Inquisição fora de época

Yllan de Mattos

  • Bandeira da Inquisição em Goa, então colônia portuguesa no Oriente. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)A “visitação” chegou a Belém no conturbado final do século XVIII. Apesar do nome agradável, era uma espécie de inspeção volante que o Tribunal da Inquisição de Lisboa realizava nas colônias do Atlântico.
     
    Curioso é que o Santo Ofício já deixara de fazer esse tipo de ação em Portugal e em suas colônias havia tempos. O período das visitas da Inquisição portuguesa aconteceu entre os anos de 1542 e 1637 – foi quando se instalaram as mesas de inquisições na Bahia, em Pernambuco, no Rio de Janeiro, em Angola, em Malaca (na Malásia), entre outros. Sua interrupção se deveu às onerosas guerras de Restauração contra Espanha e Holanda. Nem por isso declinaram as atividades corriqueiras do Santo Ofício, pelo contrário: a máquina inquisitorial estava bem azeitada e funcionando, com os agentes e a estrutura judiciária das dioceses mais refinados, a ponto de uma auxiliar o trabalho da outra, diminuindo os encargos dessas visitas.
     
    Se havia tantos oficiais do Tribunal inspecionando a vida nas colônias, o que fez a Inquisição enviar uma visitação ao Grão-Pará, numa época em que este expediente não era mais utilizado? A questão era bem delicada. Eram tempos em que o rei D. José I e seu ministro, o marquês de Pombal, promoveram a chamada “reforma pombalina” que, entre outras medidas, tirou a autonomia do Santo Ofício, transformando-o em Tribunal Régio em 1769. A censura também foi colocada sob a alçada monárquica, através da Real Mesa Censória, os autos-de-fé públicos (nos quais ocorriam as punições dos diversos delitos condenados pela Inquisição) foram proibidos, e a “odiosa distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos” teve fim no ano de 1773. 
     
    Parecia que o Santo Ofício sucumbia às críticas do Iluminismo que varria toda a Europa. Só parecia. O que estava em jogo era a domesticação de um Tribunal que, como se dizia, fazia minar toda a riqueza de Portugal ao perseguir e processar os cristão-novos – àquela altura, descendentes longínquos dos judeus convertidos à força no reinado de D. Manuel (em 1497). Também se fazia do Tribunal um instrumento de perseguição política, como no caso do processo contra o jesuíta italiano que vivia no Brasil, Gabriel Malagrida, queimado em Lisboa, em 1761, simbolicamente com as vestes dos inacianos.
     
    Habitação indígena no Grão-Pará, em 1785. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)Nesta margem do Atlântico, no estado do Grão-Pará, seu governador, Francisco Xavier de Mendonça Furtado (irmão de Pombal), e o bispo Miguel de Bulhões se desentenderam com os jesuítas. Essas divergências chegaram a ponto de conflitos armados e, segundo as autoridades, juras de lealdade ao rei da França por parte dos jesuítas. Para estes, estava em jogo sua autonomia e seu negócio com o comércio da região, incluindo as trocas com os índios aldeados; para o governador, estava em pauta a autoridade metropolitana. Resultado: os jesuítas acabaram expulsos de Portugal e de suas possessões em 1759.
     
    O bispo Miguel de Bulhões (1749-1760) foi fundamental para a política pombalina, sugerindo adaptações das regras metropolitanas à realidade colonial. Já com seu sucessor, o bispo João de São José Queirós (1760-1763), a situação foi diferente. Sua ação esteve longe da harmonia com os ditames de Pombal. Embora crítico dos jesuítas, Queirós reafirmou certa autonomia e cometeu desajustes inaceitáveis para a época da expulsão dos inacianos, como defender a escravidão indígena e “arrogar para si o arbítrio dos descimentos” dos índios. Esses “descimentos” eram deslocamentos forçados, embora “brandos e suaves” (como se dizia), de índios até as proximidades das povoações coloniais, confiados em outros tempos a missionários com o objetivo de aldear, catequizar e preparar os indígenas para as tarefas econômicas executadas. A questão, porém, já havia sido regulamentada pela legislação conhecida como Diretório dos índios, que subordinava tudo à decisão do governador do estado. 
     
    Os bispos eram agentes da política metropolitana e, caso não acolhessem este preceito, seriam excluídos de sua ação pastoral. Bulhões confirmou sua trajetória, deu força à ação metropolitana e foi recompensado. Queirós não, e caiu em desgraça. Coube ao vigário Giraldo José de Abranches, que agia como se bispo fosse, a tarefa de realinhar tais práticas e assumir a administração da prelazia na qualidade de vigário capitular. Abranches era um privilegiado instrumento que Sua Majestade e Pombal necessitavam naquela região, após o “péssimo” exemplo dos inacianos e as indisposições com frei João de São José Queirós. Era um homem de “letras canônicas”, “virtudes” e “experiências coloniais” nas dioceses de São Paulo e Mariana.
     
    Suas atribuições em Belém não se restringiram às diligências eclesiásticas a mando do rei e ao governo interino do bispado. Abranches também atuou como visitador do Santo Ofício entre 1763 e 1773. A Inquisição era um instrumento de normatização da fé e dos costumes, mas também expediente único e profundo para o conhecimento das relações sociais. E este foi o objetivo de Abranches: auxiliar a administração pombalina e conhecer as gentes e as terras do Pará.
     
    Esta finalidade fica mais evidente quando se sabe das outras ações promovidas pelo governo pombalino na região: as devassas do ouvidor geral Feliciano Ramos Nobre Mourão nas novas vilas e povoações e a visita pastoral do vigário geral José Monteiro Noronha à capitania do Rio Negro. As devassas inquisitoriais, pastorais e civis complementavam-se para o melhor conhecimento do estado do Grão-Pará. Todos esses agentes estavam integrados intimamente com o projeto pombalino.
     
    Noronha tornou-se eclesiástico em 1754 e foi homem de confiança do bispo Miguel de Bulhões, grande aliado de Pombal. Quando foi criada a sede local do bispado no Rio Negro, logo após a expulsão dos jesuítas, essa imensa jurisdição eclesiástica foi imediatamente creditada a ele. Já Nobre Mourão foi eleito magistrado em 1758, no cargo de juiz de fora e provedor da fazenda, e dois anos depois já experimentava as funções de ouvidor-geral da comarca do Pará. Pares do mesmo projeto, não sem razão fizeram carreira meteórica nas terras do norte.
     
    Apesar de tratar de questões de fé, o foco da presença inquisitorial na visitação de 1763 foi a administração eclesiástica. Na gravura publicada no século XVIII, inquirição em sala do Santo Ofício. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)A Inquisição integrava e contribuía para essa verdadeira rede coercitiva de informações. Mesmo agindo pouco, auxiliou na tarefa de conhecer as gentes e as terras do Grão-Pará. Ouviu denúncias, abriu inquéritos, admoestou e enviou processos a Lisboa – embora com menos rigor do que outrora. Isabel Maria da Silva foi denunciada por praticar “uma sorte chamada [de] São João”, na qual se enchia um copo de vidro com água na noite do santo, derramando em cruz a clara e a gema do ovo, seguida pela reza do “Padre Nosso e Ave Maria”. Já Filipe Iacob Betalha confessou que, estando em sua casa com a índia Marcela – a “qual andava em contrato ilícito” – persuadiu-a para “que consentisse a cometer o nefando pecado de sodomia”. O cristão-novo Izidro fora denunciado à mesa inquisitorial por “amarrar o crucifixo em uma goiabeira e açoitá-lo”. O diretor de índios Raimundo José Bitencourt foi à mesa denunciar um roubo de pedra d’ara – usada nas celebrações eucarísticas. O culpado foi o índio sacristão Joaquim que, pressionado, logo confessou e delatou os demais envolvidos. Entre eles havia certo Manuel de Jesus, escravo de nação Angola, de 14 anos, que mesmo não recebendo nem pedra nem hóstia, já as almejava para ter trato com mulheres e fechar o corpo de espadas e facas.
     
    Nos seis anos de visitação, 46 pessoas se apresentaram à mesa inquisitorial e nove foram remetidas a Lisboa. Do Conselho Geral do Santo Ofício, os pareceres ajuizavam “diferente conhecimento das coisas da religião”, “rusticidade e falta de instrução” dos moradores destas terras. Um dos objetivos do projeto pombalino para a região era criar alianças com os chefes indígenas, mantendo o território definido no Tratado de Madri (1750), além de garantir mão de obra livre e de baixo custo para as atividades econômicas dos moradores do Grão-Pará, incentivando o comércio e introduzindo escravos africanos.
     
    A correspondência do visitador e vigário capitular Giraldo José de Abranches e o próprio expediente da mesa de inquisição indicam que ele sobrevalorizou o cotidiano da administração eclesiástica em detrimento dos assuntos inquisitoriais. Não se esqueceu do Santo Ofício, mas se deteve amplamente nos assuntos d’el rey e de seu poderoso ministro. 
     
    No fim das contas, a “última Inquisição” foi uma diligência eclesiástica interessada na administração do bispado, na evangelização do rebanho e na consolidação da política pombalina. 
     
    Yllan de Mattos é autor do livro A última Inquisição: os meios de ação e funcionamento do Santo Ofício no Grão-Pará pombalino (Paco editorial, 2012).
     
    Saiba Mais
     
    Livro da Visitação do Santo Ofício da Inquisição ao Estado do Grão-Pará – 1763-1769. Apresentação de José Roberto do Amaral Lapa. Petrópolis: Vozes, 1978.
    VAINFAS, Ronaldo. Trópicos dos Pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.