Inventário de cicatrizes

Pablo Rodríguez Jiménez

  • A conquista espanhola em pintura do século XIXUm dos fatos mais dramáticos e traumáticos da conquista espanhola do século XVI foi a ostensiva diminuição da população indígena americana. A violência dos conquistadores, as epidemias e os sistemas de trabalho obrigatório afetaram em todos os sentidos as ricas e complexas populações nativas.

     Ao longo do século XX, historiadores reconstruíram e explicaram esse fato, definido como verdadeira “catástrofe demográfica”. Além do extermínio, os índios também empobreceram e precisaram modificar suas formas de organização e governo.

    As fontes tradicionalmente utilizadas para analisar esse acontecimento se limitaram quase sempre a crônicas e registros oficiais locais, documentos que pouco refletiam as experiências vividas pelos indígenas.

     Nos últimos anos, entretanto, no México, no Peru, no Chile e na Colômbia, pesquisadores prestaram atenção a um tipo de documento escrito até então despercebido: o testamento. Trata-se de um documento excepcional, pois se supunha que eles só eram feitos pelos espanhóis. Surpreendentemente, nos arquivos das principais cidades hispano-americanas foram encontrados centenas de testamentos de indígenas, cuja leitura revela o caos do mundo em que tocou a eles viver e os esforços de integração com a sociedade colonial em construção.

    O testamento é documento de origem medieval, cujo propósito fundamental era uma confissão de fé cristã. Nele, a pessoa se preparava para a morte e deixava sua alma em paz com Deus. Com o tempo, os testamentos incluíram um fato menos espiritual – a relação de bens materiais da pessoa e uma pequena descrição genealógica, com os nomes dos pais, filhos e netos. No momento da conquista e da colonização, os testamentos tiveram vasta difusão no mundo cristão europeu. É provável que os primeiros peninsulares a chegar à América os tenham trazido como parte de sua cultura. E foi no complexo processo de evangelização e dominação que unira espanhóis e indígenas que estes os conheceram. Os testamentos foram regidos pelos indígenas que se converteram ao cristianismo e os que mais se integraram ao mundo dos espanhóis. Considerando que um testamento é uma pequena biografia de um indivíduo, nos dos indígenas conhecemos de perto centenas de vidas participando individualmente de uma experiência histórica única.

    A Coroa chegou a conceber uma ideia platônica de suas colônias, organizadas em torno de povoados de índios e cidades espanholas, sem contato entre eles

    A redação desses testamentos supôs muitas vezes o emprego de tradutores das línguas locais que os indígenas falavam. Mesmo no caso do México, muitos testamentos foram escritos em nahuatl e otomi (línguas indígenas locais). No caso colombiano, foi necessário o auxílio de pessoas que entendiam o muisca, a língua dos indígenas do centro do país.

    No Arquivo Geral da Nação de Bogotá encontramos mais de uma centena de testamentos de indígenas e quantidade similar na vizinha cidade de Tunja.  Ao contrário do que se poderia pensar, os testamentos não foram feitos somente pelos caciques, mas também por indígenas que tinham posses medianas, inclusive alguns paupérrimos, fato que revela as condições diversas da população indígena antes e depois da conquista. Pelo menos 60% desses testamentos foram feitos pelas mulheres, um indicativo do papel que elas tiveram na estruturação da nova sociedade. Um efeito da conquista foi o traslado de numerosos indígenas de seus povoados para as cidades espanholas recém-fundadas. Quer para construírem igrejas, prédios do governo, moradias, caminhos e pontes, quer para trabalharem como empregados domésticos. Os indígenas que fizeram testamento foram os que se estabeleceram nas cidades. Em certo sentido, poderíamos considerá-los indígenas urbanos. Tanto que poucas vezes os escribas se deslocaram até os povoados indígenas para elaborar o testamento de algum ancião ou doente. Todos foram batizados Maria, Juana, Catalina, Isabel, Leonor, Luis, Esteban, Juan ou Pablo, como era costume entre os cristãos. Seus sobrenomes eram os de seus povoados e ofícios. Nomes como Catalina Cajicá (cidade na Colômbia) e Luis Marceneiro eram comuns, e até hoje são usados por populares.

    Fatos reveladores dos testamentos dos indígenas foram a migração e o deslocamento involuntários. Em suas campanhas, os conquistadores os levavam junto para que carregassem seus apetrechos, cozinhassem e os servissem. É surpreendente, por exemplo, que em Bogotá tivessem chegado indígenas mexicas, incas e quéchuas. Até então não se sabia que tantos indígenas tivessem acompanhado os conquistadores em suas expedições. Mas também devemos pensar nas grandes distâncias geográficas que percorreram, com o custo do falecimento de muitos. Outro fato impactante foi que muitos indígenas do entorno das cidades espanholas foram levados pelos encomenderos, a quem a Coroa dava posse sobre um ou vários povos indígenas para que os servissem. A principal população das cidades espanholas dos séculos XVI e XVII era indígena. Muitos residiam nas casas dos espanhóis, que chegavam a ter até 30 ou 40 índios como serviçais. Com certeza, as mulheres eram a maioria, e os indígenas se estabeleceram nos bairros ao redor das residências dos espanhóis. Possuíam lotes, por eles comprados ou doados por seus amos, onde construíram choupanas circulares, semelhantes às que tinham nos povoados de origem.

     Os testamentos não só descreveram essas casas como serviram para afirmar seu direito sobre elas. Também foram usados como prova para a Justiça quando a posse esteve em perigo. Chama a atenção que a Coroa espanhola tenha chegado a conceber uma ideia peculiar e platônica de suas colônias, organizadas em torno de povoados de índios e cidades espanholas, sem contato entre eles. Os testamentos e outros documentos mostram como estava equivocada a Coroa, devido aos fortes laços que ligaram esses dois universos.

    Impressiona a profunda devoção que os indígenas demonstravam pelas santidades cristãs, e pode haver relação entre elas e as imagens pré-hispânicas

                A evangelização comandada por freis franciscanos, agostinianos e dominicanos deu seus frutos entre os indígenas arraigados nas cidades e próximos aos conventos. Impressiona a profunda devoção que demonstravam pelas santidades cristãs. Não estão errados os que levantaram a possível relação entre as imagens pré-hispânicas e as de santos e santas cristãos. Nos testamentos aparece claramente o sentido de pertencimento dos indígenas às irmandades e confrarias de culto cristão. Normalmente, um espanhol da época pertencia a uma confraria. Os indígenas pertenciam a quatro ou cinco confrarias. Cada irmandade costumava render culto a um santo ou santa. Parte importante de sua atividade era comemorar seu dia e acompanhar quem fazia parte dela na sua doença e no seu sepultamento. Esse forte sentimento de pertencer às irmandades nos faz pensar que os indígenas encontraram nelas um poderoso apoio num mundo que era completamente adverso. Esse abraço dado pelos indígenas à nova fé caminhou, por vários séculos, de mãos dadas com suas antigas crenças.

    Nos testamentos dos indígenas colombianos, bem como nos das demais regiões da América hispânica, emerge com especial importância a miscigenação. Elemento substancial da formação da sociedade colonial, a miscigenação surgiu muito cedo. As mulheres indígenas contam em testamento os relacionamentos com seus amos e a prole que com eles conceberam. Os mestiços, filhos da conquista, tiveram vidas diferentes. Poucos foram reconhecidos pelos pais e receberam algum legado testamental. A maioria, como todos os filhos nascidos ilegítimos, cresceu ao lado de suas mães e de suas famílias indígenas. Desconhecíamos até agora o papel ativo desempenhado pelas mulheres indígenas na nascente sociedade colonial. É certo que muitas viveram aprisionadas no serviço doméstico. Porém, muitas outras se empregaram no comércio varejista, percorrendo cidades e centros mineiros. Outras vendiam diferentes produtos em lojas e feiras. Houve também as que administravam alguma hospedaria, onde indígenas, mestiços e mesmo espanhóis pobres faziam as refeições. Havia ainda as que emprestavam pequenas quantias em dinheiro para obter alguma renda. O desempenho econômico das mulheres indígenas resultou fundamental para o sustento das suas famílias. E foi esta família o suporte dos mais fracos, dos que sucumbiam ao licor ou ao jogo, como falsa escapatória da adversa sociedade colonial. Por causa do momento traumático que viviam, as mães indígenas legavam a seus filhos sua casa, propriedade única. Havia uma cláusula obrigatória: nunca poderiam vendê-la. Como se quisessem garantir para eles um teto, um refúgio mínimo.

    Ao voltarem o olhar para os testamentos indígenas cinco séculos depois de iniciada a catástrofe demográfica nas Américas, pesquisadores fincam as bases, fornecem argumentos para uma compreensão maior do drama que atingiu milhões de pessoas. Foi tudo muito mais grave do que se imaginava.

     

     

     

    Pablo Rodríguez Jiménez é professor da Universidade Nacional da Colômbia em Bogotá e autor de Testamentos Indígenas de Santafé de Bogotá, Siglos XVI-XVII. Academia Colombiana de História, 2002.

     

     

    Saiba Mais

    RODRÍGUEZ, Pablo. “Testamentos de indígenas americanos, siglos XVI-XVII”, RevistadeHistória, nº 154, 1º semestre de 2006. São Paulo: Departamento de História, Universidade de São Paulo.

    ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses Indígenas. Identidade e cultura nas aldeias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.

    RETAMAL, Julio. Testamentos de indios en Chile colonial, 1564-1801. Santiago: Universidad Andrés Bello, 2000.

    ROJAS, Teresa, y otros. Vidas y bienes olvidados: testamentos indígenas novohispanos. 3 vols. México: Ciesas, 1999.