Incansável porvir

Octavio Paz

  • A ideia de modernidade é um subproduto da concepção da história como um processo sucessivo, linear e irrepetível. Apesar de suas origens judaico-cristãs, ela é uma ruptura com a doutrina cristã. O cristianismo deslocou o tempo cíclico dos pagãos: a história não se repete, teve um começo e terá um fim; o tempo sucessivo foi o tempo profano da história, teatro das ações dos homens decaídos, mas sujeito ao tempo sagrado, sem começo nem fim. Após o Juízo Final, tanto no céu quanto no inferno, não haverá futuro. Na eternidade nada acontece, tudo é. Triunfo do ser sobre o devir. O novo tempo, o nosso, é linear como o cristão, mas aberto, infinito e sem referência à eternidade. Nosso tempo é o da história profana. Tempo irreversível e perpetuamente inacabado, em marcha não para seu fim, mas para o futuro. O sol da história se chama futuro e o nome do movimento em direção ao futuro, progresso.

    Para o cristão, o mundo – ou, como antes se dizia, a vida secular, terrena – é um lugar de prova: as almas se perdem ou se salvam neste mundo. Para a nova concepção, o sujeito histórico não é a alma individual, mas o gênero humano, às vezes concebido como um todo; outras, como um grupo escolhido que o representa: os países avançados do Ocidente, o proletariado, a raça branca ou qualquer outro ente. A tradição filosófica cristã e pagã havia exaltado o Ser, a plenitude cheia, a perfeição que nunca muda; nós adoramos a Mudança, motor do progresso e modelo das nossas sociedades. A Mudança tem duas formas privilegiadas de manifestação: a evolução e a revolução, o trote e o salto. A modernidade é a ponta do movimento histórico, a encarnação da evolução ou da revolução, as duas faces do progresso. Por fim, o progresso é possível graças à dupla ação da ciência e da tecnologia, aplicadas ao domínio da natureza e ao uso de seus vastos recursos.

    O homem moderno tem sido definido como um ser histórico. Outras sociedades preferiram definir-se por valores e ideias diferentes da mudança: os gregos veneravam a Pólis e o círculo, mas ignoravam o progresso; para Sêneca, revelou-se, como a todos os estoicos, o eterno retorno. Santo Agostinho acreditava que o fim do mundo era iminente, São Tomás de Aquino construiu uma escala – os graus de ser – da criatura ao Criador, e sucessivamente. Uma após a outra, essas ideias e crenças foram sendo abandonadas. Parece-me que a mesma coisa começa a acontecer com a ideia de Progresso e, por conseguinte, com a nossa visão do tempo, da história e de nós mesmos. Testemunhamos o crepúsculo do futuro. A queda da ideia de modernidade e o modismo de uma noção tão duvidosa como "pós-modernismo" não são fenômenos que afetam apenas as artes e a literatura: vivemos a crise de ideias e crenças básicas que têm movido os homens por mais de dois séculos. Em outras ocasiões tratei do problema de forma extensa. Aqui só posso fazer um breve resumo.

    Em primeiro lugar: fica sob suspeita o conceito de um processo aberto ao infinito e sinônimo de um processo contínuo. Menciono aqui apenas o que todos nós sabemos: os recursos naturais são finitos e um dia vão acabar. Além disso, causamos danos talvez irreparáveis ao meio ambiente e a própria espécie humana está,agora, ameaçada. Por outro lado, os instrumentos do progresso – a ciência e a técnica – mostraram com clareza terrível que podem facilmente tornar-se agentes de destruição. Finalmente, a existência de armas nucleares é uma refutação da ideia de progresso como algo inerente à história. Uma refutação, acrescento, que só pode ser chamada de devastadora.

    Em segundo lugar: o destino do sujeito histórico, ou seja, da coletividade humana no século XX. Muito poucas vezes os povos e os indivíduos sofreram tanto: duas guerras mundiais, despotismos nos cinco continentes, a bomba atômica e, por fim, a multiplicação de uma das instituições mais cruéis e mortais que os homens conheceram, o campo de concentração. Os benefícios da técnica moderna são incontáveis, mas é impossível fechar os olhos para as matanças, as torturas, as humilhações, as degradações e outros danos sofridos por milhões de pessoas inocentes em nosso século.

    Em terceiro lugar: a crença no progresso necessário. Para nossos avós e nossos pais, as ruínas da história – cadáveres, campos de batalha desolados, cidades destruídas – não negavam a bondade essencial do processo histórico. Os cadafalsos e as tiranias, as guerras e a barbárie das lutas civis eram o preço do progresso, o resgate sangrento a ser pago para o Deus da história. Um deus? Sim, a própria razão, divinizada e rica em cruéis astúcias, de acordo com Hegel. A suposta racionalidade da história se evaporou. No domínio mesmo da ordem, da regularidade e da coerência – nas ciências exatas e na física – reapareceram as velhas noções de acidente e desastre. Inquietante ressurreição que me faz pensar nos terrores do Ano Mil e na angústia dos astecas ao final de cada ciclo cósmico.

    E, para terminar esta enumeração apressada: a ruína de todas essas hipóteses filosóficas e históricas que pretendiam conhecer as leis do desenvolvimento histórico. Seus crentes, confiantes de que possuíam as chaves da história, edificaram poderosos estados sobre pirâmides de cadáveres. Essas orgulhosas construções, destinadas em teoria a libertar os homens, tornaram-se rapidamente cárceres gigantescos. Hoje as vemos cair; as puseram abaixo, não seus inimigos ideológicos, mas o cansaço e o afã libertário das novas gerações. Fim das utopias? Mais exatamente: fim da ideia da história como um fenômeno cujo desenvolvimento se conhece de antemão. O determinismo histórico foi uma custosa e sangrenta fantasia. A história é imprevisível porque seu agente, o homem, é a indeterminação em pessoa.

    Essa breve revisão mostra que, muito provavelmente, estamos no fim de um período histórico e no início de outro. Fim ou mutação da Idade Moderna? É difícil saber. De todo modo, a queda das utopias deixou um grande vazio, não nos países onde essa ideologia foi testada e falhou, mas naqueles em que muitos a abraçaram com entusiasmo e esperança. Pela primeira vez na história, os homens vivem em uma espécie de deserto espiritual, e não, como antes, à sombra desses sistemas religiosos e políticos que simultaneamente nos oprimiam e nos consolavam. As sociedades são históricas, mas todas viveram guiadas e inspiradas por um conjunto de crenças e ideias meta-históricas. A nossa é a primeira a estar pronta para viver sem uma doutrina meta-histórica; nossos absolutos – religiosos, filosóficos, éticos ou estéticos – não são coletivos, mas privados. A experiência é arriscada. É impossível saber se as tensões e os conflitos desta privatização de ideias, práticas e crenças, que tradicionalmente pertenciam à vida pública, não vão acabar por romper o edifício social. Os homens poderiam ser possuídos novamente pelas antigas fúrias religiosas e pelos fanatismos nacionalistas. Seria terrível que a queda do ídolo abstrato da ideologia anunciasse a ressureição das paixões enterradas de tribos, seitas e igrejas. Infelizmente, os sinais são preocupantes.

    O declínio das ideologias que chamei de meta-históricas, isto é, que atribuem um fim e uma direção à história, implica o tácito abandono de soluções globais. Estamos inclinados, cada vez mais, em um bom sentido, na direção de remédios limitados para resolver problemas concretos. É prudente abster-se de legislar sobre o futuro. Mas o presente requer não só satisfazer as suas necessidades imediatas: também nos pede uma reflexão global e mais rigorosa. Há muito tempo, eu acredito, e acredito firmemente, que o ocaso do futuro anuncia o advento do hoje. Pensar o hoje significa, antes de tudo, recuperar o olhar crítico. Por exemplo, o triunfo da economia de mercado – um triunfo pordefault do adversário – não pode ser unicamente motivo de regozijo. O mercado é um mecanismo eficaz, mas, como todos os mecanismos, não tem consciência nem tampouco misericórdia. É preciso encontrar uma maneira de inseri-lo na sociedade para ser a expressão do pacto social e um instrumento de justiça e equidade. As sociedades democráticas desenvolvidas atingiram uma invejável prosperidade; ainda assim, são ilhas de abundância no oceano de miséria universal. O tema do mercado tem uma relação muito próxima com a deterioração do meio ambiente. A contaminação do solo não só infesta o ar, os rios e as florestas, mas também as almas. Uma sociedade possuída pelo frenesi de produzir mais para consumir mais tende a converter as ideias, os sentimentos, a arte, o amor, a amizade e as próprias pessoas em objetos de consumo. Tudo se torna algo a ser comprado, usado e jogado fora. Nenhuma sociedade produziu tantos resíduos como a nossa. Resíduos materiais e morais.

    A reflexão sobre o agora não implica a renúncia do futuro nem o esquecimento do passado: o presente é o lugar de encontro dos três tempos. Nem pode ser facilmente confundida com um hedonismo fácil. A árvore do prazer não cresce no passado nem no futuro, mas no agora mesmo. Também a morte é fruto do presente. Não podemos rechaçá-la: é parte da vida. Viver bem exige morrer bem. Temos que aprender a olhar de frente a morte. Às vezes luminoso, às vezes sombrio, o presente é uma esfera onde se unem duas metades, a ação e a contemplação. Assim como tivemos filosofias do passado e do futuro, da eternidade e do nada, amanhã teremos uma filosofia do presente. A experiência poética pode ser uma de suas bases. O que sabemos do presente? Nada, ou quase nada. Mas os poetas sabem uma coisa: o presente é o manancial das presenças.

    Em minha peregrinação em busca de modernidade, me perdi e me encontrei muitas vezes. Voltei à minha origem e descobri que a modernidade não está fora, mas dentro de nós. É hoje e é a antiguidade mais antiga, é amanhã e é o começo do mundo, tem mil anos e acaba de nascer. Fala em náuatle, traça ideogramas chineses do século IX e aparece na tela da televisão.  Presente intacto, recém-desenterrado, sacode a poeira de séculos, sorri e, logo, se põe a voar e desaparece pela janela. Simultaneidade de tempos e de presenças: a modernidade rompe com o passado imediato apenas para resgatar o passado milenar e converter uma estatueta da fertilidade do neolítico em nossa contemporânea. Perseguimos a modernidade em suas incessantes metamorfoses e nunca chegamos a agarrá-la. Sempre escapa: cada encontro é uma fuga. Tão logo a abraçamos ela se dissipa: era apenas um sopro de ar. É o instante, este pássaro que está em toda parte e em lugar nenhum. Queremos pegá-lo vivo, mas abre suas asas e desaparece, tornado um punhado de sílabas. Ficamos com as mãos vazias. Então, as portas da percepção se entreabrem e aparece o outro tempo, o verdadeiro, o que buscávamos sem o saber: o presente, a presença.

    Octávio Paz