Íntimo apocalipse

Gabriela Kvacek Betella

  • Manter uma amizade por quase 50 anos é algo pouco comum. Quando ela envolve quatro pessoas, então, é fato para ser registrado. E registro foi o que não faltou na relação dos mineiros Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Hélio Pellegrino e Paulo Mendes Campos, íntimos desde a mocidade e que só se separariam pela morte.

    Citados freqüentemente como um quarteto literário, nunca chegaram a declarar um manifesto, movimento ou algo parecido. Mas entre os vários traços comuns da literatura desses autores estava a habilidade em retratar perfis. Ela veio da convivência com gente do meio literário, jornalístico e político, e resultou numa coleção de retratos de parte considerável da intelligentsia brasileira do período de 1940 a 1980.

    A análise dessas “biografias vicárias” revela a trajetória de cada um deles com base nas impressões que deixaram sobre as pessoas com quem tiveram contato e das quais quiseram guardar memória. Os perfis também podem ser encarados como exemplos de uma relação bem-sucedida entre texto e experiência individual.

    Otto Lara Resende (1922-1992) é sintético, capacidade própria dos jornalistas de seu tempo. Paulo Mendes Campos (1922-1991) expõe com delicadeza a vivência com amigos, recorrendo freqüentemente ao lirismo e a enredos cujos protagonistas enternecem o leitor com atitudes amáveis, arrebatadoras. Fernando Sabino (1923-2004) expressa uma incontestável verve autobiográfica. Hélio Pellegrino (1924-1988), como bom psicanalista, faz retratos reflexivos, deixando pouco espaço para a sua aparição.

    Passagens insólitas e engraçadas compõem os perfis. Em relação à geração literária mais velha, todos demonstram reverência. A preservação de uma memória individual e coletiva também se manifesta nos relatos de encontros, lembranças e entrevistas com músicos, políticos, pintores, arquitetos, homens públicos: Jorge Amado, Drummond, Borjalo, Djanira, Jango, Carlos Lacerda, Pedro Nava, Tancredo Neves, Oscar Niemeyer e Juscelino Kubitschek, entre outros.

    São pessoas de orientações políticas diversas, e o modo tolerante, embora distinto, de lidar com tais diferenças é uma das principais características dos quatro escritores. Otto Lara Resende enfatiza as qualidades de seus personagens. Chega a discordar de algumas posições, mas compõe textos sem inclinação ideológica. Bem ao modo mineiro, é autenticamente conciliador. No perfil de Guimarães Rosa, Otto transita das relações pessoais para a análise do processo de criação do autor de Grande Sertão: veredas com a mesma destreza com que narra detalhes da personalidade e as manias de Rosa.

    Paulo Mendes Campos escreveu diferentes tipos de perfil, como entrevistas, listas de preferências, diálogos entre personagens fictícios, descrição de espaços, crítica literária e reunião de frases célebres. Conta histórias de pessoas sem sobrepor os fatos de sua própria vida. O texto parece objetivo, mas é composto com a mais intensa subjetividade. Merece atenção o perfil comovente de Stanislaw Ponte Preta, pseudônimo de Sérgio Porto. Entre informações sobre a vida e a origem do humorista, Paulo insere duas pequenas biografias de personagens criadas pelo amigo: os lendários Tia Zulmira e Primo Altamirando.

    A coletânea Gente (publicada em duas partes, em 1975) traz crônicas de Fernando Sabino sobre personalidades de destaque nas letras, nas artes, na música e nos esportes. Segue três direções: a do sentido mais autêntico dos perfis ou evocações, a autobiografia e a ficção. Mas há grande entrelaçamento entre a memória pessoal e o conteúdo ficcional. Ora observamos sutis recriações das referências pessoais de Fernando, ora temos a “voz” do biografado em frases recortadas pelo autor, ou ainda um procedimento semelhante ao de Otto e Paulo: determinada época é mapeada com situações precisamente encaixadas. O perfil de Rubem Braga é enxuto, mas apresenta algumas máximas do “Urso”, dos tempos vividos ao lado de Sabino.

    Hélio Pellegrino escreveu poucos perfis. Alguns estão em A burrice do demônio (1988); outros, dispersos em jornais. Hélio segue o mesmo estilo em todos os seus escritos: de modo apaixonado, levanta um raciocínio filosófico, tratando de um tema polêmico ou de grande repercussão no momento: a morte, a ditadura, a tortura, e assuntos agradáveis, como a amizade, a lealdade e o amor ao próximo. Escreveu para estabelecer reflexões, instigar discussões e concluir, aproximando-se do ensaio. Seus perfis têm como pano de fundo o questionamento dos valores dos biografados, seja o humor ou o terror, numa mistura de anarquismo e lirismo.

    “Lembrança de Mário de Andrade” é um dos poucos casos em que Hélio comete um “deslize autobiográfico”. É um relato emocionado das vivências literárias ao lado dos três amigos, que Hélio rememora provavelmente para celebrar o aniversário de Mário. A recordação do amigo e conselheiro é precisa. O escritor mineiro define um modo generoso de interação das diferentes gerações, graças à necessidade mútua de “servir ao futuro”.

    O exame dos perfis revela a personalidade dos quatro mineiros, com suas manias e seu bom humor. Mas o que se pode perceber nitidamente é o desejo incontido de explicação, que é a força vital dos perfis. A pluralidade caracteriza uma visão de mundo, provavelmente de acordo com o ideal de humanidade que esses autores desenvolveram.

    Fernando Sabino escreve sobre Rubem Braga

    Sabiá da crônica


    Deixei correr algum tempo para confirmar de público: é verdade, Rubem Braga completou mesmo setenta anos este mês, conforme os jornais noticiaram. Ele parecia não querer que se tocasse no assunto, mas já que todo mundo falou, eu não poderia me calar. Antes que ele partisse para o esconderijo onde se refugiou, escapando às comemorações com que o ameaçavam seus amigos e admiradores, alguém lhe perguntou:

    – Por que você não aceita logo as homenagens, como Carlos Drummond ao fazer oitenta anos?
    Ele respondeu convicto:
    – Quando fizer oitenta, eu aceito.

    Não lhe custará chegar lá. Para quem desde os vinte anos se habituou a aceitar de bom grado e coração à larga sua velhice quando ela vier, chamando a si mesmo de “velho Braga”, o destino reserva uma serena longevidade, que ele atingirá sabiamente, tocando sem pressa a vida para frente, como vem fazendo até aqui.

    A antecedência com que escrevo esta coluna não me permite comemorar efemérides. Tenho, além do mais, certa ojeriza por esta palavra (e também pela palavra ojeriza). Mas como já disse o próprio Braga, ultimamente têm passado muitos anos, e não posso deixar que passem mais dez anos antes de prestar também minha homenagem ao velho amigo, companheiro diurno e noturno, até mesmo sócio em mais de um movimentado (e bem-sucedido) empreendimento. E que vem a ser, como se sabe, o maior cronista da literatura brasileira, desde Pero Vaz de Caminha, por ele atualizado, até o que assina estas linhas, seu humilde discípulo.

    Muito tenho aprendido na minha longa convivência com ele – pelo que escreve, pelo que diz, pelo que deixa de dizer. E até por uma ou outra de suas inesperadas reações que, mesmo aparentemente intempestivas, são em geral pertinentes e de justificada procedência. Cheguei a colher ensinamentos sábios, como no tempo em que ficamos sócios na Editora do Autor e depois na Editora Sabiá.

    Ao vendermos esta última, um dia lhe fiz ver que precisávamos juntar nossas cabeças para solucionar certos problemas que haviam ficado esquecidos no fundo da gaveta de nossas melhores intenções.

    – Como por exemplo? – ele perguntou, precavido.
    – Por exemplo: aquele livro do fulano. Ele acabou morrendo e não chegamos a reeditar, embora nos tivesse cedido o direito. Ou aquela antologia poética, que pretendíamos refazer. A gente acaba também morrendo e estes problemas ficam aí, por resolver.
    Ele tirou os óculos, ficou me olhando muito sério, e resmungou, afinal:
    – Na vida a gente não precisa resolver todos os problemas não: pode perfeitamente morrer deixando alguns por resolver. Ou se resolvem por si mesmo ou nunca se resolverão.

    (Escrito em 1983. Publicado com o título “A inefável poesia do cronista”, in: Gente, Rio de Janeiro: Record, 1996; republicado, com o título que consta nesta versão acima, em Livro aberto. Rio de Janeiro: Record, 2001).

    Hélio Pellegrino escreve sobre Mário de Andrade

    Lembrança de Mário de Andrade

    Conheci Mário de Andrade, pessoalmente, por volta de março de 1943. Fernando Sabino, que no ano anterior havia publicado seu primeiro livro, de contos, já se correspondia com ele. As cartas de Mário eram uma festa, e constituíam propriedade grupal, coletiva. Nos reuníamos na praça da Liberdade, em Belo Horizonte, para ler e discutir o texto, esmiuçando-o, revirando-o, interpretando-o em todas as direções. Com isto, Mário de Andrade tornou-se para nós, antes que o conhecêssemos, um amigo íntimo, querido – e perfeito. Ele nos abria a cabeça e nós, em contrapartida, lhe abríamos o inquieto coração de moços.

    Em princípios de 1943, a Fume (Federação Universitária Mineira de Esportes), num tempo em que tabagismo e atletismo ainda não eram incompatíveis, organizou uma embaixada para disputar, em São Paulo, uma olimpíada estudantil. Fernando Sabino e eu, a pretexto de dar ao evento cobertura de imprensa, viajamos com destino a Mário de Andrade, pela Central do Brasil, com passe ferroviário gratuito, fornecido pelo romancista Guilhermino Cesar. Desembarcamos no endereço certo: rua Lopes Chaves, 546. Recebeu-nos, à porta, o próprio Mário. Abrindo os braços e o generoso sorriso, que ficou célebre, pediu-nos: “Não me contem quem é o Fernando, quem é o Hélio. Quero adivinhar.” Olhou, olhou, dirigiu-se para o Fernando, abraçou-o e disse convicto: “Você não pode deixar de ser o Fernando.” (...)

    As cartas enviadas por Mário de Andrade ao grupo mineiro (...) fazem parte do monumento epistolar que ele endereçou à inteligência brasileira durante mais de duas décadas. É espantosa a vocação para a amizade e para o diálogo, revelada pela correspondência andradina. No que me diz respeito, nenhuma indagação, por mim levantada, ficou sem resposta. Falamos de tudo, das minhas perplexidades, malinconias e entusiasmos, passando pelo acerbo conflito com a família mineira até chegarmos à inquietação literária, aos poemas, próprios e alheios, às sugestões, corrigendas, estímulos e, por fim, ao debate político e ao tema da responsabilidade do artista no “amilhoramento político e social do homem”, brasileiro e universal.

    (Publicado na Folha de S. Paulo em 21 de outubro de 1983, p. 3)

    Paulo Mendes Campos escreve sobre Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto)


    Meu amigo Sérgio Porto

    No Brasil, depois dos sensacionais bilhetinhos, Jânio Quadros cria a confusão com a renúncia. A Copa do Mundo, que Mané Garrincha trouxe do Chile, não pode servir de antídoto contra o esfarelamento do valor do dinheiro. Os militares fazem uma revolução e pouco mais o impossível acontecia: Lacerda e Goulart tentavam uma “frente ampla”.  (...)    

    Foi nessa cultura que floriu o humorismo de Stanislaw Ponte Preta. Ele morreu na primeira hora de 30 de setembro de 1968, no mesmo ano em que seriam assassinados Robert Kennedy e Martin Luther King. Ao sentir-se mal, disse para a empregada: “Estou apagando. Vira o rosto pra lá que eu não quero ver mulher chorando perto de mim.”   (...)

    O estudante de Arquitetura não passou do terceiro ano, depois do ginásio no Ottati e pré-vestibular no Juruena. Entrou para o Banco do Brasil e começou a beliscar no jornalismo, escrevendo crítica de cinema no Jornal do Povo, onde ficava de ouvido atento às piadas do Barão de Itararé. (...)

    Éramos um bando de pedestres, forçados a ficar na cidade sem condução depois do trabalho. Sentávamos praça num bar da Esplanada do Castelo até que o uísque do mesmo de honesto passava a duvidoso e de duvidoso passava a intolerável. Mudávamos de bar. (...) Com o primeiro desafogo do transporte, ainda podíamos chegar, depois de uma passada pelo Recreio velho, aos bares mais cômodos de Copacabana, o Maxim’s, o Michel, o Farolito. (...)

    O humorista começou a surgir no Comício, um semanário boêmio e descontraído (...). Mas foi no Diário Carioca, também boêmio e impagável, que nasceu Stanislaw Ponte Preta, que tem raízes no Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade, e em sugestões de Lúcio Rangel e do pintor Santa Rosa. (...) Em 1955 Stanislaw Ponte Preta está na Última Hora, onde criou suas personagens e ficou famoso de um mês para o outro. (...)

    Tia Zulmira é uma dessas criaturas que acontecem: saiu de Vila Isabel, onde nasceu, por não achar nada bonito o monumento a Noel Rosa. Passou anos e anos em Paris, dividindo quase o seu tempo entre o Follies Bergère, onde era vedete, e a Sorbonne, onde era um crânio. Casou-se várias vezes, deslumbrou a Europa, foi correspondente do Times na Jamaica, colaborou com Madame Curie (...). Vivia, já velha mas sempre sapiente, num casarão da Boca do Mato, fazendo pastéis que um sobrinho vendia na estação do Méier. (...)

    Primo Altamirando também ficou logo famoso em todo o Brasil (...). Ainda de fraldas, praticou todas as maldades que as crianças costumam fazer dos 10 aos 15 anos, como, por exemplo, botar o canarinho belga no liquidificador. (...). Pioneiro de plantação de maconha no Rio. Vivendo do dinheiro de algumas velhotas, inimigo de todos os códigos, considerava-se um homem realizado. E ao saber de pesquisas no campo da fecundação em laboratório, dizia: “Por mais eficaz que seja o método novo de fazer criança, a turma jamais abandonará o antigo.”

    (Publicado em Murais de Vinicius e outros perfis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000)


    Otto Lara Resende escreve sobre João Guimarães Rosa

    O biscoito que virou pirâmide

    Desde que apareceu Sagarana, tive interesse pela vida e pelo convívio de João Guimarães Rosa, que já conhecia de nome, por circunstâncias ligadas à nossa condição de mineiros. Rosa foi aluno de meu pai, em São João del Rei, e guardou desse tempo permanente lembrança. (...)

    João Guimarães Rosa gabava-se de escrever de pé, em seu apartamento na rua Francisco Otaviano. Gostava muito de lápis, de cuja ponta cuidava com esmero. Antes de começar a escrever, dizia que era preciso “limpar o aparelho”. Assim chamava o trabalho prévio de rabiscar, escrever uma ou outra palavra, desenhar garatujas, até que o “santo” baixava e se punha a escrever febrilmente.  (...)

    Para ser veraz, Rosa gostava de tudo que escrevia. E gostava de elogios. Guardava com carinho os artigos laudatórios. Os que lhe eram contrários, ou lhe faziam restrições, guardava de cabeça para baixo. Era o castigo que impunha aos que não apreciavam a sua obra... E nunca mais os relia.  (...)

    Guimarães Rosa aconselhava a todo escritor que tivesse o seu cahier d’écrivain, como é costume entre os franceses. (...) Grande sertão: veredas foi precedido de vasto material de pesquisa, de garimpagem na memória e de consultas sucessivas e minuciosas a pessoas de sua confiança, a começar por seu pai.  (...)

    Grande sertão: veredas, a crer na conversa do próprio autor, era pra ser apenas um conto – e não dos mais longos. Numa sexta-feira, quando ainda trabalhava se não me engano nas histórias de Corpo de baile, Rosa pôs-se a escrever o tal pequeno conto. Tinha a narrativa elaborada, era só “copiá-la”. Seria mais um biscoito, a sair prontinho de seu forno doméstico. Começou a escrever e não parou mais. Entrou num delírio que prosseguiu pela noite adentro, até o sábado. Só parou obrigado pelo cansaço ou pela necessidade. Escreveu todo o sábado. Entrou pela noite de sábado para domingo. Trabalhou o domingo inteiro. Até segunda-feira, quando tinha delineado o romance fluvial, a sua pirâmide.

    As duas palavras, biscoito e pirâmide, estão associadas a um dito que ele costumava passar aos amigos: “Não faça biscoitos, faça pirâmides”. Com isso, desaconselhava o trabalho dispersivo dos jornais, a crônica, ou mesmo o pequeno conto. Sustentava que o escritor devia concentrar-se, condensar-se, viver monacalmente para a sua obra, preparar-se longamente para ela e pôr-se ao trabalho sem hesitação ou fadiga. Grande sertão: veredas exauriu-o fisicamente. O “delírio” criador continuou dias seguidos, até a conclusão do romance.  (...)

    Publicado, Grande sertão lhe dava alegria e orgulho. Gostava das ilustrações, da impressão, de tudo. Vi-o pegar o livrão mais de uma vez: “Olhe, fica em pé” – dizia ele, com prazer sensual do livro volumoso, sua pirâmide.  (...)

    (Escrito em 1981 para a revista Status. Republicado em O príncipe e o sabiá. São Paulo: Companhia das Letras/Instituto Moreira Salles, 1994).


    Gabriela Kvacek Betella é Doutora em Teoria Literária e Literatura comparada pela USP, professora do Centro Universitário Assunção e autora de Narradores de Machado de Assis (EDUSP/NANKIM, 2007).

    Saiba mais - Bibliografia:


    CAMPOS, Paulo Mendes. Murais de Vinicius e outros perfis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

    PELLEGRINO, Hélio. Lucidez embriagada. Org. Antonia Pellegrino. São Paulo: Planeta, 2004.

    RESENDE, Otto Lara. O príncipe e o sabiá. São Paulo: Companhia das Letras/IMS, 1994.

    SABINO, Fernando. Gente. Rio de Janeiro: Record, 1996.