Otacílio Neto, âncora da Rádio História, interrompe o programa para transmitir uma informação urgente vinda da Europa no dia 13 de agosto de 1961. “Recebemos uma notícia diretamente da Alemanha, sobre a construção de uma cerca de aproximadamente 66,5 quilômetros, que divide Berlim em dois blocos: um ocidental, que tem economia capitalista, e outro oriental, sob influência socialista. A cerca foi construída durante esta madrugada por soldados da área soviética”, relata o apresentador.
Ainda no calor dos acontecimentos, a correspondente internacional Belisa entrevista um morador de Berlim. Depois de sua resposta em alemão, ela traduz: a impressão é de que o muro é uma tentativa de evitar a fuga em massa da população para o lado ocidental da cidade. “É uma crueldade, pois separa famílias e amigos”, desabafa Rafael, o berlinense.
O programa convida ainda uma especialista para analisar a questão. “Estamos vivenciando um fato que será muito importante não somente na Alemanha, mas em todo o mundo”, afirma Chiara. A comentarista revela-se profética quanto às consequências do acirramento da Guerra Fria para o Brasil: “São apenas hipóteses, mas penso que estamos próximos de um novo golpe militar”.
Responsáveis por esse furo de reportagem, Otacílio, Belisa, Chiara e até o “alemão” Rafael são alunos do 8º ano do ensino fundamental, e a Rádio História é fruto de um projeto desenvolvido em sua escola, a Fundação Torino, em Belo Horizonte. Em viagens no tempo e no espaço, a rádio acompanha “ao vivo” os acontecimentos que marcaram a História do Brasil e do mundo: a queda da monarquia brasileira (1889), as batalhas no arraial de Canudos (antes mesmo de o correspondente Euclides da Cunha aparecer por lá), a Revolta da Vacina (1904), no Rio de Janeiro (embora a assessoria de Oswaldo Cruz tenha se recusado a atender a reportagem), o crash da Bolsa de Nova York (1929), o assassinato do presidente da Paraíba, João Pessoa (1930). Onde (e quando) quer que haja notícia importante, lá está a equipe de transmissão.
A ideia de uma rádio que fosse de fato “testemunha ocular da História” – como se intitulava o programa “Repórter Esso” (1941-1968) – nasceu da constatação da intimidade que os estudantes têm com diversas ferramentas tecnológicas. A proposta de construção colaborativa de uma rádio virtual abriu a possibilidade de reunir o uso de softwares de gravação e edição de áudio e a publicação das notícias por meio de um blog na Internet. Acima de tudo, manteve-se a principal ferramenta de qualquer trabalho prático com essa faixa etária: sua criatividade.
O primeiro boletim da rádio foi produzido com três alunos, em segredo. Reunida no laboratório de informática da escola, a turma foi apresentada ao resultado e teve claramente a ideia de como uma rádio virtual pode funcionar. A segunda etapa foi o trabalho feito em sala de aula para a divisão de grupos e pautas de cada um. Não faltavam períodos históricos recheados de contradições e revoltas para inspirar a cobertura dos boletins da rádio. Eleitos os temas dos primeiros programas, passou-se para as outras etapas do trabalho: estudo em classe, pesquisa complementar por parte dos alunos, produção dos textos, correção pelo professor e, finalmente, a gravação, a edição e a postagem do tema em um site criado para isso.
O desafio na fase inicial do projeto foi tentar fazer com que os alunos compreendessem a surpresa e o envolvimento de quem vivenciou determinados episódios marcantes, transmitindo a intensidade daquele momento e os diferentes pontos de vista da sociedade da época. Para isso era preciso “libertar” alguns estudantes das amarras dos livros didáticos. Daí o valor da pesquisa complementar e a importância de reescrever os primeiros textos apresentados por alguns grupos.
A criação de uma rádio virtual só é possível graças à tecnologia dos podcasts. O termo é uma junção da palavra iPod (tocador de MP3 predileto dos jovens) e broadcasting (transmissão de dados via rádio ou TV). Os podcasts podem ser acessados por meio da visita ao site onde estão abrigados ou pela utilização da tecnologia de RSS, pela qual o usuário recebe novos arquivos sempre que o site é atualizado.
Para botar a rádio “no ar”, são necessários poucos recursos: um computador com ferramentas de multimídia, software para edição de arquivos de áudio e acesso à Internet. A Rádio História funciona em um blog – www.radiohistoriaft.blogspot.com –, onde qualquer um pode ouvir os boletins.
Para a gravação e a edição dos arquivos de áudio, é utilizado um software de licença livre, o Audacity. As produções são feitas pelos alunos no laboratório de informática da escola, sem a presença do professor. Uma vez gravados os boletins, a etapa final é de responsabilidade do professor, já que a edição e a postagem devem caber ao profissional de educação.
Além das vozes de apresentadores, repórteres e entrevistados, os boletins são incrementados com efeitos sonoros relacionados ao evento relatado. Na cobertura da terceira expedição enviada a Canudos, por exemplo, sons de artilharia são ouvidos ao fundo. Já a repórter que cobria na rua a Revolta da Vacina foi interrompida pelo barulho da baderna que tomou conta da capital federal. Chega-se a ouvir um bonde tombando. A sonoplastia transmite a impressão de que o repórter realmente fala do local onde ocorreram os fatos, enriquecendo o resultado final. O único cuidado que se deve ter é o de utilizar sons ou canções com licença gratuita, para evitar qualquer problema legal devido a possíveis direitos autorais. Existem sites na Internet que fornecem conteúdo gratuito, mas o ideal é poder contar com o auxílio dos professores de música, caso a escola tenha algum.
A etapa mais difícil ligada ao processo tecnológico foi abrigar o arquivo de áudio em uma página da Internet. Nem todos os blogs permitem publicar diretamente esse tipo de arquivo. A solução é inserir o podcast em um site feito para isso – como o www.goear.com, que, após breve cadastro, incorpora os arquivos em MP3 e fornece um código a ser inserido no blog. O resultado é ótimo: o arquivo aparece com o visual de um tocador de áudio – para ouvir, basta apertar o play.
A rádio é um prato cheio para o exercício da interdisciplinaridade. Diversos conteúdos se prestam a boletins históricos. Eles podem divulgar o lançamento de clássicos da literatura brasileira, por exemplo, e já se produziu um “informe cultural” acompanhando as novidades da Semana de Arte Moderna de 1922. Boletins históricos são enriquecidos com informações geopolíticas e línguas estrangeiras são trabalhadas em contextos específicos. Ao falar da construção e da queda do Muro de Berlim, o uso do alemão foi mais que bem-vindo. Muito úteis serão o italiano e o inglês quando o tema for a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial e o conflito como um todo.
No blog, uma enquete determinou a estreia do futebol na programação da Rádio História. Os alunos votaram no clássico do futebol mineiro que mais desejavam cobrir: um Cruzeiro x Atlético de 1967, que terminou em 3 a 3. Além do jogo em si, o boletim trará o serviço completo, com comentários sobre a situação política do Brasil na época, sob o governo militar.
No fim das contas, a criação dos alunos transforma-se, ela própria, em material didático. É possível utilizar os boletins produzidos em um ano letivo para abrir as aulas sobre o mesmo tema nos anos seguintes.
Talvez assim a frase “Detesto História” ou sua correlata mais suave, “Professor, não gosto de História”, possam sair de circulação em nossas salas de aula. Com algumas doses de tecnologia, interatividade e criatividade, o retorno dos alunos é bem diferente: “Muito bacana, professor. Um jeito novo de estudar, aprofundar a matéria e rir em casa”, comentou um deles no blog. Mais um ouvinte impactado depois de um boletim extraordinário da Rádio História.
Marcus Vinícius Leite é professor da Fundação Torino – Escola Internacional em Belo Horizonte (MG).
Saiba Mais - Bibliografia
ALMEIDA, Fernando José de, e JÚNIOR, Fernando Moraes Fonseca. Aprendendo com Projetos. Coleção Informática para a Mudança na Educação, USP e Estação Palavra.
Disponível no site http://www.escola2000.net/eduardo/paginas/textproinfo.htm
ALMEIDA, Fernando José de. Educação e Informática – Os computadores na escola.
São Paulo: Cortez, 2005.
KLOCKNER, Luciano. O Repórter Esso – A Síntese Radiofônica Mundial que fez História. Porto Alegre: EdiPUCRS/Age, 2008.
VALENTE, José Armando (org.). Computador na sociedade do conhecimento. Campinas: Unicamp/Nied, 1999.
Saiba Mais - Internet
Rádio História
www.radiohistoriaft.blogspot.com
Dicas para montagem de podcasts
http://info.abril.com.br/aberto/especiais/col2005-podcasts.pdf
Guia para montagem de podcasts
http://www.acessa.com/informatica/arquivo/tecnologias/2005/08/12-podcast/
Montagem de blog na Internet
www.blogger.com
Site que abriga podcasts
www.goear.com
Sites de efeitos sonoros
www.soundsnap.com
www.pacdv.com/sounds
História ao vivo
Marcus Vinícius Leite