Imitando a vida real

Denise Rollemberg

  • O autoritarismo e a hipocrisia da “moral” e dos “bons costumes” ganharam as telas do país em pleno regime civil-militar. O motivo estava na cidadezinha nordestina de Sucupira, cenário da novela “O Bem-Amado”, de Dias Gomes (1922-1999). Exibida na TV Globo de janeiro a outubro de 1973, a trama narrava a vida política e o cotidiano da pequena cidade, sob os encantos do “milagre econômico”, crescimento econômico do governo Médici (1969-1974). Sucupira era uma metáfora do Brasil, produtora – e exportadora! – do melhor azeite de dendê nordestino.

    Os episódios de “O Bem-Amado” giram em torno das mil e uma peripécias do prefeito Odorico Paraguaçu para inaugurar a grande – e única – obra do seu mandato: o cemitério. Mas como ninguém morria na pequena Sucupira, evidencia-se, no absurdo, a nulidade de sua administração. A novela parece ter sido escrita sob medida para afrontar a ditadura. As situações e os personagens desafiam, com ironia, deboche e humor, a imagem de país e povo que o regime pretendia veicular por meio do seu órgão de propaganda, a Assessoria Especial de Relações Públicas (Aerp): prosperidade, grandeza, desenvolvimento, união, ordem, harmonia. Mas a trama foi escrita em 1962, e como peça de teatro. Ou seja, ainda no período democrático e antes do acirramento das tensões do pré-golpe, momento de intensos movimentos sociais à esquerda e à direita, que culminou com a intervenção militar, com apoio expressivo de segmentos civis da sociedade. Ela foi publicada pela primeira vez na revista feminina Cláudia, naquele mesmo ano. Curiosamente, a peça foi encenada pela primeira vez em 1969. Profissionalmente, só em 1970, no Rio, com direção de Gianni Ratto (1916-2005) e tendo Procópio Ferreira (1898-1979) como Odorico Paraguaçu, já no contexto do Ato Institucional nº 5 (AI-5), de 1968.

    Em sua autobiografia, Apenas um subversivo, Dias Gomes revela Odorico Paraguaçu como caricatura de Carlos Lacerda (1914-1977) – ou, mais precisamente, o linguajar do prefeito de Sucupira como alusão ao exagerado estilo oratório do então governador da Guanabara, que também pretendia fazer sua grande obra: transformar o Parque Lage, uma extravagante floresta em plena cidade, num cemitério vertical. Com o AI-2 (1965), que estabeleceu o sistema bipartidário (Arena e MDB) e as eleições presidenciais indiretas, Lacerda – radical defensor do golpe – ficou alijado da nova ordem, já que seu partido, a UDN, havia sido extinto. O fato motivou Dias Gomes a transformar Odorico no “protótipo do político interiorano, produto do coronelismo”.  

    “O Bem-Amado” – a primeira novela em cores do Brasil, símbolo de modernização – foi exibida no governo mais repressor e ao mesmo tempo mais popular. Junto ao enorme público das novelas de televisão, Odorico Paraguaçu, o prefeito corrupto, mau-caráter, inescrupuloso, hipócrita, machista, mal-intencionado, carreirista e impiedoso, popularizou-se.

    Não era só este anti-herói que tinha essas características. Em Sucupira, quem poderia atirar a primeira pedra? A oposição era representada por uma família de latifundiários, herdeira dos mesmos valores e práticas de Odorico. O jornal local estava comprometido com o prefeito por laços pessoais e políticos. Os que o elegeram assistiram à fraude eleitoral e dela participaram em troca de favores. O povo o aplaudia em praça pública e o vaiava depois de uns copos de cachaça. Também se reconheceu em Odorico, e popularizou o personagem na ficção e na realidade. A vida de Sucupira era tão absurda quanto familiar. Para escrever a peça, Dias Gomes chegou a se inspirar na notícia do drama do prefeito de uma pequena cidade do interior do Espírito Santo, que não conseguia inaugurar um cemitério por falta de defunto.

    Lado a lado com o sucesso do anti-herói estava a propaganda do governo. Com expressões e slogans, como “Ninguém segura o Brasil” e “Pra frente, Brasil!”, o regime pretendia criar a imagem do “bom brasileiro”, ou seja, o cidadão ordeiro, trabalhador, ufanista e acrítico, em suposta oposição aos trabalhistas e comunistas do pré-1964 e aos rebeldes e revolucionários do nosso 1968, ano marcado no mundo por movimentos de contestação da ordem, aqui vivido como enfrentamento da ditadura instaurada quatro anos antes.

    Quando Dias Gomes começou a escrever a peça “O Bem-Amado”, em 1962, era militante do PCB, partido ao qual foi filiado de 1945 até o início da década de 1970. Chegou a ser membro do comitê cultural e secretário-geral do Instituto Brasil-Cuba. Em 1964, foi demitido da Rádio Nacional pelo primeiro Ato Institucional. Quando se iniciou o período mais crítico da ditadura, logo após o AI-5, foi contratado pela TV Globo.

    A presença de Dias Gomes na emissora mais poderosa punha em questão a relação do intelectual com o grande público: “Minha geração de dramaturgos – a dos anos 60 – erguera a bandeira do teatro popular, que só teria sentido com a conquista de uma grande platéia popular. (...) Agora me ofereciam uma platéia verdadeiramente popular, muito além dos nossos sonhos. Não seria inteiramente contraditório virar-lhe as costas?”, escreveu o autor.

    Hoje, essa realidade deve estimular a reflexão sobre o comportamento do intelectual sob a ditadura e sobre a atuação dessa geração numa TV que colaborou com um Estado que instituiu o terror. Na época, a Globo, por suas ideias e práticas, integrava – e não exclusivamente apoiava – o regime. Como foi possível à emissora abrir espaço para intelectuais em princípio colocados à margem pela ordem da qual ela própria participava e se beneficiava?

    Entretanto, o dilema estava lá: de um lado, fazer teatro para um público restrito e sob os constrangimentos da censura; de outro, escrever novela para um público jamais alcançado, submetendo-se à produção regida por índices de audiência, patrocinadores e produtores.

    Em 1969, Dias Gomes estava escrevendo sua primeira novela, “Verão Vermelho”. Antes, ele terminara “A ponte dos suspiros”, de Glória Magadan (1920?-2001), que fora demitida pela emissora. “Verão Vermelho” era ambientada na Bahia dos coronéis. Dias Gomes levava para a televisão a pesquisa de temas e personagens do folclore e da cultura popular numa evidente valorização dos elementos nacionais. Dessa observação nasciam as histórias e os personagens.

    Assim o escritor experimentou uma visão do povo brasileiro. Ao mesmo tempo em que “O Bem-Amado” traz à cena figuras populares, interessantes porque imperfeitas – como as elites –, boas e más ao mesmo tempo – uma inovação nas novelas –, é também capaz de limitá-las às dicotomias simplificadoras. No próprio autor, há a ambivalência de duas percepções. Quando revela as ambivalências do “povo”, mostra sua maior qualidade – do autor e do povo. Se a obra de Dias Gomes presta homenagem ao povo brasileiro, aí está ela. No caso de “O Bem-Amado”, arriscaria supor que o que agradou ao público não tenha sido ver-se como oprimido (visão também aí presente), mas sim reconhecer-se em suas múltiplas possibilidades. Para os comunistas de sua geração, especialmente os identificados com o PCB, o povo era oprimido, bom, enganado, manipulado, refém dos opressores, da miséria e da ignorância.

        “O Bem-Amado” fora pensado inicialmente como tema urbano, depois adaptado à realidade do Nordeste. Os políticos latifundiários, autoritários, violentos, corruptos, herdeiros do coronelismo, temerosos da reforma agrária em pauta no período anterior ao golpe de 1964, encarnavam, simultaneamente, a base de apoio do regime e o atraso do país, a ser superado na modernização dos novos tempos. A realidade de Sucupira talvez lembrasse ao espectador esse mundo ou o quanto a democracia era inútil: de que valia o povo votar se elegia um Odorico Paraguaçu? Certamente, o povo não sabia votar. O país precisava antes superar o atraso para assumir as responsabilidades da democracia. Mas não eram essas regiões atrasadas que davam seus votos à Arena, que representava a situação? Nas grandes cidades do Sudeste, onde o atraso supostamente era menor, o eleitor não votava no MDB, a oposição?

    Ao falar de um pequeno universo, Dias Gomes se referia exclusivamente ao Brasil atrasado? Ou os vícios de Sucupira e de seu povo transbordavam para todo o país, superando a velha dicotomia dos dois Brasis? Sucupira é o Brasil atrasado, a ser superado? Ou se trata do Brasil que deve ser encarado de frente, não para ser superado, mas entendido, aceito e, quem sabe, transformado?

    Os personagens de “O Bem-Amado” são cheios de vícios, corruptos e corruptíveis, humanos. A população de Sucupira elegeu o mau-caráter Odorico prefeito. O espectador brasileiro, o herói nacional, o seu bem-amado. Talvez aí esteja o principal êxito da obra de Dias Gomes.

    A modernidade da novela revelava-se também ao mostrar as misérias humanas, longe dos heróis e heroínas imaculados dos melodramas e da moral e dos bons costumes inventados – ou alimentados – pelo regime e por uma sociedade conservadora e preconceituosa. A mesma sociedade que se divertia com “O Bem-Amado” ria da própria hipocrisia.


    Denise Rollemberg é professora da Universidade Federal Fluminense e autora de “O imortal Bem-Amado. A chegada de Dias Gomes à Academia Brasileira de Letras”, in Carlos Fico e Maria Paula Araújo (orgs.). 1968, 40 anos depois: história e memória. (7Letras, 2009).


    Saiba Mais - Bibliografia

    AARÃO REIS, Daniel. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

    FICO, Carlos. Reinventando o otimismo. Ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil (1969-1977). Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getulio Vargas, 1997.

    GOMES, Dias. Apenas um subversivo. Autobiografia. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

    ORTIZ, Renato, BORELLI, Sílvia H. S. e RAMOS, José Mário Ortiz. Telenovela, História e Produção. São Paulo: Brasiliense, 1989.