“Qualquer pessoa que não conheça a fisionomia do Tiradentes apenas verá nessa tela um açougue de carne humana. O artista dirá, talvez, que foi fiel à história; pois sim, mas que quer dizer isso?” A indagação do professor de estética da Escola Nacional das Belas Artes, Carlo Parlagreco, quando da exposição do quadro “Tiradentes esquartejado” no Rio de Janeiro, em julho de 1893, ainda ecoa no espanto dos visitantes do Museu Mariano Procópio, em Juiz de Fora (MG), ao se depararem com a obra mais original do pintor Pedro Américo de Figueiredo e Melo (1843-1895).
Sabemos que o artista fez estudos a óleo para uma série de quadros sobre a história da Conjuração Mineira, mas apenas “Tiradentes supliciado” – hoje conhecido como “Tiradentes esquartejado” – foi transformado em tela definitiva.
Durante o século XIX, o trabalho de um pintor de história pautava-se pelo equilíbrio entre a fidelidade ao tema, as necessidades ditadas pela estética e os valores de seu tempo. Como o historiador que escolhe os fatos do passado e a forma de analisá-los, silenciando ante outros, o artista escolhe como e em que momento deve representar seu personagem. Pedro Américo, mal a recém-proclamada República (1889) começava a erigir seu mártir, optou por apresentar-nos um herói aos pedaços. Por quê?A hipótese de o quadro espelhar o descontentamento do pintor face à própria vida pode ser levantada. Pedro Américo se sentia envelhecido e doente; com a República, perdera sua posição de pintor oficial do Império e fora aposentado da Academia das Belas Artes em 1890. O quadro também poderia refletir suas preocupações com as dificuldades de implantação do novo regime político. Difícil saber suas motivações pessoais. É mais proveitoso tentar compreender o processo de criação desse quadro tão singular.
Com a proclamação da República, Pedro Américo foi eleito deputado pela Paraíba, sua província natal. Por força de um mercado de arte insignificante no Brasil, o artista tentará recuperar o apoio do Estado às artes, abalado com a queda do Império. Apresenta então um projeto de lei para a criação de uma Galeria Nacional de Belas Artes, desvinculada da Escola Nacional de Belas Artes. Em 1892, ano do centenário da morte de Tiradentes, decide executar por conta própria a série sobre a Conjuração Mineira, na expectativa de ver esses quadros incorporados, em um futuro próximo, à Galeria Nacional que acabou não sendo criada.
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A série teria cinco quadros, assim nomeados pelo pintor: “A cena idílica de Gonzaga a bordar a fio de ouro o vestido nupcial de sua Marília”, “A mais importante das reuniões dos conjurados”, “A cena da constatação de óbito, passada diante do cadáver de Cláudio Manuel da Costa”, “A prisão de Tiradentes em uma casa da antiga rua dos Latoeiros” e “Tiradentes supliciado”. Embora nem todos os estudos dos quadros da série que não vingaram tenham sido encontrados, os títulos dados pelo pintor permitem analisar a proposta da narrativa. Eles evocam a estrutura de uma tragédia: felicidade, erro e catástrofe. Gonzaga, feliz na expectativa do casamento, Tiradentes errando ao confiar nos conjurados e a catástrofe das prisões e execução do único condenado à morte. A tragédia está no virtuoso que erra e sofre as conseqüências.
Pedro Américo planejara iniciar a série retratando o poeta e ouvidor de Vila Rica, o português Tomás Antônio Gonzaga. Apesar de visto por muitos como o verdadeiro líder da Conjuração Mineira, o Gonzaga retratado pelo artista era um noivo em “cena idílica”, e não um conspirador. O anúncio da exposição de “Tiradentes supliciado”, na sede do jornal Cidade do Rio, datado de 2 de julho de 1893, diz sobre o primeiro quadro da série: “O distinto artista, sempre brilhante nas composições a que empresta todo o vigor do seu talento, tem já prontos outros quadros, entre os quais se destacam (...) Gonzaga, o grande poeta lírico, bordando, em tête-à-tête amoroso, a veludo e ouro, um vestido para Marília de Dirceu, que inspirou os seus versos, e que nele aparece iluminando-o com a sua bela fisionomia de mulher, vencendo, subjugando um grande coração de artista.”
Preso dias antes do casamento com Maria Dorotéia, a “Marília”, sob a acusação de ter participado, em sua residência, de conversas de amigos sobre a sedição, Gonzaga negou seu envolvimento. Em depoimento, justificou que, apesar de presente na mesma sala, encontrava-se “entretido a bordar um vestido para o seu casamento”, [...] o que não parece compatível com as idéias e paixões de uma sedição.” Ao representar Gonzaga como inocente condenado, Pedro Américo já deixava claro o sentido de sua narrativa: se aquele que era tido como o mais capaz de liderar o movimento passava o tempo bordando, ignorando tramas à sua volta, cego pelo amor, como acreditar na Conjuração Mineira?
No segundo momento, o pintor apresenta “a mais importante das reuniões dos conjurados”. No estudo a óleo ainda em poder de seus parentes, o modelo de composição destaca Tiradentes como líder militar, mas introduz um elemento corrosivo na cena: representa o traidor Silvério dos Reis entre os conjurados e os mostra reticentes. Ao tornar presente o ato da conjura, Pedro Américo se recusa a fixar a exaltação do patriotismo ou da virtude cívica. Na casa do tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrade, a hesitação dos conjurados – e entre eles os futuros traidores – lembra o erro do herói em confiar demasiadamente nos poderosos de Minas.
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O terceiro momento é o episódio polêmico da morte do advogado e poeta Cláudio Manuel da Costa, que reafirma a fragilidade interna da conjuração. Assassinado ou suicida, Cláudio morrera por falta de equilíbrio emocional. Pressionado, confessou, contrariando o pacto de silêncio firmado pelos conjurados antes de serem presos.
O penúltimo momento retrata a prisão de Tiradentes e representa um preâmbulo ao desfecho da narrativa. Aumenta o sentimento de abandono do sedicioso, motivado pelas angústias vividas em quase três anos de prisão.
Do último momento da série, “Tiradentes esquartejado”, ficaram os desenhos anatômicos, o estudo a óleo e o quadro definitivo. Pedro Américo opta pela representação realista do esquartejamento. A disposição do corpo sob o cadafalso e a citação do braço pendente da “Pietà” (1497-1500), de Michelangelo, ou da “Deposição de Cristo” (1602-04), de Caravaggio, além da presença do crucifixo, favorecem uma leitura cristã do martírio de Tiradentes. Leitura já presente em sua época e difundida pelo historiador Joaquim Norberto de Souza Silva (1820-1891) em seu livro História da Conjuração Mineira (1873). Baseado em dois documentos oriundos de testemunhas oculares, Joaquim Norberto oferece detalhes sobre a morte do “herói” republicano e demonstra que ele morreu preocupado apenas em conseguir o perdão para seus pecados. Esperava-se de um patriota que subisse ao patíbulo com olhar desafiador, reafirmando nas últimas palavras seus ideais de liberdade, e não que beijasse mãos e pés do carrasco, caminhando para a morte orando resignadamente.
Pedro Américo também despreza a visão triunfante de um condenado desafiador do poder. O artista não representa o herói em seu momento máximo, vivo e calmo diante da morte – como fez seu irmão Aurélio de Figueiredo (1856-1916) na tela “O martírio de Tiradentes”, hoje pertencente à Câmara Municipal do Rio de Janeiro. A afirmação do ideal de liberdade e confiança no porvir, presente na tela de Aurélio, não emana de um corpo destroçado. O esquartejamento impede a “ressurreição” dos ideais do herói. A ligação entre Conjuração Mineira (1789), Independência (1822) e República (1889) – proposta em outras obras a serviço dos ideais republicanos – não se estabelece.
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Ao defender seu quadro das críticas em artigo publicado no jornal Gazeta de Notícias (Rio de Janeiro, 11/07/1893), Pedro Américo evoca a importância da série completa para a plena compreensão da obra: “O trabalho que agora exponho teria produzido no meio dos outros impressão diversa e por ventura menos terrível.” Ainda que aceitando o desafio do artista e analisando “Tiradentes esquartejado” não como “uma tela isolada”, mas dentro do contexto da narrativa que a originou, é difícil crer que a série atenuaria o choque da exposição de um corpo em pedaços. Mesmo buscando o sentido religioso do martírio cristão, é a imagem do cadáver esquartejado que permanece na memória.
Porém, a série fornece maior coerência ao quadro: é fundamental por desvendar o julgamento do artista a propósito da Conjuração Mineira – um movimento débil internamente, condenado ao fracasso pelos seus erros, antes mesmo de ser reprimido. O corpo despedaçado, sem vontade própria, alvo da ação de outrem, não seria apenas a denúncia da violência do sistema colonial, mas o ápice do sentimento de fracasso e solidão, presente em toda a série. Pedro Américo sintetiza seu juízo sobre Tiradentes em carta endereçada ao barão do Rio Branco: “(...) audaz e imprudente conspirador, cujo maior defeito foi ser ignorante das coisas e dos homens de seu tempo, tanto quanto de si próprio.”
Maraliz de Castro Vieira Christo é professora de História da Arte da Universidade Federal de Juiz de Fora. Autora da tese Pintura, história e heróis: Pedro Américo e "Tiradentes esquartejado". Unicamp, 2005.
Herói em pedaços
Maraliz de Castro Vieira Christo