Hoje em dia, a maioria das pessoas discordaria radicalmente de propostas pedagógicas que sugerissem a inclusão de marchas e ginástica militar ou a prática de tiro ao alvo com armas de fogo na educação de crianças e jovens nas escolas. Embora essas práticas pareçam absurdas, por muito tempo os exercícios físico-militares fizeram parte dos currículos das escolas civis brasileiras. Isso ocorreu na passagem do século XIX para o XX, período marcado por uma grande tensão política e militar entre as nações europeias, e que levou à Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
Foi esse clima que fez muitas nações adotarem esse ensino para meninos em suas escolas até meados do século XX. No Brasil, essas atividades ensinadas por professores e militares tinham como objetivo preparar os alunos, a fim de que pudessem ser chamados para defender a nação em conflitos armados no futuro. As meninas, por sua vez, faziam outras atividades corporais e manuais como, por exemplo, aulas de bordado e de costura. O funcionamento dos nossos batalhões formados por estudantes e a prática desses exercícios nas escolas daqui foram bem menos intensos do que na Europa, mas ocorreram em instituições educacionais de vários estados e geraram muita polêmica.
O processo foi iniciado no Império, quando Rui Barbosa (1849-1923) planejou uma grande reforma na educação brasileira e a inclusão desses exercícios como atividade curricular. Sua proposta foi elaborada em uma comissão da Câmara dos Deputados encarregada de avaliar a reforma do ensino implementada em 1879 pelo ministro do Império Leôncio de Carvalho (1847-1912). A proclamação da República, em 1889, incrementou os exercícios físico-militares nas escolas. Afinal, a filosofia republicana pregava que todo cidadão deveria estar preparado para defender a nação, ou seja, difundiu-se a ideia do cidadão-soldado. A primeira reforma educacional de cunho republicano, posta em prática por Benjamin Constant (1836-1891), em 1890, previa que as escolas primárias do Distrito Federal adotariam os exercícios militares, servindo de referência para outros estados.
De acordo com essa medida, os alunos já tinham que fazer movimentos militares diversos aos sete anos, além de marchar. Aos 13, previa-se o manejo de armas de fogo adaptadas. Os exercícios também fariam parte do currículo no ensino secundário. Em 1894, criou-se até um batalhão escolar no tradicional Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, então chamado “Ginásio Nacional”.Essas práticas não ficaram restritas às instituições educacionais do Distrito Federal (Rio de Janeiro). Nos arquivos escolares de Minas Gerais, por exemplo, é possível encontrar muitos registros de atividades militares. Elas foram normatizadas, já em 1892, por uma lei que determinava que cabia aos docentes a missão de ministrar os exercícios. Em 1906, outra lei estabeleceu que as aulas poderiam ser desenvolvidas por professores ou por instrutores militares nas escolas primárias.
Muitos regentes – professores – não cumpriam o programa, alegando que não tinham conhecimento suficiente para dirigir os exercícios. Foi o caso de Américo de Campos Ferreira, professor da cidade de Sacramento (MG), que, em correspondência enviada ao secretário do Interior, mencionou sua incapacidade de ensinar as marchas militares: “As evoluções militares constituem um ponto do programa, em cuja execução eu tenho, francamente, encontrado dificuldades por não saber dirigi-las, pois quando estudei na escola normal não me ensinaram isto lá. Para a fiel execução deste ponto, espero alcançar um favor que alguns de meus colegas lograram alcançar, isto é, a sua intervenção perante o chefe de polícia, a fim de que eu obtenha ordem para o comandante do destacamento local instruir os meus alunos nos exercícios militares”.
A falta de instrutores militares e de professores preparados era uma constante nos relatórios de muitos inspetores escolares nas primeiras décadas do século XX, e impedia que os programas de ensino fossem cumpridos na íntegra. Por conta disso, não só professores como algumas professoras assumiram a instrução militar em certas localidades. Em 1912, o relatório do inspetor escolar José Madureira de Oliveira registrou o trabalho de Francelina Maria de Jesus, regente da escola masculina do distrito de Nossa Senhora Aparecida de Córregos (MG). O inspetor elogiava a dedicação e os métodos da professora, e em determinado trecho acrescentou: “[...] são admiráveis os trabalhos de desenho, cartografia e caligrafia desta escola; a professora tem ensinado, admiravelmente, até mesmo os exercícios militares que pessoalmente dirige”.
Mas a prática dos exercícios físico-militares, marcada por muitas polêmicas, sofreu grande resistência nas escolas brasileiras. As discussões sobre a pertinência dessa instrução envolveram professores e pais de alunos, que questionavam sua importância. Um bom exemplo da polêmica em torno do tema é a discussão entre Evaristo Muzzio, pai de aluno, que se opunha aos exercícios, e os professores da cidade mineira de Jaguary – hoje Camanducaia – em 1908. Muzzio, que era redator do periódico O Clamor, de circulação local, fez duras críticas às aulas ministradas por um soldado em um domingo que, para ele, eram mais pesadas do que os exercícios praticados no Exército: “[...] quase seis horas de exercícios naquele sol abrasador, escaldante, os pobres meninos suados, estafados, obedeciam à voz do comandante, que, resguardado debaixo de um bom guarda-sol, comandava!”
Os professores da cidade, preocupados com a repercussão das críticas, se defenderam numa carta enviada ao secretário do Interior do estado: “[...] as evoluções militares nesta cidade de Jaguary têm sido praticadas na conformidade do programa de ensino, e hoje todos os pais de família já reconhecem a utilidade dessa disciplina; tanto assim que, nos dias de exercícios, o povo aplaude os meninos pela boa vontade, presteza e satisfação com que observam a voz do comando. Os alunos são os primeiros a solicitar dos professores esse exercício que eles muito apreciam. Demais, isso tem concorrido poderosamente para se obter boa frequência na escola”.A polêmica continuou quando outro periódico da cidade, A palavra, passou a incentivar essas atividades: “[...] observando, escrupulosamente, o programa do ensino público, os distintos professores desta cidade têm feito algumas evoluções militares com seus alunos [...] Esses exercícios sobre concorrem para o bem da saúde das crianças, ainda as habilitam a serem, futuramente, amestrados defensores da honra e da integridade nacional. Que os senhores pais de família auxiliem aos professores e ao governo nessa disciplina aliás necessária”.
A insatisfação fez com que alguns pais tirassem seus filhos das escolas. Preocupados com isso, professores da cidade mineira de São Sebastião do Paraíso redigiram e imprimiram um folheto informativo e o distribuíram aos pais: “[...] os exercícios físicos e militares, além de darem saúde ao corpo, despertam nos meninos o sentimento de patriotismo, dão-lhes garbo e imponência necessária, porque muitos há que vêm à escola não sabendo nem caminhar!”
A prática dos exercícios físico-militares nas escolas fazia parte de uma filosofia educacional geralmente desconhecida por regentes e pais. Alguns destes acreditavam que seus filhos corriam o risco de ter que entrar para a carreira militar por estarem participando dessas aulas nas escolas. Também havia aqueles que não viam nenhum sentido ou utilidade nos exercícios. Outros apontavam os riscos para a saúde de crianças e jovens, especialmente por inexistirem espaços físicos para a realização das atividades. Na cidade de Grão Mogol, no norte de Minas Gerais, em 1908, um inspetor escolar suspendeu os exercícios no verão. Nas palavras do inspetor, aquela estação era “[...] imprópria para tais exercícios que são feitos ao sol ardente por falta de lugar apropriado nos edifícios das escolas e suas imediações”.
A falta de militares, professores mal preparados e a oposição dos pais criaram dificuldades para a realização dos exercícios físico-militares nas escolas brasileiras. Havia um sentimento generalizado de que essas atividades representavam a formação de um espírito belicista, estranho à realidade brasileira. Em meados do século XX, esses exercícios caíram em desuso nas escolas. O fim da Segunda Guerra Mundial e a necessidade de se estabelecer um ambiente mais pacífico entre as nações certamente contribuíram muito para isso.
Adalson de Oliveira Nascimento é historiador, professor de Arquivologia da Universidade Federal de Minas Gerais e autor da tese “Exercícios físico-militares em escolas civis brasileiras e portuguesas na passagem do século XIX para o XX” (UFMG, 2009).
Saiba Mais - Bibliografia
FERREIRA NETO, Amarílio. A pedagogia no exército e na escola, a educação física brasileira (1880-1950). Aracruz, ES: Faculdade de Ciências Humanas de Aracruz, 1999.
HORTA, José Silvério Baía. O hino, o sermão e a ordem do dia: a educação no Brasil (1930-1945). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1994.
SOUZA, Rosa Fátima. “A militarização da infância: Expressões do nacionalismo na cultura brasileira”. Caderno Cedes, nº 52. Campinas: novembro de 2000.
Guerreiros mirins
Adalson de Oliveira Nascimento