Imagens da África

Alberto da Costa e Silva

  • Não é de surpreender que Castro Alves não tenha tido contato maior com escravos. É certo que os africanos estavam em todos os lugares, e alguns deles, junto aos senhores na maior parte do dia. Mas os mundos de uns e de outros eram distintos e quase sempre contrários, ainda que corressem colados.
    Nas passagens, impostas pelas relações de trabalho, da senzala para o espaço do senhor, um crioulo andava com mais facilidade de um lado para outro do que o negro trazido já rapazola ou adulto da África. Um escravo doméstico podia incorporar-se ao universo dos brancos e até a ele aderir, porém só em casos excepcionalíssimos, e com muita habilidade e perseverança, um homem branco penetrava no mundo dos escravos, sobretudo se africanos. Não era infreqüente que uma mucama ouvisse as confidências de sua sinhazinha, mas seria raro que esta tivesse paciência e interesse em dar atenção às da escrava, que, por sua vez, dificilmente teria o atrevimento de fazê-las ou confiaria na discrição da ama.


    Os escravos africanos viam o branco, o mulato e até, muitas vezes, o crioulo embranquecido ou amulatado culturalmente como o inimigo, e era natural que reagissem, por desconfiar da curiosidade do opressor, às questões que este lhes punha. Não consta, aliás, que essa curiosidade tenha sido grande. Até entre os abolicionistas, não parece ter havido maior interesse pelo passado do escravo, pelo que ele fora antes do cativeiro, e tampouco pelo lugar da África onde nascera. Era visto como um selvagem, um bárbaro, sem cultura e sem passado articulado. Não era, por isso, objeto de estudo. Houve, é verdade, uns poucos que trocaram idéias com africanos ou ouviram as suas histórias. O velho José Bonifácio de Andrada e Silva, por exemplo, e estrangeiros, como Maria Graham. Mas foram exceções. E mais raros ainda, raríssimos, foram aqueles, como o próprio José Bonifácio, Antônio da Costa Peixoto, Luís Antônio de Oliveira Mendes e Francis de Castelnau, que, de lápis e papel nas mãos, se sentaram ao lado do escravo e anotaram o que ele lhes disse sobre os acidentes geográficos do interior da África, o vocabulário de sua língua materna, a história de um reino africano ou o enredo de sua vida. Mesmo depois de abolida a escravidão, Nina Rodrigues, Manuel Querino e João do Rio, a recolherem, na Bahia e no Rio de Janeiro, o que podiam dos africanos e seus descendentes, ainda foram casos isolados.


     Se algum dia conversou por mais tempo com um escravo, Castro Alves, por pudor, prudência ou receio de parecer bisbilhoteiro, não lhe pôs perguntas sobre o passado. Nem sobre sua vida e seus valores, que provavelmente teria dificuldade de entender. Bastava-lhe saber que os negros sofriam violência e degradação. Se tivesse ouvido um escravo falar de sua terra natal, ou do que dela contaram seus pais, certamente não teria descrito a África sem qualquer amparo na realidade, a repetir as imagens tiradas do orientalismo romântico francês e a estender para o sul do Saara as paisagens do deserto.

     


  • Já em “A canção do africano”, isso se anuncia, como se pode notar pelas palavras que vão aqui em destaque:
    “Minha terra é lá bem longe,
    Das bandas de onde o sol vem;
    […]

    “O sol faz lá tudo em fogo,
    Faz em brasa toda a areia;
    […]

    “Aquelas terras tão grandes,
    Tão compridas como o mar,
    Com suas poucas palmeiras
    Dão vontade de pensar…


    Essa paisagem de sol e areias ardentes e de poucas palmeiras podia ser, é bem verdade, a que relembrava um hauçá, um canúri ou um fula, que fossem originários da parte mais ao norte das vastas regiões em que vivem, daquelas áreas em que as savanas sudanesas se vão desmanchando pouco a pouco nas estepes ressequidas do Sael, a praia do deserto. Um cenário de semi-aridez não faltaria, durante os longos períodos de estiagem, por exemplo, a certas áreas ao norte dos rios Níger e Benué ou dos planaltos de Angola. Mas a paisagem em que insiste Castro Alves é outra: é a do deserto, como se todos os escravos viessem do Saara ou de suas franjas. No próprio “O navio negreiro”, depois de perguntar-se quem eram aqueles desgraçados, responde que eram “os filhos do deserto”, nascidos “nas areias infindas” e que, capturados, haviam sido levados pelas caravanas por um “areal extenso”, um “oceano de pó”.


    Alguém poderia argumentar que Castro Alves empregou, nesse poema, a palavra “deserto”, como tantas vezes em outras partes de sua obra, na acepção de região desabitada, erma. O vínculo que na quadra se estabelece com as expressões “areal extenso” e “oceano de pó” indica, no entanto, que se referia a vastidões áridas como o Saara.


  • Essa percepção equivocada da África de onde foram trazidos os escravos negros para o Brasil não afeta a sinceridade e a força das palavras de denúncia, que queimam no quinto movimento de “O navio negreiro”, nem a grandeza monumental daquele poema que geralmente é citado em sua companhia, como se fosse a outra aba do retábulo: “Vozes d’África”.


    A África que nos fala, nesse poema, é uma África dramática, desolada, desesperada, mas que pouco tem a ver com as terras de onde foram arrancados os escravos que penavam no Brasil. Ela só seria reconhecida como sua por algum sanhaja, tuaregue, tubu ou zagaua que tivesse sido levado, cativo, do deserto para um porto do Atlântico e de lá embarcado para o Brasil. Se isso sucedeu com algum deles, foi só com este ou com um, dois ou meia dúzia mais. E não ficou em nossa memória.


    A África de Castro Alves era uma ampliação, para todo o continente, da África do Norte. Do Egito. Da Líbia. Da Argélia, ocupada pelos franceses desde 1830. Da África de Delacroix e Victor Hugo. Da África do orientalismo, da literatura romântica e do imperialismo francês. Talvez por isso mesmo, porque no continente via sobretudo o deserto saariano, tenha sido possível a Castro Alves transformar o que de início, nos rascunhos, era um poema sobre a tragédia do povo judeu em outro, igualmente trágico, a que chamou “Vozes d’África”.
    Eis a sua África e o que ela nos diz:


    Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?
    Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes
     Embuçado nos céus?
    Há dois mil anos te mandei meu grito,
    Que embalde desde então corre o infinito…
     Onde estás, Senhor Deus?…

    Qual Prometeu tu me amarraste um dia
    Do deserto na rubra penedia
     — Infinito: galé!…
    Por abutre — me deste o sol candente,
    E a terra de Suez — foi a corrente
     Que me ligaste ao pé…

    O cavalo estafado do Beduíno
    Sob a vergasta tomba ressupino
     E morre no areal.
    Minha garupa sangra, a dor poreja,
    Quando o chicote do simoun dardeja
     O teu braço eternal.


  • Vejam bem: ele convoca o simum, que sopra do Saara para o Norte da África, e não, o harmatã, que bafeja do deserto para o sudoeste e era o vento a que estavam acostumados muitos dos escravos africanos no Brasil. A redução da África, no espírito de Castro Alves, à parte do continente que começa no Mediterrâneo e vai até as praias meridionais do Saara (como mostram as palavras que, nas estrofes já citadas e nas que seguem, foram postas em destaque), torna-se ainda mais nítida, quando a faz, ao comparar-se à Ásia e a Europa, assim falar-nos:


    Minhas irmãs são belas, são ditosas…
    Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas
     Dos haréns do Sultão.
    Ou no dorso dos brancos elefantes
    Embala-se coberta de brilhantes
     Nas plagas do Hindustão.

    Por tenda tem os cimos do Himalaia…
    O Ganges amoroso beija a praia
     Coberta de corais…
    A brisa de Misora o céu inflama;
    E ela dorme nos templos do Deus Brama,
     — Pagodes colossais…

    A Europa é sempre Europa, a gloriosa!…
    A mulher deslumbrante e caprichosa,
     Rainha e cortesã.
    Artista — corta o mármor de Carrara;
    Poetisa — tange os hinos de Ferrara,
     No glorioso afã!…

    Sempre a láurea lhe cabe no litígio…
    Ora uma c’roa, ora o barrete frígio
     Enflora-lhe a cerviz.
    O Universo após ela — doudo amante —
    Segue cativo o passo delirante
     Da grande meretriz.

  • ……………………………………………


    Mas eu, Senhor!… Eu triste abandonada
    Em meio das areias esgarrada,
     Perdida marcho em vão!
    Se choro… bebe o pranto a areia ardente;
    Talvez… p’ra que meu pranto, ó Deus clemente!
     Não descubras no chão…

    E nem tenho uma sombra de floresta…
    Para cobrir-me nem um templo resta
     No solo abrasador…
    Quando subo às Pirâmides do Egito
    Embalde aos quatro céus chorando grito:
     “Abriga-me, Senhor!…”

    Como o profeta em cinza a fronte envolve,
    Velo a cabeça no areal que volve
     O siroco feroz…
    Quando eu passo no Saara amortalhada…
    Ai! dizem: “Lá vai África embuçada
     No seu branco albornoz…”

    Nem vêem que o deserto é meu sudário,
    Que o silêncio campeia solitário
     Por sobre o peito meu.
    Lá no solo onde o cardo apenas medra
    Boceja a Esfinge colossal de pedra
     Fitando o morno céu.

    De Tebas nas colunas derrocadas
    As cegonhas espiam debruçadas
     O horizonte sem fim…
    Onde branqueja a caravana errante,
    E o camelo monótono, arquejante
     Que desce de Efraim…


  • Aí está uma África que, apesar da extraordinária beleza visual dessa passagem (sobretudo nos últimos seis versos), desconhece a si própria, ao lamentar não ter uma única sombra de floresta, quando possui a imensa bacia do Congo, e o Gabão, e as regiões costeiras das Guinés, da Serra Leoa, da Libéria, da Costa do Marfim, da Costa do Ouro, da Nigéria e dos Camarões — para só mencionar regiões de onde vieram tantos africanos para o Brasil.


    A falsidade, por exclusiva e, portanto, incompleta, da paisagem que em si própria reconhece não diminui a dramaticidade das palavras com que a África se dirige a Deus. Antes, porém, da desesperada interpelação final, relembra, para explicar sua desgraça, o anátema de Noé contra Cam, que faltara com o respeito à ebriedade e à nudez do pai. Embora no texto bíblico se expresse que a maldição — os seus descendentes seriam escravos — devia recair sobre Canaã, e não, sobre Cam ou seu outro filho, Cuxe, de quem proviriam os negros, primeiro os islamitas e, depois, os cristãos a usaram para justificar, do ponto de vista religioso, a escravização dos africanos. Era idéia corrente na época de Castro Alves, de modo que não necessitava explicá-la. Bastava-lhe aludir a Cam e ao monte Ararat:


    Não basta inda de dor, ó Deus terrível?!
    É, pois, teu peito eterno, inexaurível
     De vingança e rancor?…
    E que é que fiz, Senhor? que torvo crime
    Eu cometi jamais que assim me oprime
     Teu gládio vingador?!…

    ……………………………………………

    Foi depois do dilúvio… Um viandante,
    Negro, sombrio, pálido, arquejante,
     Descia do Arará…
    E eu disse ao peregrino fulminado:
    “Cão!… serás meu esposo bem-amado…
     — Serei tua Eloá…”

    Desde este dia o vento da desgraça
    Por meus cabelos ululando passa
     O anátema cruel.
    As tribos erram do areal nas vagas,
    E o Nômada faminto corta as plagas
     No rápido corcel.

    Vi a ciência desertar do Egito…
    Vi meu povo seguir — Judeu maldito —
     Trilho de perdição.
    Depois vi minha prole desgraçada
    Pelas garras d’Europa — arrebatada —
     Amestrado falcão!…

    Cristo! embalde morreste sobre um monte…
    Teu sangue não lavrou de minha fronte
     A mancha original.
    Ainda hoje são, por fado adverso,
    Meus filhos — alimária do universo,
     Eu — pasto universal…

    Hoje em meu sangue a América se nutre
    — Condor que transformara-se em abutre,
     Ave da escravidão,
    Ela juntou-se às mais… irmã traidora
    Qual de José os vis irmãos outrora
     Venderam seu irmão.

     

  • ……………………………………………

    Basta, Senhor! De teu potente braço
    Role através dos astros e do espaço
     Perdão p’ra os crimes meus!…
    Há dois mil anos… eu soluço um grito…
    Escuta o brado meu lá no infinito,
     Meu Deus! Senhor, meu Deus!!…

    O poeta dos escravos não ouviu o escravo. Se o tivesse feito, não teria escrito o que vem em “Sangue de africano”, uma das partes de A cachoeira de Paulo Afonso. Ao descrever a reação do escravo Lucas, crioulo e certamente sem antepassados líbios, ao que lhe contou sua bem-amada Maria, ele diz:

    No peito arcado o coração sacode
    O sangue, que da raça não desmente,
    Sangue queimado pelo sol da Líbia,
    Que ora referve no Equador ardente.

    Esse Equador passa pelo Brasil, mas não pela África de Castro Alves. Uma África que, para os efeitos da propaganda abolicionista, era toda infelicidade, toda tragédia. Bem distinta das Áfricas das quais tinham saudade os escravos no Brasil, das Áfricas onde eles punham o paraíso perdido e à qual aspiravam, em algum dia venturoso, em corpo ou em espírito, a regressar. Castro Alves sabia disso, pois não só em “A canção do africano” o escravo lamenta estar distante de sua terra, mas também em Gonzaga, na cantiga da cativa, no final da cena iii do primeiro ato, que é de novo entoada na cena xix do terceiro ato, ele se refere à crença de muitos negros em que, após a morte, retornariam à África. Canta a escrava:

  • Eu sou a pobre cativa
    A cativa d’além-mar.
    Eu vago em terra estrangeira,
    Ninguém me quer escutar.

    Tu que vais a longes terras,
    À viageira andorinha,
    Vai dizer à minha mãe,
    Que eu vivo triste e sozinha.

    Mas diz à pobre que espere,
    Que o vento me há de levar
    Quando eu morrer nesta terra,
    Para as terras de além-mar.


    Essas quadras ao gosto popular estão mais próximas, em sua simplicidade, da idéia que tinha o escravo da sua África, da África de seus pais e de seus avós, do que o ambicioso poema no qual Castro Alves pôs a falar um continente. Seria, contudo, injusto, compará-los. “Vozes d’África” é uma criação de fôlego incomum, em que a imaginação fez de paisagens reais paisagens míticas, um poema que é todo visão e movimento, com um poder dramático que não se abate do primeiro ao último verso. A sua verdade não é a da geografia nem a da memória. É a do poema como ente completo e fechado em seu enredo, no qual se denuncia apaixonadamente o horror do escravismo. O impacto que teve em sua época foi, com justiça, enorme. Era aquela África, seca e desesperada, sem florestas, sem savanas e campinas onde pastassem bois, zebras e gazelas, sem montanhas e vales verdes, sem rios, sem lagos povoados de hipopótamos e flamingos, sem saltos e cataratas, sem flores e sem beleza, e não a África que tinha tudo isso e muito mais, a que comovia as platéias de brancos e de caboclos e mulatos culturalmente embranquecidos e europeizados. O retrato trágico exigia o deserto.

    Publicado originalmente em Castro Alves: um poeta sempre jovem (Companhia das Letras, 2006).

    ALBERTO DA COSTA E SILVA  É MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS E AUTOR DE UM RIO CHAMADO ATLÂNTICO (NOVA FRONTEIRA,2003)