O delegado Orlando Zaccone já foi retratado como o delegado hare krishna, o policial que cita Hannah Arendt, ou aquele que conduziu o inquérito que prendeu os policiais no caso Amarildo. Raramente, porém, ouve-se sua versão mais acadêmica: doutor em ciência política pela UFF, ele estudou a forma que o Estado criou para matar quem é considerado um inimigo da sociedade. Nesta entrevista, ele mostra essa sua face e fala sobre violência da sociedade, a herança de regimes ditatoriais, e como houve uma “limpeza” pré-UPPs: “a letalidade subiu para a entrada das forças de pacificação”.
R.H: O senhor acabou de defender sua tese de doutorado. Qual foi o tema tratado?
OZ:: Eu tentei observar o estado de exceção permanente na forma como se dá a letalidade no sistema penal no Rio de Janeiro. Primeiro, eu observei uma pesquisa da Anistia Internacional de 2011 em 20 países que ainda têm pena de morte no mundo – só não tinha os dados da China. Dava 646 mortes, através da pena capital. Ao mesmo tempo, a ONG foi observar como se dava a letalidade do sistema penal do Brasil e viu que só nos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo se produziu 42% a mais de mortes que todos os países com pena de morte no mundo.
R.H:: Mas não haveria uma diferença entre a morte “legal”, pelo Estado, e a “ilegal”, praticada pela polícia?
OZ:: O fundamento para as mortes dentro do marco legal e dos massacres é o mesmo. É tudo vingança. As agências policiais no século XX mataram mais que as guerras. O mesmo órgão, a polícia, destinada para a persecução penal, é também objeto de uma letalidade que fica numa zona cinzenta, que é o que eu estudei, os autos de resistência.
R.H: O senhor poderia explicar o caso brasileiro?
OZ: Há uma pesquisa da UFRJ que estuda os autos de resistência do ano de 2005: 99% dos casos foram arquivados em menos de três anos. Dá-se uma legitimidade para essas mortes praticadas a partir de ações policiais. E essa violência está dentro do direito, não fora.
R.H: A violência aqui, então, é legalizada?
OZ: É a permanência de algo que vem não apenas da ditadura [de 1964], mas de antes dela: o autoritarismo legal. Isso nos faz termos instrumentos jurídicos que de uma certa forma legitimam relações de poder. O código penal [criado em 1940] abarcou muitas questões da ideologia da defesa social, principalmente no tocante da construção do criminoso como inimigo.
R.H: Mas houve uma diminuição do número de autos de resistência nos últimos anos no Rio, não?
OZ: Eu vejo através dos números absolutos dos autos de resistência que o pico de 2007, que foi de 1330 mortos no estado do Rio de Janeiro, vai diminuindo até chegar em 2012, com 400 e poucos, não como um efeito da pacificação – eu inverto. Na década de 1990, nós não passamos de 400 autos de resistência no estado. Toda a letalidade passa a ser crescente a partir de 2000. Eu vejo esse período como uma pré-pacificação: a letalidade subiu para a entrada das forças de pacificação.
R.H:: Você acha que foi planejado?
OZ: Nada disso é planejado! Mas não podemos negar que o governador [fluminense, Sérgio Cabral] foi à Colômbia pelo menos umas quatro vezes em 2007. Ainda não tinha UPP. É, mas já estava se pensando nela. E o projeto Colômbia contempla uma letalidade muito grande – caminhões com corpos eram tirados de Bogotá. Após essa letalidade, em 2008, começa o projeto da UPP, e os índices de letalidade voltam aos índices normais, que não são normais. Quando se fala de 400 mortos no Rio, esse é o mesmo número que a polícia mata em todo o território dos EUA durante o ano.
R.H: Como a ditadura de 1964 colaborou para esse processo?
OZ: A ditadura vai legitimar a ideia do inimigo interno. Passa a ser uma política de segurança. Essa política não é a política de governo, mas de razões de Estado. Ou seja, a forma como a governabilidade da república brasileira é violenta no sentido de construir e identificar setores na sociedade como inimigos matáveis. Isso é permanência – sejam eles os balaios, os seguidores de Antônio Conselheiro, sejam eles os subversivos, no período da ditadura, sejam eles os traficantes de drogas, que é um grande marco, sejam eles os black blocs.
R.H: O senhor é bastante crítico ao processo de criminalização. Por quê?
OZ: O Brasil é o quarto país que mais encarcera no mundo e a criminalidade não reduz. Conforme você coloca a sua crença no processo de criminalização, você acha que a questão das drogas será resolvida com a prisão e a morte de traficantes. Quando na verdade o que resolve é um debate político acerca da legalização e regulamentação da produção, do comércio e do consumo dessas substâncias. Mas isso é esvaziado pela crença no processo de criminalização. Isso também ocorre na homofobia, na lei Maria da Penha. Não vamos nos inserir socialmente, não vamos conseguir ter uma inserção no ambiente social, no sentido de transformar uma cultura violenta de homens em relação a mulheres, ou de homens e mulheres em relação a homossexuais, simplesmente com o processo de criminalização.
R.H: O que o senhor acha da militarização da polícia?
OZ: A polícia militar é um oxímoro. Ou é polícia ou é militar. É importante termos em foco a militarização da segurança pública no Brasil, mas é bom também termos em foco a policização das políticas de segurança. As políticas de segurança ficaram policizadas. A militarização da segurança da conciliação da passagem da ditadura e do processo de democratização. Foi negociado a inclusão de um artigo na constituição onde garantia às Forças Armadas o controle da ordem interna. Isso foi uma maneira como os militares entenderam fazer essa passagem de poder sem que perdessem todo o poder.
R.H: O senhor acha que o caso brasileiro está isolado?
OZ: Já havia documentos do Pentágono no século XX sobre como seria a forma de controle dessa situação para o século XXI e todos os estudos apontavam para a militarização da segurança pública, através da ocupação militar de áreas pobres. A UPP ganha relevância internacional, inclusive com premiações da ONU, não à toa.
Inimigo meu
Ronaldo Pelli