÉTOILE, Charlote de. Operários de uma vinha estéril: os jesuítas e a conversão dos índios no Brasil. Bauru: Edusc, 2006.
HAUBERT, Maxime. Índios e jesuítas no tempo das missões. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
MONTEIRO, John M. “Os guaranis e a história do Brasil Meridional”. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos índios do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
VAINFAS, Ronaldo. “Idolatria e milenarismos – A resistência indígena nas Américas” In: Estudos Históricos, vol. 5, nº 9. Rio de Janeiro, 1992.
Saiba Mais - Filme
“A Missão”, de Roland Joffé (1986).
Guerra de messias
Maria Cristina Bohn Martins