Imprensa Oficial Clandestina

Fábio Pedrosa

  • No primeiro dia do mês de dezembro do ano de 1746, a cidade do Rio de Janeiro amanheceu em festa. A ópera “Felinto Exaltado” abria os festejos pela posse do novo bispo do Rio de Janeiro, o religioso D. António do Desterro Malheiro, natural de Portugal, nomeado em substituição ao bispo anterior. A apresentação,“com excelente música e os representantes especiosamente vestidos” foi assistida por toda a alta sociedade colonial e era um indício do que estava por vir. Em janeiro do ano seguinte, o novo bispo partiu do Convento de São Bento para a Catedral em procissão solene. No trajeto, “se descobriram primorosamente ornadas janelas, ruas, ricas tapeçarias e alcatifadas flores”, passaram por sete arcos triunfais, decorados com inscrições e esculturas, construídos e ornamentados especialmente para a procissão, todos com “pedestais e remates que se enlaçavam com especiosa seda de matizes, com guarnições de franjas, galões de prata”. Ao chegar à Catedral, o bispo foi recebido com “engenhosa invenção de peças de artilharia que despediam vários tiros”, preparada pelo capitão-general do Rio de Janeiro.

    Os festejos foram imortalizados num livro cujo exemplar se encontra hoje na Divisão de Obras Raras da Biblioteca Nacional. Intitulado Relação da entrada que fez o ex.mo e rev.mo sr. D. Fr. Antonio do Desterro Malheiro, bispo do Rio de Janeiro,etc,  o livro foi escrito pelo juiz de fora Luis Antônio Rosado. Mas quem ficou para a História foi o responsável pela sua impressão. António Isidoro da Fonseca foi um importante tipógrafo português que fundou naquele mesmo ano sua Segunda Tipografia, agora no Rio de Janeiro, depois de largar a primeira em Lisboa devido aos atritos com a Igreja por publicar Antônio José da Silva, o Judeu. A nova casa impressora teve curta duração, pois apenas alguns meses depois, em maio, cumpriu-se a ordem régia de D. João V, que mandava fechar a casa e recolher todo o material tipográfico.

  • A Relação da entrada, além de descrever a exuberância dos rituais públicos da época, demonstra que estas festas de posse demarcavam as hierarquias sociais e reforçavam as distinções de classe e de poder na colônia. Mas o que faz deste livro uma obra singular é o fato de ele ter sido impresso no Rio de Janeiro – durante todo o período colonial (1500-1808), era estritamente proibida a impressão de qualquer obra no Brasil. A Corte portuguesa tinha enorme receio de obras sediciosas, que atentassem contra a ordem reinante. A existência de casas tipográficas no Brasil dificultaria o controle e a censura do que estava sendo divulgado.

    Era natural que o impressor António Isidoro da Fonseca tivesse sido convidado a acompanhar o bispo durante os festejos. Diante da perspectiva de trabalho seguro para o impressor e da necessidade do bispado de dispor de meios tipográficos adequados, a aproximação entre os dois era inevitável. Devido à falta das licenças necessárias para a publicação do livro sobre os festejos, o bispo aproveitou seu novo cargo para autorizar a publicação, pela prensa de António Isidoro, da Relação sobre a sua própria entrada. Acaba legalizando, ainda que parcialmente, uma impressão proibida.

    Fábio Pedrosa