Hóspede provisório, cidadão permanente

Luís Reznik, Julianna Carolina Oliveira Costa e Thiago Rodrigues Nascimento

  • O motorista que trafega pela BR-101, entre os municípios de São Gonçalo e Niterói, região metropolitana do Rio de Janeiro, pode avistar a Base da Tropa de Reforço dos Fuzileiros Navais. Talvez não saiba que, por mais de 80 anos, aquele espaço foi sede de uma das mais importantes hospedarias de imigrantes do Brasil.
     
    Inaugurada pelo governo imperial em 1883, a Hospedaria da Ilha das Flores foi a porta de entrada para centenas de milhares de indivíduos que deixaram suas terras natais para começar uma nova vida por aqui. O intenso movimento populacional da Europa para as Américas na segunda metade do século XIX – especialmente nas duas últimas décadas – gerou a preocupação, do lado de cá, com a recepção desses imigrantes. Em vários países do continente foram criados dispositivos para a acolhida dos estrangeiros que desembarcavam em busca de trabalho. Nos Estados Unidos, construiu-se a Hospedaria de Ellis Island, em Nova York. Halifax, capital da província da Nova Escócia, no litoral Atlântico, foi o principal ponto de chegada de imigrantes ao Canadá. Na Argentina, os imigrantes foram recepcionados, em Buenos Aires, no Hotel de los Inmigrantes de La Rotonda. No Brasil, destacaram-se a Ilha das Flores e a Hospedaria do Brás, em São Paulo.
     
    O país apresentava um contexto favorável à imigração devido à proibição do tráfico transatlântico de africanos (1850) e à promulgação da lei do Ventre Livre (1871). A crise do sistema escravista estimulou debates sobre a substituição da mão de obra e intensificou discussões sobre a questão racial. Para muitos dirigentes e intelectuais, a transformação do Brasil em uma nação moderna dependia da conformação de um povo branco e europeizado. O indivíduo que vinha do outro lado do oceano tinha, portanto, um duplo papel: trabalhar nos campos e nas cidades e servir de elemento branqueador e civilizador.
     
    O governo brasileiro adotou uma série de medidas para estimular a vinda de trabalhadores europeus. Em 1876, foi criada a Inspetoria Geral de Terras e Colonização, subordinada ao Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas. Entre as funções do órgão, estava a de assegurar que os estrangeiros teriam hospedagem e transporte gratuitos até o seu destino final. Para isso, a inspetoria adquiriu, em 1883, a Ilha das Flores e duas outras ilhas próximas, que pertenciam ao senador José Ignácio Silveira da Motta. Com a construção de um grande galpão, capaz de abrigar comodamente 1.000 indivíduos, o espaço se converteu em local de registro, controle médico-sanitário e encaminhamento dos imigrantes para o lugar onde iriam se estabelecer.  
     
    Do ministério veio a ordem para que, depois de desembarcar na cidade do Rio de Janeiro, todos os passageiros vindos de portos estrangeiros em 3ª classe deveriam ser imediatamente transportados até a Ilha das Flores. Ao chegarem à hospedaria, eles eram registrados em livros nos quais se anotavam dados como nome, idade, estado civil, nacionalidade e profissão. Depois, passavam por um gabinete sanitário, onde era verificado seu estado de saúde. Os que estavam doentes eram encaminhados para hospitais próximos ou, nos casos mais simples, internados nas enfermarias locais. Os outros recebiam roupas de cama e seguiam para os alojamentos.  
     
    A ideia era que o recém-chegado permanecesse por pouco tempo na hospedaria: a legislação brasileira concedia-lhe um prazo de apenas oito dias. Durante esse período, competia ao imigrante conseguir um emprego ou adquirir um lote de terra em um dos núcleos coloniais do país. Ao Estado, cabia fornecer o transporte gratuitamente. A maior parte dos imigrantes, porém, ficava menos de oito dias na Ilha das Flores. Durante o período da grande migração (1880-1914), o tempo de permanência era em média de quatro dias, em função da quantidade de estrangeiros que ingressava no país. Após essa fase, diminuiu o fluxo imigratório e alguns espaços da hospedaria passaram a ter outros usos. 
     
    Em 1917, com o ingresso do Brasil na Primeira Guerra Mundial, o local foi utilizado para manter sob custódia os tripulantes dos navios alemães. Mais tarde serviu como presídio para os paulistas envolvidos na Revolta Constitucionalista (1932) e para os militantes que participaram da Revolta Comunista (1935). Durante a Segunda Guerra Mundial, o espaço voltou a ser transformado em clausura, dessa vez dos súditos do Eixo – especialmente alemães. Em 1945, terminado o conflito, a movimentação já crescia novamente na hospedaria, pois o país passou a acolher homens, mulheres e crianças que deixavam suas terras por conta da batalha. Um acordo firmado entre o governo brasileiro e a Organização Internacional dos Refugiados (OIR) determinava que todos deveriam ingressar pelo porto do Rio de Janeiro e ser abrigados na Ilha das Flores. Dali seriam transportados para suas novas regiões de moradia e trabalho.
     
    “Você era um estranho e o Brasil o acolheu”, dizia em vários idiomas a placa fixada na região do Cais da Frente, principal entrada da ilha. Os refugiados da Segunda Guerra Mundial formaram as últimas grandes levas de estrangeiros a chegar à Ilha das Flores: foram cerca de 29 mil pessoas entre 1947 e 1952, quase todas originárias do centro e leste europeu.
     
    Depoimentos colhidos com imigrantes e refugiados políticos pós-1945 revelam o estranhamento e, ao mesmo tempo, o encantamento com o ambiente da Ilha das Flores. O cheiro do café recém-passado, o arroz com feijão e o sabor das frutas tropicais que custavam caro na Europa são algumas das lembranças que povoam a memória dessas pessoas. Os funcionários e seus filhos tinham contato com diferentes culturas. Ana Maria Barbosa, filha de migrante nordestina e ex-moradora da Ilha das Flores, relata as trocas de brinquedos e canções com crianças japonesas que por ali passaram nas décadas de 1940 e 1950. Na Hospedaria estiveram pessoas como Judith Munk, refugiada húngara que se tornaria assistente e sócia do austríaco Kurt Klagsbrunn – fotógrafo que chegou ao Brasil no final da década de 1930 e retratou a sociedade carioca e a própria Hospedaria em 1949 – e Elke Georgievna Grunupp, filha de um russo e uma alemã, refugiados políticos que chegaram ao Brasil em meados dos anos 1950, e que se tornaria a conhecida Elke Maravilha.
     
    Gradativamente o número de imigrantes diminuiu, até o fechamento oficial da hospedaria, em 1966. O espaço não ficou sem uso. O Ministério da Agricultura criou o Centro Nacional de Treinamento (Cenatre), responsável por ministrar cursos de preparação de trabalhadores e empregadores rurais. Em dezembro de 1968, a Marinha assumiu o local, criando o Destacamento Especial da Ilha das Flores para receber presos encaminhados pelo Distrito Naval. Esse período da ilha enquanto presídio político foi motivo de investigação pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) devido às graves violações de direitos humanos ali praticados. Desde 1971, a Ilha das Flores passou a abrigar o Comando da Tropa de Reforço dos Fuzileiros Navais e algumas de suas unidades subordinadas, aí permanecendo até os dias atuais. 
     
    A maior parte da documentação administrativa da Hospedaria de Imigrantes perdeu-se após sua extinção. Em 2011, foi criado o Centro de Memória da Imigração da Ilha das Flores, por meio de parceria entre a Marinha e a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). A iniciativa pretende organizar a documentação dispersa, estimular o exercício de memória, despertar a curiosidade da população pelo passado e promover o acesso do grande público às questões relativas à imigração no Brasil e aos dilemas cotidianos de imigrantes desde o século XIX aos dias atuais. 
     
    Processos de deslocamento espacial (internacionais e internos) estão presentes na vivência de boa parte das famílias brasileiras. Rememorar a história da hospedaria implica fazer daquele espaço um lugar de sensibilização para a complexa experiência da migração, assim como ajuda a refletir sobre um capítulo fundamental na formação da multifacetada população de nosso país.
     
    Luís Reznik é professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e coordenador do Centro de Memória da Imigração da Ilha das Flores (CMIIF), financiado pela FAPERJ. Julianna Carolina Oliveira Costa é historiadora. Thiago Rodrigues Nascimento é  pesquisador do Centro de Memória da Imigração da Ilha das Flores.  
     
    Saiba Mais
     
    GONÇALVES, Paulo César. Mercadores de braços: riqueza e acumulação na organização da emigração europeia para o novo mundo. São Paulo: Alameda Editorial/Fapesp, 2012. 
    PAIVA, Odair & MOURA, Soraya. Hospedaria de Imigrantes de São Paulo. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
    ZUZARTE, André. “O Milhão Restante, o Brasil e a evolução da proteção internacional a refugiados (1946-1952)”. Dissertação de mestrado, FGV/CPDOC, Rio de Janeiro, 2013.
     
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