O universo infanto-juvenil é povoado de heróis e de figuras míticas. Os (super) heróis estão presentes em livros, gibis e filmes. Em suas múltiplas versões, revelam-se ao mundo por feitos fantásticos, realizando atos de coragem, salvando vidas e arriscando a sua própria por uma causa maior. Há aqueles que marcaram gerações e continuam na ativa, como Batman, Super-Homem e Homem-Aranha. Outros são personagens reais, do esporte e das artes, que se transformaram em ídolos por seus feitos, criando uma legião de fãs entre as crianças e adolescentes, como o piloto Ayrton Senna, tricampeão da Fórmula 1, e o cantor Renato Russo, líder da banda de rock Legião Urbana. O herói é sempre um exemplo a ser seguido.
O que isso tem a ver com o ensino de História no Brasil? Muito. Ele também traz em suas narrativas a presença de heróis e líderes que se destacaram em determinadas situações ou eventos. Por muito tempo, as lições de História do Brasil se notabilizaram pelo relato de datas e feitos de grandes personagens, geralmente homens de Estado ou políticos, responsáveis pela construção e pela defesa da nação em diferentes contextos. No livro Por que estudar História?, voltado para alunos do ensino médio, o historiador Caio César Boschi afirma que esta concepção de história esteve em voga no século XIX, consagrada pelo escritor escocês Thomas Carlyle (1795-1881). Na obra "Os heróis: o culto dos heróis e o heróico na História", escrita em 1841, Carlyle defendia que a história da humanidade era fruto dos grandes homens. Eles seriam os símbolos de todas as lutas e conquistas. Em muitas destas narrativas, a exagerada glorificação dos personagens era envolvida por um discurso ficcional e místico-religioso.
No Brasil, o culto aos heróis nacionais esteve sempre associado à recuperação de um passado glorioso. Um dos princípios básicos deste pensamento era o da ação individual em nome do coletivo, do sacrifício em prol da nação. Basta analisar alguns livros didáticos, desde o começo do século XX, para se identificar o elenco dos heróis no panteão nacional. Eles seriam os grandes protagonistas dos principais eventos formadores de nossa História. É o caso de figuras como Pedro Álvares Cabral, padre Anchieta, Tiradentes e D. Pedro I.
Em seu famoso livro História do Brasil (Curso superior), Rocha Pombo (1857-1933), professor do Colégio Pedro II e da Escola Normal, destacou nos anos 1920 a figura dos bandeirantes paulistas, representados por Raposo Tavares, Domingos Jorge Velho e Anhangüera. As aventuras pelo interior da Colônia são exaltadas por uma narrativa épica e romanceada, na qual os bandeirantes são os grandes responsáveis pelo desenho das fronteiras do Brasil. Além deles, o autor dedicou páginas memoráveis à figura de Tiradentes, o herói eleito pelo discurso republicano: do cenário da Inconfidência Mineira, o alferes foi elevado à condição de líder da revolta e de herói crucificado em nome da futura pátria. Para Rocha Pombo, Tiradentes é um dos personagens principais da nossa História, símbolo da resistência à tirania de Portugal e vítima das mazelas da colonização. Outra figura de destaque no livro é o príncipe D. Pedro, tido como o mentor da independência brasileira. Para o autor, foi ele o protagonista dos eventos que culminaram no 7 de setembro, assumindo um posto elevado na lista de heróis da nação.
Escrevendo nos anos 1940 sua História do Brasil para a primeira série ginasial, livro amplamente adotado até o período militar pós-1964, Joaquim Silva, professor dos colégios Andrews e São Luiz, na cidade de São Paulo, também ajudou a exaltar os heróis nacionais. Embora crítico da colonização portuguesa, acusada de ser responsável pelo atraso do país, o autor não poupava elogios aos jesuítas. Os padres José de Anchieta e Antônio Vieira são celebrados como responsáveis pela manutenção da unidade da Colônia por meio da evangelização: salvavam os índios bárbaros pela catequese e os colonos pela vigilância da moral e dos bons costumes cristãos. Os perigos e privações enfrentados pelos virtuosos jesuítas no sertão em busca do indígena completam o relato épico produzido pelo autor.
Assim como Rocha Pombo, Joaquim Silva elogia o herói Tiradentes, praticamente travestido de Jesus Cristo – morto em nome dos ideais de liberdade, sem trair seus pares e enfrentando seu fim com resignação e coragem. Para o autor, o sangue do herói sacrificado fez a árvore da liberdade crescer no solo brasileiro e lançou as sementes da independência, alimentando ainda mais os sentimentos de nacionalidade e de amor à terra no espírito dos colonos.
Terminada a ditadura, seria chegada a hora de pôr os pés no chão? Nem tanto. A democratização traz de volta a liberdade para repensar o país, mas quem disse que conseguimos viver sem heróis? Em História & Vida (1980), os irmãos e professores Nelson e Claudino Piletti bem que tentam defender um outro tipo de heroísmo. Para eles, se a maior virtude nacional é coletiva, nosso herói só pode ser... o povo! Mas não um povo genérico. Como vítimas dos séculos de desigualdade que marcaram nossa História, índios e negros merecem o mais alto posto, por terem lutado contra o domínio português. Em contrapartida, jesuítas e bandeirantes, antes engrandecidos, são agora criticados por terem colaborado com a dominação dos indígenas.
Os irmãos Piletti estavam ligados ao pensamento de autores de tradição marxista, como o intelectual uruguaio Eduardo Galeano (1940-) e o jornalista norte-americano Leo Huberman (1903-1968). Pensamento que faz o Brasil ganhar também novos heróis individuais. É o caso de Zumbi. Ignorado ou tratado de forma marginal por outros autores, o líder do conflito no Quilombo dos Palmares se transforma em símbolo de uma história popular de resistência. Narrar a história de Zumbi era denunciar o mito da “democracia racial” e a idéia de uma escravidão amena e benigna. A descrição da luta e da morte de Zumbi aproximava-se muito daquela feita sobre Tiradentes nas páginas de História & Vida.
O próprio Tiradentes não perdeu seu lugar no Olimpo. Mas nos anos 1980 ele mudou de cara. Afinal, não fazia mais sentido lembrar a imagem do militar instituída pelos livros didáticos produzidos pós-golpe de 1964. O alferes se torna um herói popular, símbolo da abertura e da redemocratização, traduzindo a esperança de um novo tempo para o povo. Em História & Vida, o lado heróico de Tiradentes é contraposto à figura patética do rei D. João VI, retratado como um homem medroso e despreparado, e a um oportunista D. Pedro I, visto como herdeiro de uma Coroa responsável pela exploração do Brasil – ou seja: a tradição de crítica ao passado colonial leva os Piletti a diminuir a imagem do agente do grito de independência do Brasil.
De uns tempos para cá, os heróis brasileiros estão todos em xeque. Não os personagens em si, mas a forma como são rememorados. As produções didáticas recentes, inspiradas nas propostas dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN/MEC, 1997) e na literatura acadêmica contemporânea, procuram trabalhar com os alunos a idéia de como os heróis e mitos são historicamente construídos. Bom exemplo é a coleção História Temática (2007), volume “Diversidade Cultural e Conflitos”, escrito pelos professores Andrea Montellato, Conceição Cabrini e Roberto Catelli Junior. Os autores enfatizam as relações entre a criação de mitos e a memória coletiva, destacando os usos políticos e ideológicos das figuras heróicas nos diferentes contextos históricos. O caso de Tiradentes, por exemplo, ganha uma nova roupagem. O livro analisa sua imagem a partir do contexto da Inconfidência Mineira, mas também como uma invenção do panteão nacional da nascente República. Sobre Zumbi dos Palmares, os professores tiveram a preocupação de demonstrar como sua história foi apropriada como símbolo da luta contra o racismo pelo movimento negro. Embora relativizando o papel desses personagens, os autores da coleção História Temática reconhecem a força das figuras heróicas para o país, presentes em nosso cotidiano ao nomear ruas, praças, bairros e monumentos. Parece ser impossível narrar a História do Brasil sem eles.
Mesmo sabendo que o Brasil não existiria sem seus heróis, a reflexão sobre a forma como são construídos os mitos e símbolos nacionais nos ajuda a repensar o papel dos indivíduos na História. As tramas históricas não podem ser entendidas como dependentes do destino de poucos, de façanhas ou vontades individuais, em que quase não se destaca a dimensão coletiva das lutas por mudanças ou a resistência exercida por grupos em defesa de seus direitos.
Os sujeitos históricos, como sugerem os próprios PCN, têm suas particularidades e sua força. São líderes de lutas para transformações ou permanências na sua realidade, atuando em grupo ou de forma isolada: trabalhadores, mulheres, escravos, camponeses, religiosos e políticos, entre outros. Esse tipo de compreensão ajuda a diminuir a névoa da mística e da celebração em torno dos heróis nacionais. Em seu lugar, entra em cena o exercício reflexivo e crítico sobre a ação social de indivíduos, grupos ou classes sociais.
RENILSON ROSA RIBEIRO É PROFESSOR DO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO (UFMT) E ORGANIZADOR DO LIVRO ENSINO DE HISTÓRIA: TRAJETÓRIAS EM MOVIMENTO (EDITORA DA UNEMAT, 2007).
Heróis de carne e osso
Lidar com personagens históricos em sala de aula não é fácil, especialmente diante da longa tradição escolar de celebração da figura do herói. Geralmente eles são interpretados como símbolos da nação. Deixa-se de lado sua dimensão humana, intelectual, política e ideológica. Como dica de trabalho em sala de aula, sugerimos ao professor que trabalhe com os alunos uma pesquisa no próprio livro didático, identificando os personagens históricos eleitos pelos seus autores como referência para a construção da nação brasileira.
Seria interessante, por exemplo, usar a edição nº 19 desta Revista de História da Biblioteca Nacional, que traz um dossiê sobre Tiradentes, para um exercício de comparação. O trabalho seria o seguinte: analisar o tratamento que os artigos da revista dão a Tiradentes e à Inconfidência Mineira em contraposição ao que o livro didático apresenta para lidar com o mesmo assunto.
Outra boa estratégia é montar uma tabela com nomes, contextos, feitos e importância. Em seguida, eleger uma das figuras da lista e fazer junto com os alunos uma pesquisa na biblioteca e na Internet sobre sua história, procurando entender por que tal personagem foi eleito um “herói nacional”. A idéia é identificar as implicações políticas e ideológicas que se dão quando se escolhe um determinado personagem como símbolo da nação. No mercado editorial já existe um bom número de paradidáticos e revistas especializadas em História que procuram compreender melhor nossos personagens mais famosos.
Saiba Mais - Livros:
ABREU, Martha; SOIHET, Rachel & GONTIJO, Rebeca (orgs.). Cultura política e leituras do passado: historiografia e ensino de história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
BOSCHI, Caio César. Por que estudar História? São Paulo: Ática, 2007.
MICELI, Paulo Celso. O mito do herói nacional. 5ª ed. São Paulo: Contexto, 1994.
SIMAN, Lana Mara de C. & FONSECA, Thais Nivia de Lima e (orgs.). Inaugurando a História e construindo a nação: discursos e imagens no ensino de História. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
Heróis de ocasião
Renilson Rosa Ribeiro