Guerreiras da maré

Juliana Barreto Farias

  • Marisqueiras, donas-de-casa e funcionárias públicas do povoado de Tejucupapo recontam a história de suas antepassadas todo mês de abril.  Abaixo, cena do espetáculo registrada em Tejucupapo: um filme sobre mulheres guerreiras, dirigido por Marcílio Brandão em 2002. (Acervo página21)Dona Luzia é uma mulher determinada. Em 1993, quando se recuperava de uma cirurgia cardíaca, prometeu que faria de tudo para contar a história de seu lugar. Foi o que fez. Há quinze anos ela comanda um grupo de marisqueiras, donas-de-casa, estudantes e funcionários públicos que encenam a Batalha das Heroínas da Vila de Tejucupapo, distrito de Goiana, situado a cerca de 50 quilômetros do Recife. Todo último domingo do mês de abril, a população do pequeno povoado sobe o Monte das Trincheiras para assistir à luta das mulheres que no século XVII “defenderam sua terra, seus filhos e maridos do invasor holandês”.

    Até a década de 1990, pouca gente em Tejucupapo conhecia direito essa história antiga, descrita pela primeira vez em 1648 no livro Valeroso Lucideno, de frei Manoel Calado. A própria Dona Luzia descobriu o episódio quase por acaso. Em 1984, no leito de um hospital do Recife, fez amizade com uma enfermeira que, para tranqüilizá-la, repetia sempre: “Toda mulher de Tejucupapo é uma guerreira”. Curiosa, logo que recebeu alta foi atrás de mais detalhes. Conversando com sua avó e com outros moradores mais velhos, descobriu que suas antepassadas tomaram a frente naquele conflito armadas de foices, chuços, paus, pedras e até de água com pimenta. Essa história não saiu de sua cabeça durante muito tempo. Nove anos mais tarde, cumpriu a promessa e recriou a batalha: “Quando saí do hospital, consegui um velho livro escolar que falava do episódio e fui escrever o roteiro. Então perguntei à comunidade quem queria entrar no meu sonho”, lembra a auxiliar de enfermagem Luzia Maria da Silva, de 63 anos.

    O cenário escolhido foi uma clareira na Fazenda Megaó, bem próxima do centro de Tejucupapo. Ali teria de fato ocorrido uma das batalhas mais sangrentas do conflito. As “atrizes” recrutadas para representar as heroínas eram donas-de-casa, servidoras municipais e mulheres que viviam na maré catando mariscos. Os homens, desconfiados, se recusaram a participar. Nenhum problema: as meninas também se transformaram em soldados holandeses. Sem dinheiro para comprar tecidos, as mulheres usaram suas próprias roupas e confeccionaram saias de chita “do século XVII”. Já os combatentes vestiam o uniforme da banda musical de um vilarejo vizinho. O único apoio oficial foi um carro de som cedido pela prefeitura. Todo o espetáculo seria narrado ao vivo por Dona Luzia. Empreitada tão original atraiu moradores das cidades vizinhas e da capital. Foi um sucesso.

    Hoje a peça continua mobilizando toda a comunidade, mas passou por diversas transformações. Ganhou mais atores, novos figurinos e um roteiro reformulado. Os governantes acabaram se rendendo à luta feminina. Só não conseguiram resolver problemas concretos da população, como a violência contra as mulheres e o desemprego. “Já faz alguns anos que recebemos uma ajuda do governo do estado e da prefeitura. Mas nossa vivência ainda continua a mesma”, lamenta Dona Luzia. Nada que desanime essa pernambucana de olhar sereno e voz suave. “A gente só tem vitória se tiver luta”, ainda acredita.