Quando Hipólito da Costa lançou, em junho de 1808, em Londres, o primeiro jornal destinado aos leitores da América portuguesa, deve ter tido dificuldades em encontrar o título adequado para sua publicação. Podia ter sido Correio Brasileiro, mas esta palavra, “brasileiro”, ainda não existia no sentido em que hoje a percebemos. “Brasileiros”, na época, eram os comerciantes que negociavam com o Brasil – o sufixo “eiro” denotava ofício, atividade profissional, tal qual “carpinteiro” ou “sapateiro”. O jornal também não podia se chamar Correio Brasiliano, pois o termo “brasiliano” servia para identificar os índios. Já “brasilienses” eram os portugueses nascidos ou estabelecidos no Brasil. Por analogia, Hipólito batizou então seu jornal de Correio Braziliense.
Ele pode não ter acertado no título, pois não poderia prever que, tempos depois, os habitantes desta parte do mundo seriam conhecidos como brasileiros e não como brasilienses. Mas acertou inteiramente nos seus propósitos jornalísticos e nos caminhos que apontou, nas páginas do Correio Braziliense, para a nova nação que aqui começava a surgir. Hipólito foi o primeiro brasileiro ilustrado a defender abertamente a abolição da escravatura e a substituição gradual do trabalho escravo pelo trabalho livre no Brasil, processo que, segundo ele, deveria ser sedimentado com a imigração de trabalhadores europeus especializados. Foi também um violento crítico dos monopólios e um defensor do livre-comércio, embora achasse que os serviços essenciais à população deviam ficar sob o controle do Estado.
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Seu jornal durou 14 anos, tendo coberto um período especialmente importante da história do Brasil – de 1808, ano da chegada da família real portuguesa, quando a antiga colônia ganha novo status, até1822, ano da Independência. Tudo o que aconteceu de importante nesse espaço de tempo aparece registrado nas páginas do Correio Braziliense. A publicação, mensal, era bem diferente dos jornais de hoje, na forma e no conteúdo. Tinha o formato de um livro, assemelhando-se mais às atuais revistas acadêmicas. Hipólito da Costa não escrevia apenas. Era ao mesmo tempo redator, correspondente, pesquisador e até distribuidor. Dadas as condições da época, a distribuição era por sinal precaríssima, atingindo o jornal um público que não passava dos quinhentos leitores. Além disso, os exemplares destinados aos assinantes do Brasil eram seguidas vezes apreendidos no porto do Rio de Janeiro, pois tratava-se, aqui, de uma publicação clandestina, proibida pela Coroa.
Com o Correio Braziliense, Hipólito da Costa pôs em risco seus interesses de classe e a própria vida. As violentas críticas que publicou contra a má gestão dos negócios públicos por parte dos ministros de d. João VI e também contra a imensa influência da Inglaterra, país em que se refugiara, sobre a política externa e econômica portuguesa, lhe valeram inimigos em vários pontos do mundo. Suas idéias eram combatidas tanto em Londres como em Lisboa e no Brasil por jornais e jornalistas subsidiados pelo governo português. Mas Hipólito não desanimou, devido à firmeza de suas convicções. Até fundar seu jornal, ele cumprira uma trajetória envolvendo perseguições e tortura psicológica, tendo sentido na própria carne os efeitos da intolerância dos poderosos.
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Hipólito nasceu em 1823 na Colônia do Sacramento, fundada pelos portugueses na margem esquerda do rio da Prata em 1680. A região, hoje pertencente ao Uruguai, foi objeto de longos litígios entre as Coroas portuguesa e espanhola. O pai de Hipólito, Félix da Costa Furtado de Mendonça, nascido em Saquarema, no Rio de Janeiro, era um dos muitos militares brasileiros enviados àquela zona conflagrada no final do século XVIII. Primogênito de uma prole de três varões, Hipólito viajou aos 17 anos para Coimbra, onde se formou bacharel em leis e doutor em filosofia. Em 1798, aos 24 anos, recebeu de d. Rodrigo de Sousa, secretário de Estado da Marinha e Domínios do Ultramar Coutinho, o encargo de estudar nos Estados Unidos algumas culturas nativas. Dessa viagem deixou anotações interessantíssimas, reunidas num diário que só veio a ser publicado no Brasil em 1955, pela Academia Brasileira de Letras, sob o título Diário de minha viagem à Filadélfia. Esta foi uma verdadeira viagem de formação, contribuindo para sedimentar uma visão de mundo e uma agenda de valores pessoal em que a liberdade e a tolerância política e religiosa passaram a ter papel central.
Foi na Filadélfia que Hipólito se filiou à maçonaria, retornando determinado a trabalhar em Portugal pelo progresso da organização, que tinha um papel importante no mundo da época. Com esse propósito, durante o período em que permaneceu em Lisboa (1800 a 1802), manteve intensa militância, tornando-se amigo, entre outros maçons, de Augusto Frederico, duque de Sussex e filho do rei Jorge III. Em abril de 1802, sob o pretexto de comprar máquinas para a Impressão Régia, Hipólito viajou a Londres. Ia, na verdade, como representante das lojas maçônicas portuguesas que pretendiam obter a proteção inglesa para suas atividades, proibidas em Portugal. Mas Hipólito não sabia que já havia algum tempo sua vida vinha sendo investigada pelo intendente de Polícia, Diogo Inácio de Pina Manique. Hipólito foi preso três dias depois de voltar da Inglaterra, em julho de 1802.
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Narrativa da perseguição, o livro que publicou em Londres, em 1811, é um relato minucioso da prisão, do processo e dos longos interrogatórios a que foi submetido. Escrito para denunciar os desmandos da máquina inquisitorial, a Narrativa é a mais apaixonada defesa da maçonaria que se conhece e ao mesmo tempo a mais viva denúncia da Inquisição já escrita em língua portuguesa. Pelo seu relato, podemos entender a atitude que nortearia, daí por diante, a sua vida. Os princípios de liberdade de associação e de expressão e de tolerância religiosa e política que defendeu em seus interrogatórios eram realmente revolucionários num Portugal que, em pleno século XIX, ainda se encontrava submetido à Santa Inquisição.
A experiência americana, somada à dura prova por que passou na prisão, o prepararam para os 18 anos em que viveria na Inglaterra. Hipólito ficou preso até agosto de 1805, quando, aproveitando-se de uma distração do carcereiro, e com o apoio dos irmãos maçons, conseguiu escapar, seguindo para Londres. Durante os primeiros anos de vida na Inglaterra, trabalhou como tradutor, professor de português, colaborador em uma obra sobre a história de Portugal e em uma gramática.
De Londres, ele viu na chegada do príncipe d. João à sua colônia americana, em 1808, uma possibilidade de progresso e desenvolvimento para a antiga colônia. Achava que aquela era uma chance única para o Brasil: a oportunidade de começar sua história adotando políticas e instituições que não tivessem os vícios daquelas que conhecera em Portugal. A forma que achou de trabalhar pela mudança foi a palavra impressa e livre de censuras, tal como se fazia no país que o acolhera.
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Como era amigo e protegido do filho do rei, vivia na capital inglesa protegido também pelas leis do país. A Inglaterra do rei Jorge III (1738-1820) era um país livre, de leis sólidas e com um parlamento e uma imprensa fortes e atuantes. Hipólito considerava essas duas instituições fundamentais para o funcionamento das outras, sentindo-se seguro para fazer observações e críticas que nenhum outro súdito português ousara fazer até então. Através das páginas do Correio Braziliense, passou a defender a liberdade de imprensa, advogando-a em inúmeros artigos. A vontade de ver adotado no Brasil o modelo liberal inglês fez com que Hipólito fosse um grande divulgador da Constituição inglesa e de obras sobre o assunto.
Inicialmente contrário a qualquer projeto de separação de Portugal, Hipólito foi quem mais argumentou em defesa da permanência da Corte no Rio de Janeiro, ajudando a garantir, para o Brasil, a supremacia no Reino português. Os documentos reunidos no Correio cobrem quase tudo o que acontecia de relevante em termos políticos e econômicos na Europa e nas Américas, com ênfase no Brasil e Portugal. Através do Correio Brazilense podemos acompanhar, com riqueza de detalhes, tudo o que acontecia na Europa, inclusive a trajetória de Napoleão, de 1808 até a derrota e o exílio em Santa Helena. Outro fato internacional que os brasileiros puderam acompanhar graças ao jornal de Hipólito da Costa foi o processo de independência das colônias espanholas na América.
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Hipólito também acompanhou o processo da nossa independência e saudou o aparecimento no Brasil dos primeiros jornais e jornalistas independentes que emergiriam na cena da imprensa finalmente tornada livre em 1821. Em novembro de 1822, julgando encerrada sua missão, deixou de publicar o Correio Braziliense. Colaborou ainda com os esforços para o reconhecimento de nossa independência durante o ano de 1823, mas morreu subitamente no final de 1823, aos 49 anos, deixando uma legenda que o tornou merecidamente reconhecido como o fundador da imprensa brasileira.
Isabel Lustosa é cientista política, historiadora da Casa de Rui Barbosa e autora, entre outros livros, de O nascimento da imprensa brasileira (Jorge Zahar, 2002).
Guerreiro da palavra
Isabel Lustosa