- Anos atrás, ao concluir a graduação, um pensamento me inquietava: como se traduziria minha função social enquanto historiador e para além de educador, acompanhando as discussões em torno das exigências contemporâneas de nosso ofício? Decidi viver no interior e dedicar-me à pesquisa e à educação em Pacoti, Ceará, na serra de Baturité, zona de mata atlântica, uma ilha verde e de clima ameno em pleno sertão.Associando o ensino e a pesquisa do passado do lugar, passei a alimentar a então frágil discussão histórica do presente. Fiz isso promovendo a educação patrimonial no município, unidade territorial concreta onde as coisas acontecem e surgem os problemas. Idealizei e presidi uma associação cultural com vias de integrar os mais diversos segmentos da sociedade local. E foi por esse caminho que se elaborou um projeto de lei que, aprovado, veio a criar o Arquivo Público Municipal, do qual fui diretor. Era o primeiro do interior do estado com regimento e dotação orçamentária própria.Tal conquista coletiva envolveu outras instituições para a formação do sistema de acervos públicos e privados de interesse público: paróquia, cartório, coleções familiares etc. Muitos estavam sob o pó do descaso ou do esquecimento, e hoje servem à demanda de pesquisa administrativa, acadêmica e escolar. Nessa jornada plural, realizando exposições de documentos, palestras e minicursos, publiquei, por fim, o primeiro livro a narrar a história da cidade.Foi também desta forma que, na trama da micro-história, descobri e recuperei velhas fotografias da cidade vizinha, Guaramiranga, conhecida por “Petrópolis cearense” – recebeu até a visita do conde d’Eu em agosto de 1889, três meses antes da derrocada do Império. Retratando uma feira livre em 1926, as imagens de Guaramiranga distinguem na multidão garotos ainda em calças curtas, com idades entre 7 e 10 anos, empunhando placas de madeira e papelão em que parecem estar fixados textos ilustrados, prováveis anúncios. Somente com o auxílio de um scanner de alta precisão pude descobrir o teor dos tais reclames. Eram chamativas propagandas da Bayer, indústria farmacêutica alemã estabelecida no Brasil desde 1896 e uma pioneira em publicidade no país a partir de 1911.A história das crianças no Brasil ganhava um raro registro dos “garotos-propaganda”, que no campo do trabalho infantil figuravam ao lado de outros pequenos serviços, como a lida de jornaleiros (os newsboys americanos), entregadores, condutores de malas, vendedores de bilhetes, operários fabris. Nas metrópoles, comumente esses menores serviriam às atividades ilícitas, provocando a delinquência juvenil.Analgésicos, símbolos do fremente século, eram apregoados em suas propriedades terapêuticas por vozes infantis na pitoresca vila, cuja tranquilidade quiçá trouxesse no ofício um pouco de diversão para a trupe dos verdadeiros “garotos-propaganda”, que voltariam para casa com ao menos uma moeda no bolso. Trazê-los à luz é, também, minha função de historiador.Levi Jucá é professor da Escola de Ensino Médio Menezes Pimentel e autor de Pacoti: História & Memória (Editora Premius, 2014).
Histórias só existem quando lembradas
Levi Jucá