História in loco

Oswaldo Munteal Filho e Fabio Guimenes

  • Se é verdade que a história de um país é aquela de caráter oficial que procura externar uma identidade comum, também é verdade que a história como disciplina ampliou horizontes e incorporou ao seu discurso a voz dos vencidos. Nessa interseção, a Câmara de Deputados do país ou a Assembléia Legislativa de um estado da federação são, por excelência, locais de encontro entre o povo e a elite política, que, em última instância, determina os rumos da sociedade. Conhecer um desses prédios é conhecer um pouco da história da participação
    política dessa sociedade.

    O Palácio Tiradentes é o mais importante referencial da tradição parlamentar brasileira.   Inaugurado em 6 de maio de 1926, o prédio é um imponente marco do ecletismo arquitetônico da belle époque carioca e desempenha hoje o papel de sede da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). Junto com o Palácio das Laranjeiras (sede do executivo estadual), o Tiradentes é palco de um bem-sucedido projeto, capitaneado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), que integra pesquisa e atividades de ensino, relacionando o trabalho prático do aluno de graduação em história ao olhar que a sociedade tem sobre a universidade. O professor de história em formação, durante seu estágio obrigatório de prática de ensino, atua como monitor das visitas guiadas aos dois palácios, e tem assim a oportunidade de colocar em prática os conhecimentos que vai adquirindo durante sua vida universitária.

    A construção da tradição parlamentar brasileira está ligada à abertura da Assembléia Geral Legislativa do Império, em 1826, quando o edifício colonial da Cadeia Velha foi escolhido para ser a sede da Câmara dos Deputados. Dessa data até a Proclamação da República a antiga cadeia serviu de palco para o debate parlamentar do período monárquico e passou, após a promulgação da primeira Constituição republicana, em fevereiro de 1891, a abrigar a Câmara do novo regime. Pretendendo ocupar os espaços do Império, entre junho e novembro de 1891, a Câmara funcionou no antigo Paço da Quinta da Boa Vista (palácio de São Cristóvão), que serviu de sede ao Congresso Constituinte da República (1890-1) e onde tomou posse o primeiro presidente da República, marechal Deodoro da Fonseca.

  • Em 1914, a Câmara é novamente transferida, desta vez para o Palácio Monroe, onde permaneceu até 1922. Os preparativos para a grande exposição internacional do centenário da Independência levaram-na a ocupar, de 1922 a 1926, o edifício da Biblioteca Nacional. Em 1921 foi aprovado o projeto dos arquitetos Archimedes Memória e Francisco Couchet. Em 1922, foi iniciada a construção da nova sede da Câmara dos Deputados.

    A Cadeia Velha foi então demolida para que em seu lugar fosse erguido o suntuoso Palácio Tiradentes, cenário de alguns dos dramáticos acontecimentos que marcaram o fim da República Velha. O palácio foi sede da Assembléia Nacional Constituinte de 1934 e a seguir, novamente, da Câmara dos Deputados. Com o parlamento fechado em 1937 pelo regime autoritário do Estado Novo, em suas instalações passaria a funcionar o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP).

    O fim da ditadura Vargas marcou também o início de uma fase áurea para o palácio. A partir da instalação da Constituinte de 1946, que consolidou a redemocratização, foi no plenário da Câmara dos Deputados que foram vividos alguns dos mais importantes momentos de nossa história política contemporânea. Após a transferência da capital para Brasília, o Tiradentes ainda abrigou a Assembléia Legislativa da Guanabara até 1963, quando foi desprovido de suas funções legislativas, mas sem perder o status de verdadeiro símbolo da democracia brasileira. Com a criação do novo estado do Rio de Janeiro em 1975, o Palácio Tiradentes abriu suas portas para a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, reafirmando assim sua tradição parlamentar.

  • A exposição Palácio Tiradentes: lugar de memória do parlamento brasileiro sintetiza essa trajetória, oferecendo aos visitantes uma visão abrangente da importância desse espaço para a consolidação da democracia no Brasil. A mostra permanente se constitui num espaço privilegiado para os estudantes que desejam aprofundar seus conhecimentos e ganhar experiência na área docente. Recebemos escolas e grupos organizados de todo o estado do Rio de Janeiro, e nossos estagiários, além da visita guiada pelo Palácio, procuram discutir com o público os conceitos de cidadania, democracia e a importância do Poder Legislativo, realizando in loco uma verdadeira aula sobre a história política do Brasil. Reuniões mensais com os estagiários garantem a troca de informações e a análise dos discursos, numa busca permanente pelo aprimoramento da prática profissional.

    O estágio consiste nas atividades de monitoria de uma exposição, que é datada do ano de 1999, e foi organizada pelo Núcleo de Memória Política Carioca e Fluminense, criado pela Alerj em parceria com o CPDOC (Fundação Getúlio Vargas - FGV). Desde 2001, a exposição funciona em convênio com a Uerj, e possibilita o estágio de vinte alunos do curso de história, renovados parcialmente a cada ano.

    Diversas instituições têm criado novos espaços educativos como lugares alternativos de aprendizagem. Esses novos espaços permitem a apresentação interdisciplinar dos temas e a interação com o cotidiano dos estudantes, além de promover o conhecimento específico adquirido com a visita. Dessa forma, o programa do Palácio Tiradentes promove a alfabetização política do cidadão, conscientizando-o, por meio de discussões apresentadas durante a visita, abordando temas de relevância social.

  • As sociedades e, em especial, o poder público têm preocupação em criar lugares de memória, espaços que podem ser concebidos como um ponto em torno do qual se cristaliza uma parte da memória nacional. Se reconhecemos que nossa memória é social e historicamente determinada, percebemos que ela é ininterruptamente reinventada e, portanto, nossa história precisa ser continuamente reescrita.

    Segundo o historiador francês Pierre Nora, a memória está em permanente evolução, suscetível à dinâmica da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas sucessivas deformações, vulnerável a manipulações. Em contrapartida, a história é registro, crítica, reflexão. Enquanto a memória é um fenômeno sempre atual, a história é uma representação do passado. Os lugares de memória nascem e vivem do reconhecimento de que não há memória espontânea, e que, por isso, é preciso criar e organizar celebrações, uma vez que esses eventos não são naturais. Dessa maneira, é errado reduzir esse lugar da memória a meros passeios nostálgicos entre monumentos e vestígios materiais do passado. É preciso ainda entender a memória coletiva como um poderoso instrumento que deve ser trabalhado com o objetivo de construir uma identidade libertadora.

    A inclusão dos espaços educativos não-formais na prática pedagógica dos futuros docentes pode contribuir significativamente para esse objetivo central, pois identifica e explora os lugares de memória da sociedade, além de estimular a construção da identidade pelo aluno. A escola deve incentivar a influência desses espaços educativos alternativos, através das visitas pedagógicas e das ações de parcerias.

  • Refletir sobre a história da representação política no país é uma forma de olharmos nossa própria história. A intenção da Uerj, nesse projeto, é desenvolver uma reflexão que expresse a diversidade nacional e seja multidisciplinar; que situe o parlamento em um país marcado pela heterogeneidade − regional e étnica, social e política −, e que esteja aberta à universidade, aos partidos políticos, às organizações, entidades e movimentos da sociedade civil. O estagiário da Uerj está preparado para explicar ao público a história política do Brasil, refletindo com o visitante sobre conceitos e noções políticas, como a importância das leis, constituição, cidadania e participação política. Simultaneamente, ele se abastece da prática que a atividade da oficina de história e cidadania possibilita como recurso à sala de aula. E torna-se um estudante mais ativo e disposto a articular a teoria à prática.

    A prática de ensino é, na essência, uma das mais contundentes políticas de graduação que se pode vislumbrar. Nesse ponto, algumas medidas recentes do governo federal a esse respeito têm alcançado uma repercussão importante no meio acadêmico. A proposta de antecipação dos cursos de prática de ensino para os primeiros semestres da vida do estudante é de fundamental importância para a consolidação do ofício do professor, provocando assim o adiamento da “vocação”.  O que se pretende é aplicar o conhecimento à vida cotidiana para transformá-lo em obras, como propõe o filósofo alemão Johann Gottlieb Fichte em seu trabalho Por uma universidade orgânica. Não se trata simplesmente de reproduzir o que estudamos, mas de extrair daí algo diferente e transformador.

    Oswaldo Munteal Filho é professor de história moderna e contemporânea do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e consultor do Projeto Palácio Tiradentes: lugar de memória do parlamento brasileiro.
    Fabio Guimenes é historiador, pesquisador do Laboratório de Pesquisa e Práticas de Ensino do IFCH/Uerj e coordenador do Projeto Palácio Tiradentes: lugar de memória do parlamento brasileiro.