Heroísmo bem-vindo

Álvaro Pereira do Nascimento

  • O primeiro ato de bravura de Marcílio Dias se deu na tomada de Paissandú, na guerra contra Aguirre, representada na charge publicada na Semana Illustrada em 29 de janeiro de 1865. (Fundação Biblioteca Nacional)Como surgem os heróis de guerra? Em geral, na condição de chefes militares, empunhando a espada do oficialato, liderando um grupo de homens no front de batalha. Gente como o almirante Tamandaré (1807-1897), patrono da Marinha de Guerra do Brasil.

    Mas um marinheiro teve a ousadia de mudar essa história. Ao contrário desse famoso oficial, Marcílio Dias teve uma vida sem grandes glórias ou condecorações. Era um marinheiro de 1ª classe como tantos outros, e foi recrutado à força para servir. Não era branco, e durante muito tempo mal se sabia sua origem familiar, nem onde ou quando nascera. Ainda assim, ele se tornou um símbolo de bravura, reverenciado até hoje como exemplo de dedicação à pátria.

    Foi a morte que o eternizou. Era manhã de domingo, dia 11 de junho de 1865, quando a esquadra paraguaia surpreendeu os brasileiros fundeados na curva do Rio Paraná, em frente à foz do Riachuelo. Durante o combate, o navio brasileiro Jequitinhonha encalhou, dificultando a formação em linha das embarcações. A canhoneira Parnahyba, que estava atrás, também se isolou das outras e foi abordada pelos navios paraguaios Taquary e Salto. Iniciou-se, então, uma sangrenta batalha homem a homem no convés do navio brasileiro.

    A situação ficou crítica com a chegada de outra embarcação inimiga, o Marquês de Olinda, que fora apresado e estava em mãos paraguaias havia alguns meses. Na primeira parte do conflito, foram cerca de doze horas ininterruptas de combate. Só então os navios brasileiros recuaram para reunir outras embarcações (a fragata Amazonas, o vapor Belmonte e a canhoneira Mearim) e voltar ao palco da guerra. O reforço surtiu o efeito esperado, e as tropas paraguaias foram finalmente vencidas.

    Muitos tremeram no calor da luta. O livro de bordo da Parnahyba registra casos de marinheiros que se jogaram no rio abandonando o confronto, que provocou 216 baixas brasileiras, entre mortos e feridos. No relatório oficial sobre o episódio, começaram a surgir aqueles que seriam lembrados como heróis da Batalha do Riachuelo, crucial para a Guerra do Paraguai (1864-1870). Escrito pelo comandante da Parnahyba, o capitão-tenente Aurélio Garcindo Fernandes de Sá (1829-1873), destaca vários oficiais, sargentos, soldados e marinheiros. Mas o espaço maior ele reserva para Marcílio Dias, que morreu enfrentando os inimigos na ponta da espada:

    O imperial marinheiro de 1ª classe Marsilio (sic) Dias, que tanto se distinguira nos ataques de Paissandu, imortalizou-se ainda nesse dia. Chefe do rodízio raiado, abandonou-o somente quando fomos abordados para sustentar braço a braço a luta do sabre com quatro paraguaios. Conseguiu matar dois, mas teve de sucumbir aos golpes dos outros dois. Seu corpo, crivado de horríveis cutiladas, foi por nós piedosamente recolhido, e só exalou o último suspiro ontem pelas 2 horas da tarde, havendo-se-lhe prestado os socorros de que se tornara a praça mais distinta da Parnahyba. Hoje, pelas 10 horas da manhã, foi sepultado com rigorosa formalidade no rio Paraná, por não termos embarcação própria para conduzir seu cadáver à terra.

    Como menciona o comandante, aquele não havia sido o primeiro ato de bravura do marinheiro. Destacara-se também na tomada de Paissandu, em janeiro do mesmo ano. A ofensiva depôs o presidente uruguaio, general Atanasio Cruz Aguirre (1801-1875), e levou o general Venâncio Flores (1808-1868) ao poder – episódio que fez o Uruguai entrar na guerra, formando a Tríplice Aliança ao lado de Brasil e Argentina. Conquistada a cidade, Marcílio Dias subiu até o alto de uma igreja e gritou “Vitória!”, fazendo tremular a bandeira brasileira.

    Mas foram as notícias da Batalha do Riachuelo que o tornaram conhecido na Corte. Os jornais do Rio de Janeiro reproduziram as palavras do relatório sobre a morte heróica do marujo e provocaram em seus leitores um sentimento espontâneo de júbilo pela vitória e reconhecimento aos que perderam a vida. Especialmente o personificado Marcílio Dias, para quem foram publicados poemas, cartas e relatos elogiosos.

    Para reconstituir a trajetória do herói, porém, seus biógrafos tiveram muito trabalho. Sabia-se que era solteiro, de cor “pardo-escuro”, olhos pretos, cabelos castanhos e baixa estatura – media “5 pés e 2 polegadas”, ou 1,57m. Mas dados essenciais de sua história, como o local e a data de nascimento (1838 ou 1844) permaneceram durante muito tempo sem resposta. O município de Mangaratiba, no estado do Rio de Janeiro, chegou a reivindicar para si a naturalidade do herói, mas o pesquisador Edgar Fontoura localizou documentos atestando que ele nascera em Rio Grande (RS). Também descobriu o nome de sua mãe – Maria Pulcena Dias – e dos avós.

    Sua entrada na Marinha se deu por força de uma ordem do juiz municipal de Rio Grande para o capitão do porto, autoridade marítima local, em 30 de julho de 1855. No dia seguinte, era transportado para o quartel-general da Marinha, na Ilha de Villegaignon, na Corte, onde fez juramento à bandeira nacional em 6 de agosto. Em apenas sete dias sua vida virara de ponta-cabeça: de rapaz simples em Rio Grande a grumete na capital do Império.

    Depois de receber treinamento durante quatro meses, embarcou em seu primeiro navio, a fragata Constituição, em janeiro de 1856. Em lugar da amargura, sentimento compreensível se levada em conta sua entrada prematura e à força na Marinha, a carreira militar de Marcílio Dias destacou-se pelo bom comportamento. Em quase uma década de serviços (na qual se especializou em artilharia), não haveria qualquer registro de aplicação de castigos ao marinheiro, algo incomum na época. Seu colega Antonio José dos Santos, por exemplo, recebeu 200 chibatadas por insubordinação, deserção e resistência ao castigo. 

    A iniciativa de retratar a face de Marcílio Dias surgiu quase meio século depois de sua morte. Embora o registro fotográfico do daguerreótipo já existisse em sua época, a técnica só estava ao alcance de uma minoria, da qual o marinheiro não fazia parte. Em 1902, o capitão-tenente Santos Porto, diretor da Revista Marítima Brasileira, convocou oficiais, marinheiros e soldados contemporâneos de Marcílio Dias para que rebuscassem “na memória os traços físicos, morais e intelectuais” que ajudassem o artista Décio Vilares (1851-1931) na empreitada de criar o retrato do herói.

    O resultado foi oficialmente aceito pela Marinha, que fez questão de inaugurar com toda a pompa o retrato de Marcílio Dias. Coube ao almirante Joaquim Cordovil Maurity descortiná-lo a bordo do cruzador Barroso, e ao guarda-marinha Brito e Cunha emendar um discurso em que aconselhava os colegas a mirarem o retrato com fervor quase religioso ao longo dos anos futuros de suas carreiras na Armada. Marcílio Dias os inspiraria nos momentos difíceis:

    E quando, no mais recesso canto de vosso coração, alguma dor vos aflija, pedi-lhe lágrimas que, mitigando-a, vos lave da mente qualquer sinistro pensamento de menos nobre vingança; se o ânimo vos desfalecer em algum transe amargo, pedi-lhe coragem para afrontá-lo com calma; se um sofrimento físico pungente vos torturar  a existência, pedi-lhe, para as crises cruciantes, o bálsamo divino da resignação.

    Aquela cerimônia e o teor do discurso de Brito e Cunha tinham um sentido mais amplo do que a simples reverência ao herói do Riachuelo. Marcílio Dias era a personificação de tudo o que os oficiais esperavam de seus subordinados. E raramente obtinham. A vida naval era uma experiência das mais hostis. Muitos homens não se acostumavam ou perdiam o gosto por ela, mas era proibido abandonar a carreira antes de nove ou 15 anos. Multiplicavam-se os conflitos provocados por embriaguês, jogo, roubo, “libidinagem” (relações homossexuais), desídia (negligência no desempenho de funções) e desordem em terra (confusões nas ruas durante as licenças).

    Dependendo da gravidade do caso, o oficial lançava mão de um bom naipe de punições, que iam da simples palmatória ao castigo de chibata, passando por golilha (argola presa ao pescoço) e prisão a ferros na solitária, entre outros recursos aceitos para disciplinar os comandados. Os castigos perdurariam até a chamada Revolta da Chibata, que em 1910 mobilizou mais de dois mil marinheiros sob a liderança de João Cândido Felisberto, que ficaria conhecido como “o almirante negro”.

    Para o público externo à Marinha – intelectuais, artistas, políticos, integrantes de movimentos sociais –, João Cândido é o herói negro número um da corporação. Mas nas paredes dos quartéis, alojamentos e cobertas dos navios da Armada, o que permanece é o exemplo pedagógico: o retrato de Marcílio Dias, herói negro da Batalha do Riachuelo.

    Álvaro Pereira do Nascimento é professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e autor dos livros Cidadania, cor e disciplina na Revolta dos Marinheiros de 1910 (Rio de Janeiro: Mauad, 2008) e A ressaca da marujada: recrutamento e disciplina na Armada Imperial (Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001).

    Saiba Mais - Bibliografia:

    CARVALHO, José Murilo de, e NEVES, Lúcia (orgs.). Repensando o Brasil do Oitocentos (no prelo).

    COSTA, Dídio. Marcílio Dias: imperial marinheiro. Rio de Janeiro: Mundomar, 1943.

    DORATIOTO, Francisco. Maldita guerra. Nova história da Guerra do Paraguai. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

    FONTOURA, Edgar. Marcílio Dias. Rio de Janeiro: Calvino Filho, 1935.

    Saiba Mais - Site:

    http://www.mar.mil.br/5dn/vultos/marcilio.htm

    Entre dois ditadores

    As duas batalhas de que Marcílio Dias participou foram determinantes para a Guerra do Paraguai. A tomada de Paissandu tinha como objetivo derrubar o ditador uruguaio Atanasio Cruz Aguirre (1804-1875).  Eleito em 1864, Aguirre chefiava um governo de nacionalismo extremado, o que provocou seguidas agressões e invasões de terras dos cerca de 40 mil brasileiros que viviam em território uruguaio. Apoiadas por forças leais ao general uruguaio Venâncio Flores, opositor de Aguirre, as tropas brasileiras conquistaram a cidade de Paissandu e depois rumaram para Montevidéu, obrigando Aguirre a se refugiar no Paraguai, onde pediu apoio a outro ditador: Francisco Solano Lopez (1827-1870). A invasão era o pretexto que o paraguaio esperava para lançar seu exército contra o Brasil. A Guerra do Paraguai se anunciava. Logo nos primeiros lances do conflito, Marcílio Dias teve seu segundo – e derradeiro – momento de glória: a batalha naval do Rio Riachuelo. Ao vencê-la, em 11 de junho de 1865, a Marinha brasileira e seus aliados conseguiram controlar os rios da bacia platina e evitar o avanço paraguaio. Marcílio Dias tombou no campo, ou melhor, no convés de batalha, mas ajudou a definir o rumo da guerra: desfalcados em suas forças navais, até o fim do conflito os paraguaios agiriam sempre na defensiva. (Equipe da RHBN)