Jaime Benchimol

Revista de Historia

  • O historiador Jaime Benchimol já fez de tudo um pouco: estudou movimentos camponeses, militou contra a ditadura, foi preso, se interessou por arquitetura e até viajou pela Europa fabricando pipas. Ele diz que sempre teve fascínio “pela grande angular, pela visão abrangente”.

    Talvez essa curiosidade desmedida tenha feito com que Benchimol se especializasse em um campo relativamente ignorado pela historiografia. Hoje, ele é um dos maiores historiadores da ciência no Brasil.

    O interesse pela ciência surgiu quando Benchimol preparava sua dissertação de mestrado, que acabaria originando o livro “Pereira Passos: um Haussmann tropical”. O estudo tratava das reformas urbanas e higienistas no Rio de Janeiro do começo do século XX. De tanto ler sobre Oswaldo Cruz e Carlos Chagas, palavras estranhas como “protozoário” e “tripanossomo” passaram a fazer parte do seu vocabulário.

    Atualmente, Benchimol é o editor científico da revista “Manguinhos”, publicação trimestral da Fundação Oswaldo Cruz sobre historia, ciência e saúde. Ele acredita ser fundamental a interação entre esses campos de conhecimento:

    - Hoje, não basta formar alunos com consciência crítica, como nos anos 1960. É preciso tornar as ciências acessíveis. Elas são fundamentais para entender o nosso mundo.

  •  Revista de História – Como foi sua formação?

    Jaime Benchimol – Eu me formei na UFF, em História. A minha primeira experiência de pesquisa foi um projeto sobre história da agricultura no Brasil, que contava com historiadores como Francisco José Calazans Falcon e Maria Yedda Leite Linhares. Depois, comecei meu mestrado na área de planejamento urbano, escolha determinada por uma certa militância na área de trabalho em favelas. Eu já tinha militado em outras organizações e na época da luta armada, cheguei a ser preso duas vezes. Mas essa experiência de militância tardia nas favelas foi muito instrutiva.

    RH – Como surgiu seu interesse pela História da Ciência?

    JB – Minha dissertação de mestrado foi sobre as reformas urbanas de Pereira Passos no Rio de Janeiro. Nessa intervenção, várias casas antigas foram demolidas para dar lugar às novas e grandes avenidas. Foi um processo violento de substituição de ocupantes de determinadas áreas da cidade. E a medicina desempenhou um papel muito importante nesse processo. O plano de intervenção na cidade se legitimou principalmente por um discurso médico higienista, calcado ainda na teoria dos miasmas, e que enxergava nos componentes da estrutura urbana e nos componentes naturais da cidade - morros, pântanos - os fatores geradores da insalubridade urbana, das epidemias. Mas, na verdade, quando esse projeto foi implementado durante o governo de Rodrigues Alves, esse paradigma médico já tinha caducado completamente. Quando me dei conta, já estava mergulhado nessas questões.

    RH – Mas seu interesse inicial era mais voltado para o urbanismo, não?

    JB – Eu vivi um período em que se apostou muito no potencial das organizações comunitárias urbanas. Tanto associações de moradores do asfalto, como das favelas. E elas cumpriam um papel importante, pois tiveram a capacidade de influenciar a implementação de políticas públicas pelo Estado. Por uma infelicidade da nossa formação social, não só as muitas antigas lideranças traíram seus compromissos com os movimentos sociais - como a gente está vendo agora - mas, também o banditismo tomou uma dimensão muito grande no Rio. Naquela época o tráfico não tinha essa presença que tem hoje. Mas a vivência do arquivo também pesou para me levar para esse campo da História Urbana. Era uma época de ressurgimento do interesse pela matéria, que chegava às faculdades de História. Muitas instituições - não só o Arquivo da Cidade, onde eu trabalhava  - começaram a promover cursos relacionados a questões urbanas. Então, a gente promoveu passeios pelo centro da cidade mostrando o que permaneceu, o que mudou... Vivíamos fotografando o que tinha restado do Rio antigo. Logo depois, ganhei uma bolsa de um programa de intercâmbio entre a Itália e os países do Terceiro Mundo, que promovia um curso de restauro de monumentos. O barato era que todo fim de semana a gente embarcava em ônibus e ia conhecer as cidades italianas. E todas são monumentos! Eu já tinha feito o mestrado em planejamento urbano, então, as minhas afinidades com arquitetura aumentaram.

  • RH – E como era a vida no exterior?

    Eu morava em uma casa com vários sul-americanos. Vivíamos numa dureza muito grande. No Brasil, eu fazia uns móbiles de pipas com rabiola e tudo, e levei vários para vender. Já na Itália, encontrei um sujeito que exportava pipas para a Europa inteira como decoração de parede. Ele perguntou: “você sabe fazer pipa?”. Eu sabia. Ele encomendou centenas. Então, a nossa casa virou um centro de fabricação de pipas. Semana a semana, vinha a Fiorino do cara e saía lotada. Com esse dinheiro, todos nós viajamos uns dois ou três meses pela Europa. Depois, voltei para o Brasil.

    RH – E a sua pesquisa? Na época em que saiu, todo mundo ficava correndo atrás. Virou um clássico, imediatamente se tornou uma referência na comunidade estudiosa. Por que Pereira Passos: um Haussmann tropical causou tanto interesse?

    JB – Acho que eu produzi uma visão abrangente. Porque, na verdade, o relato começa com a vinda da Corte portuguesa e termina com as reformas urbanas empreendidas pelo prefeito Pereira Passos no Rio de Janeiro (1902-1906). Tive acesso a alguns trabalhos bons que vinham sendo feitos. Meu interesse sempre foi pela “grande angular”. Acabei fazendo uma construção feliz, usando essa grande angular – quer dizer, pegando vários aspectos.

    RH – Qual é a idéia de associar o Barão de Haussmann à Pereira Passos?

    JB – O Barão de Haussmann foi o grande modelo desses reformadores urbanos. Ele foi prefeito de Paris na época do IIº Império, de 1853 a 1870, e reestruturou a cidade. Foi a primeira grande intervenção urbana, que serviu de modelo para todas as intervenções que depois se sucederam na Europa. A lógica era a seguinte: demolia-se casas antigas para abrir bulevares, construir praças. É evidente que o Pereira Passos foi o Haussmann tropical. Se não houvesse essa reforma na zona central do Rio de Janeiro, a cidade seria muito parecida com Salvador até hoje: com o centro muito barroco, popular e habitado.

  • RH – E hoje? As reformas empreendidas pelo atual prefeito do Rio de Janeiro possuem semelhança com as obras e o discurso higienista de Pereira Passos?

    JB – Há uma diferença abissal entre nosso prefeito e Pereira Passos. Naquela época, as coisas eram feitas para durar. E atualmente, o que se faz dura dois, três anos e vira lixo. São intervenções para satisfazer necessidades muito imediatas e que deveriam ser acompanhadas por uma política de manutenção, que normalmente não existe. Em termos de política de saúde estamos muito mal servidos. Mas, ainda sim - eu não sei se é porque eu trabalho na Fiocruz e estou tão impregnado de História da Saúde Pública -, acho que existe um saldo histórico importante. Não no campo da assistência médica, que é um desastre total. Imagine o cenário se algum dia, a gente tiver que lidar com uma doença com taxa elevada de mortalidade, altamente contagiosa, nos hospitais públicos que funcionam dessa forma vergonhosa. Mas, mesmo assim, tenho muito respeito pela saúde pública brasileira. E não estou falando dos seus dirigentes, necessariamente, estou falando dessa rede vasta e consistente de bons profissionais.

    RH – Foi essa ligação entre história urbana e história da ciência que projetou seu trabalho e fez você, de certo modo, migrar para a área de saúde?

    JB – Com certeza. A partir dos anos 70, houve o afloramento de uma corrente historiográfica ligada à medicina social. Uma produção feita por sociólogos e historiadores comprometidos com o projeto de medicina social, engajados com a reforma das ações públicas do Ministério da Saúde. Foi a época em que as ações do ministério buscavam abraçar as comunidades. Essa produção historiográfica começou a desbravar um campo, que até então era entregue, principalmente, aos médicos historiadores.

    RH – Houve conflitos entre cientistas e historiadores da ciência?

    JB – Houve. Em primeiro lugar, os cientistas nos viam como um grupo que roubava recursos que deveriam ir para as pesquisas médicas. Não se imaginava que um historiador pudesse ter, com relação ao seu objeto, a mesma preocupação, o mesmo cuidado de execução, de método, de técnica, de produto, que tem um cientista em relação a sua prática. Em segundo lugar,a maioria deles tinham - e ainda têm - uma visão utilitária da História. Para eles, a História serve “para enfeitar o bolo”, que são os projetos que eles querem vender. Ela entra, quando muito, como um prefácio de um livro científico. Mas eu acho, muitas vezes, que a gente tem que cumprir mesmo esse papel: servir como mediador entre a comunidade científica e o grande público.

  • RH – E agora?

    JB – Isso está mudando. Às vezes, médicos, astrônomos ou matemáticos se chocam com os historiadores pesquisando seus temas, mesmo sem conhecer direito a medicina, a astronomia, a física. É uma questão complicada, pois precisamos conquistar o mínimo de familiaridade a respeito da linguagem daquele campo de conhecimento com o qual vamos interagir. E a nossa tradição humanista retórica, qualitativa, avessa ao quantitativo, dificulta, no campo das Ciências Humanas. É um obstáculo.

    RH – Você se vê tentado a fazer um curso de medicina?

    JB – Não necessariamente, mas, agora mesmo, ganhei um conhecimento razoável a respeito de um assunto incomum aos historiadores: mosquito. É preciso ler os trabalhos científicos para saber onde o galo canta. Até porque o historiador muitas vezes se sente atraído pelas controvérsias. Então, é preciso ler muito, para analisar esses grandes personagens, como Oswaldo Cruz, recolocá-los no seu tempo e mostrar o que eles têm de forte e de fraco: o que eles produziram de acertos e de erros. E as polêmicas em que eles se envolveram, provoca, muitas vezes, uma certa reação. Especialmente quando você mexe com certas vacas sagradas. A doença de Chagas continua sendo a concentradora das grandes verbas de pesquisa e ele objeto de um culto muito forte. Certas produções a respeito de Chagas desencadeiam, ainda hoje, respostas muito furiosas. Tem gente acusada de ser desrespeitosa com as tradições, de não ser nacionalista.

    RH – Mas, o que se reavaliou em relação ao Chagas que teria motivado polêmicas?

    JB – Na época, a Doença do Sono, que tinha um efeito devastador na África, era uma descoberta recente. A doença de Chagas foi a segunda tripanossomíase conhecida. E ele entregou à comunidade científica um pacote fechado: descrevia o parasita, o hospedeiro intermediário, a síndrome clínica. Estava tudo pronto. Dez anos depois, nos anos 1920, Oswaldo Cruz se utilizou de mais retórica do que de fatos a respeito do alcance epidemiológico dessa doença. E transformou-a na tripanossomíase americana, uma doença do continente inteiro. Começou um ciclo das grandes expedições para mapear a ocorrência da doença de Chagas nas zonas interioranas. Concluiu-se que Chagas havia se enganado ao considerar que o bócio, por exemplo, era um sintoma da doença. Então, muitas evidências que ele tinha de sua ocorrência eram equivocadas. Foi preciso que Chagas voltasse à bancada do laboratório e que outros médicos procurassem novas evidências. Quando, nos anos 30, Salvador Mazza, na Argentina, reconhece o sinal de Romaña como uma evidência da doença de Chagas, ela volta a ser reconhecida em toda parte. E como a grande endemia do continente americano. Discutir o fato de Chagas ter cometido erros e acertos é exatamente o que o torna um personagem interessante, exatamente o que faz com que a conquista dele tenha sido tão difícil. Mas isso causa reações muito fortes.

  • RH – Você tem um exemplo atual?

    JB – Acabei de orientar uma dissertação super interessante sobre pragas agrícolas. Os cafezais, nos anos 20, foram acometidos por uma doença, uma praga que quase colocou de joelhos a economia cafeeira. É uma coisa que tem uma relevância econômica e social tremenda. E esse campo, dos estudos aplicados à agricultura, é praticamente virgem.

    RH – A atuação profissional de vocês flerta com a interdisciplinaridade. Isso é, de certo modo, um retorno àquela ciência mais erudita, de um conhecimento que não é muito especializado?

    JB – Pela própria matéria do nosso conhecimento, a gente está em uma fronteira, fazendo história dentro da Fiocruz, uma instituição biomédica. No momento venho me dedicando, juntamente com Magali Romero Sá, à edição nova da obra de Adolfo Lutz. O livro que a gente está lançando agora é sobre a história da entomologia médica - que estuda a interação entre insetos e doenças - da qual ele foi um dos fundadores. Eu tive que conversar com entomólogos, abrir livros de entomologia e visitar o departamento de entomologia.

    RH – E como é esse seu projeto de edição dos trabalhos do Lutz?

    JB – Esse é um projeto pesado. Já lançamos uma caixa com quatro livros e, até o final do ano, sairá outra com mais cinco. O Lutz é um sujeito muito singular. Dentre a primeira geração de cientistas daqui, é imbatível. Foi um excelente clínico, bacteriologista, fez estudos fundamentais sobre malária, febre amarela, no campo da entomologia, da helmintologia - que são os parasitas intestinais. Ele publicou muito na Alemanha. A gente reproduz as versões fac-similares dos seus trabalhos, traduz toda a sua produção em alemão para o português. A idéia é que a gente consiga fazer uma obra que seja lida dentro e fora do Brasil Os prefaciadores dão uma visão da relevância da produção específica daquela área para a ciência de hoje. E nós produzimos largas apresentações históricas.

  • RH – Essa é a primeira vez que se promove o encontro da obra técnica com a obra do historiador?
     JB – Acho que desse vulto é o primeiro que fazemos. Há uma experiência em que a COC investiu - inclusive, uma ferramenta fantástica - que são as bibliotecas virtuais. A obra de Carlos Chagas e de Oswaldo Cruz já estão integralmente disponíveis em bibliotecas virtuais, que também trazem o que historiadores, cientistas e cronistas publicaram sobre eles. Agora, inclusive, vamos botar no ar uma vertente dela para crianças. É uma experiência pioneira. O grande problema, sempre, é financiar isso.

    RH – Qual a importância de se colocar o ensino de História da Ciência na formação básica?

    JB – É fundamental. Tem iniciativas bem legais pipocando de várias direções e acho que existe um apoio muito grande a projetos visando a difusão científica. O pessoal do Museu da Vida faz um trabalho fantástico. E outros museus de ciência têm iniciativas promissoras. Agora, o que precisa é esse movimento surgir dentro das escolas. As secretarias e ministérios, e as universidades tem que assumir esse papel.

    RH – Você acha que há instrumentos para se discutir ciência em um colégio, com crianças? Há professores?

    JB – Tudo isso falta, mas eu acho que é preciso. Poucas escolas têm, mesmo pagas... O que tem agora – e que é uma coisa importante, mas corre o risco de se tornar um certo fetiche – é a distribuição de computadores para todas as escolas. Não é suficiente. É preciso ter laboratórios, bons livros-texto, é preciso ter um processo de requalificação dos professores. E na área de Humanas também.

    RH – Mas o que você acha que vai sair de um suposto projeto na área de História da Ciência direcionado para crianças?

    JB – O principal é introduzir nas escolas e universidades a discussão dos grandes desafios que a gente vive cotidianamente: as questões ambientais, os dilemas éticos, as questões médicas e, principalmente, aquilo que ameaça o planeta. O James Lovelock falou que Gaia - a personificação da Terra como deusa - está morrendo e já é irreversível. Às vezes eu chego a acreditar que isso é verdade e não mais para daqui a dez gerações. É um problema para a geração dos meus filhos, que está aí. Mas, como é uma questão facilmente apropriável pela linguagem demagógica, acabamos desaparelhados para uma discussão séria, consistente. Precisamos de um mínimo de ferramentas, que vêm das Ciências Físicas e Naturais. Hoje, a gente se vê às voltas com problemas que são de curto e médio prazo e dizem respeito à sobrevivência da humanidade. Mas a nossa capacidade de intervir saindo desse pântano das questões imediatas - como segurança pública, corrupção, bandidagens - e conseguir enxergar as questões estratégicas tem sido pequena. Nos anos 60 e 70, bastava ter uma consciência das lutas de classe e da exploração capitalista. Hoje isso não é suficiente. Formar gente com capacidade crítica, tanto no ensino médio quanto superior, significa tornar as ciências acessíveis e as pessoas saberem utilizá-las como instrumento de compreensão dos problemas contemporâneos. O Amazonas secou ano passado. A água vai faltar, amigo! São coisas prementes e que ultrapassam essas divisões sectárias de partido. Eu acho que, nesse ponto, estamos muito atrasados. E as Ciências Humanas, as universidades estão muito atrasadas.