Em seus primeiros passos como escritor, em 1846, José de Alencar experimentava dois moldes para criar romances. Um risonho e leve, inspirado em narrativas pitorescas. Outro “merencório, cheio de mistérios e pavores”. Este segundo, em geral, começava “nas ruínas de um castelo” ou em alguma “capela gótica frouxamente esclarecida”, como deixou registrado em texto publicado em 1893. Com o tempo ele ficaria conhecido como o autor de O guarani, romance-símbolo do indianismo romântico, mas não surpreende que aos 17 anos tenha exercitado o gênero gótico. Na época, a leitura de histórias de horror era comum tanto entre acadêmicos quanto nos lares brasileiros.
Noite na taverna, obra de Álvares de Azevedo publicada postumamente em 1855, é talvez a expressão máxima do horror literário nacional. As desventuras de cinco personagens boêmios teve grande repercussão entre os estudantes. O livro ajudou a divulgar escritores como o alemão E.T.A. Hoffmann e se transformou em um dos exemplos mais representativos da influência de Lorde Byron na produção brasileira. O ambiente soturno, as orgias e os crimes que caracterizam o texto de Azevedo contribuíram para forjar uma identidade do horror romântico feito por aqui.Enquanto isso...
No tempo da literatura macabra brasileira, outros exemplos mundo afora
Considerado pioneiro em estudos folclóricos no Brasil e futuro presidente das províncias de Goiás, Pará, Mato Grosso e São Paulo, Couto de Magalhães também escreveu contos de horror nos tempos da faculdade de Direito. Em O estudante e os monges, publicado na Revista da Academia de São Paulo em 1859, o Mosteiro de São Bento serve de cenário para terríveis acontecimentos. As primeiras linhas afirmam que demônios vagueiam pelo mundo e tomam a forma dos mais horripilantes animais. Em seguida, o narrador fala de uma orgia sexual protagonizada por um jovem e vários monges, na qual “Satanás toma a forma de homens devotados a Deus”.As noites de excessos e os cenários de tavernas e ruas escuras funcionam como representações românticas ideais. Nas imagens do acadêmico ébrio, do religioso devasso, do frequentador de sombrias tavernas, constrói-se uma imaginação literária em torno de arquétipos perigosos. A circulação dessas obras, restrita ao meio acadêmico, permitia que o horror assumisse, muitas vezes, tonalidades exageradamente violentas. No limite, trata-se de um jogo de cartas marcadas: na literatura de estudante para estudante, a suposta transgressão da ordem moral é travada entre pares.A partir da segunda metade do século XIX, textos de horror passaram a ser impressos em jornais de maior circulação, e a consequência foi uma suavização dos temas, com abordagens que enfatizam o aspecto lúdico do medo ficcional. A ampliação do público consumidor dessas histórias acompanhou essa mudança nos parâmetros da empatia. O gênero se difunde de acordo com o desenvolvimento de um mercado literário interessado nos deleites que as narrativas assustadoras prometem fornecer para leitores mais diversificados. Com a representação de tipos mais comuns, o horror se insere em um cotidiano eventualmente aberto ao fantástico.Em janeiro de 1863, a Revista Popular, renomado periódico do Rio de Janeiro, transforma-se no Jornal das Famílias, reforçando seu comprometimento com os interesses domésticos. Dicas de culinária e moda seriam acompanhadas de “literatura amena”, narrativas singelas dignas de adentrar o toucador das damas da sociedade. Mas muitas histórias publicadas sob a prerrogativa da sutileza não eram tão suaves quanto prometiam ser. Narrativas mais leves e dramas sentimentais dividiam espaço com situações misteriosas e acontecimentos assustadores.Essa ficção que explora os mistérios do universo doméstico tem como um de seus mais recorrentes motes a condenação dos pecados. Em A fantasia da morte, assinado apenas por Hopes em 1864, o narrador apresenta um “romance doloroso e triste”. Nele, o breve interesse sexual de uma mulher pelo amigo de seu marido a faz corroer-se pela culpa e a transforma em um ser estranho que estampava no “semblante o selo fúnebre da sepultura”. Para se redimir, a morta-viva mata o amante imaginário e se suicida. Nas cores fortes do romantismo carregado de sangue, a punição era inevitável para garantir o prazer da leitura.
Outro traço característico do horror ameno é a dissolução do suspense por meio de uma explicação apaziguadora. Se, por um lado, era preciso fazer as leitoras experimentarem as mais intensas sensações, também era de bom tom terminar de maneira gentil. Ninguém foi mais hábil na articulação do medo com a amenidade do que Machado de Assis. O autor de Memórias póstumas de Brás Cubas escreveu vários contos nessa linha para o Jornal das Famílias. Bons exemplos são A vida eterna e Sem olhos, mas nenhum exemplifica melhor a relação entre terror e anedota do que Um esqueleto, publicado em 1875. No conto, Alberto narra as excentricidades do Dr. Belém, seu professor de alemão. Diante uma plateia apreensiva, o narrador conta como o estranho homem convivia com o esqueleto de sua esposa, assassinada por ele quando suspeitou de uma traição. Ao final, Alberto revela que a história não passava de uma brincadeira para abrir o apetite dos convivas. O horror controlado aparece como dispositivo contra o tédio. Na restituição da verossimilhança, consagra-se a ficção como artefato de consumo cotidiano, que faz uso da fantasia para fins de entretenimento.Os contos publicados no Jornal das Famílias giram em torno de uma autoexplicação. As cenas perturbadoras e os mistérios dramatizados encontram solução completa. Resolvem-se para que o sentido de gentileza seja preservado, ainda que parcialmente. As conclusões explicativas garantem certa segurança à tecedura das tramas, resolvidas entre a satisfação precária da elucidação fácil e a frustração contraditória de um perigo que se perde.O horror ameno traz o universo do pecado, do crime, do mistério, do desejo e do desconhecido na forma segura da anedota. Inscreve-se nas práticas cotidianas de leitura, punindo as pequenas perversões. As insinuações de traição e as inusitadas possibilidades do amor se articulam em cenários sinistros, o que assegura a promessa do deleite na fabulação de uma diferença familiar proporcionada pelo sonho e pelo delírio. No fim, o flerte moderado com o insólito mantém o controle sobre a fantasia, o que indica a sedução de uma literatura que fabrica o perigo controlado.Alvo de interesse de jovens acadêmicos como traço da boemia romântica e de damas da boa sociedade como deleite gentil, escrito tanto por autores centrais no universo literário quanto por nomes hoje desconhecidos, o horror do século XIX assume formas variadas, sem configurar um gênero específico. Desprezado pela crítica da época e pouco analisado nas histórias literárias nacionais, mantém-se pela popularidade circulando tanto em periódicos com tiragens pequenas como em jornais de maior vendagem, como a Gazeta de Notícias.Sem a autonomia necessária para definir um horizonte particular de consumo, as narrativas macabras surgem como desdobramento de uma imaginação romântica que, aplicada às peripécias folhetinescas, busca no desenlace ideal da sensação de medo sua sedução e sentido. Elemento secundário no desenvolvimento da ficção brasileira do século XIX, restou ao horror a condição de motivo menor. Nunca chegou a participar dos cânones literários, talvez porque, como lembra José de Alencar, essa literatura fosse “esfumilho que mais tarde devia apagar-se”.Lainister de Oliveira Esteves é organizador de Contos macabros: 13 histórias sinistras da literatura brasileira (Escrita Fina Edições, 2013) e autor da tese Literatura nas sombras: usos do horror na ficção brasileira do sec. XIX (UFRJ, 2014).Saiba mais:CARROL, Noël. A filosofia do horror. Campinas: Papirus, 1999.CAUSO, Roberto de Sousa. Ficção científica, fantasia e horror no Brasil – 1875 a 1950. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.MEYER, Marlyse. Folhetim, uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
Horror à brasileira
Lainister de Oliveira Esteves