Jurandir Freire Costa

  • Mapas por todos os lados. Brasil pelos idos de 1600 à direita. Paris do século XVI à esquerda. Um ambiente para historiador nenhum botar defeito. Com um único e fundamental adendo: estamos em um consultório médico e nosso entrevistado, Jurandir Freire Costa, é psicanalista.

    Professor do Instituto de Medicina Social (IMS) da Uerj, Jurandir é autor de Ordem médica e norma familiar (1979), um livro de referência entre historiadores. De lá para cá, tem participado ativamente da vida social do país em jornais, revistas e livros.

    Estudioso da história da psiquiatria no Brasil, Jurandir também se ocupa de temas como violência, ética e o amor romântico. Esta é sua premissa: “O que a gente sofre mentalmente tem a ver com o que vivemos culturalmente”. Mais recentemente, viu-se obrigado a encarar a centralidade do corpo. E não foi fácil. Afinal, em sua formação médica como psiquiatra, nunca tinha visto sequer um caso de anorexia. De repente, houve uma enxurrada deles. 

    Nesta simpática conversa, falou da sua infância em Pernambuco, do período vivido em Paris, e afirmou ser impossível imaginar a história do Ocidente sem Freud. Para Jurandir, o corpo é o novo maestro. E se por um lado carrega um potencial de liberação, por outro traz o risco da servidão. Ainda assim, ele garante: “É um absurdo dizer que somos mais narcisistas ou egoístas hoje”.

    REVISTA DE HISTÓRIA Colecionar mapas é um hobby?

    JURANDIR FREIRE COSTA Acho lindos esses mapas antigos. Em primeiro lugar, são bonitos mesmo, esteticamente falando. Em segundo, me lembram muito uma máxima estóica de Marco Aurélio: “Logo esquecerás tudo, logo todos te esquecerão”. Não é muito agradável, mas é verdade. Os mapas nos lembram disso: como tudo passa, como imaginamos o mundo de uma maneira parcial, a partir de certa perspectiva, que outros que virão vão corrigir, vão dizer: “Não era assim”. [risos]

    RH Quando chegou a Paris, a cidade ainda estava tomada pelos acontecimentos de 68? 

    JF Completamente. Quando chegamos, em 1970, aquilo ainda estava fresquinho. Paris era uma festa, como disse Hemingway. E foi lá que de fato me formei profissionalmente. Fiz minha residência em Psiquiatria, comecei a trabalhar no atendimento clínico e fiz o mestrado em Etnopsiquiatria na Sorbonne. Logo depois, voltamos para o Brasil.

    RH Veio direto para o Rio?

    JF
    É. Depois da abertura de Geisel. Nessa época, o Instituto de Medicina Social (IMS/Uerj), onde leciono até hoje, estava começando. Entrei na universidade para ser professor de Psiquiatria, mas acabei dando aulas também no mestrado de Medicina Social. Fui um dos primeiros professores do Instituto.

    RH Ordem Médica e Norma Familiar (1979) foi um trabalho feito para o IMS?

    JF Sim. E é um trabalho que faz certa aproximação com a História, não é? O meu objetivo era o seguinte: quando e como começa esse movimento que chamávamos então de “medicalização das famílias”? Quando é que se deu essa expropriação por técnicos da competência dos adultos para criar seus filhos? A idéia era fazer uma genealogia disso no Brasil. E para meu espanto e agradável perplexidade, essa mudança já havia sido muito bem descrita por historiadores e sociólogos brasileiros, dentro da linha de análise dos micropoderes, como Michel Foucault preconizava. 

    RH Gilberto Freyre estaria entre eles?

    JF A meu ver, Gilberto Freyre é um autor conservador do ponto de vista político, mas fez uma coisa monumental: Sobrados e Mocambos. É um trabalho foucaultiano avant la lettre. Ele descreve muito bem a complexa rede de interesses econômicos e políticos que estavam em jogo. Os interesses das grandes corporações inglesas, das grandes famílias senhoriais, das corporações médicas que começavam a se afirmar e, finalmente, a vinda da Corte portuguesa para o Rio. Gilberto Freyre conseguiu traçar um desenho extraordinariamente rico do que resultou disso. 

    RH Como seu livro foi recebido pelos historiadores na época? 

    JF Lembro-me apenas de uma crítica feita na revista Dados (Iuperj), uma publicação de cientistas sociais. O autor apontava inúmeras falhas no trabalho, e ele tinha razão. Bom, isso não me fez desistir. Eu não era historiador. A fidelidade sociológica, antropológica ou histórica, para mim, não era mesmo muito grande. Queria mostrar outra coisa, que ainda hoje procuro: como o imaginário cultural acaba formando e interferindo no funcionamento subjetivo das pessoas.

    RH Esta é uma premissa de seu trabalho?

    JF Com certeza. É uma linha que vem desde a História da Psiquiatria no Brasil (1976). O que a gente sofre mentalmente tem a ver com o que vivemos culturalmente. Sei muito bem que certos quadros psiquiátricos existem nas mais diversas culturas. Agora, a maneira como o sofrimento se organiza, como se dá a relação entre quem cuida e é cuidado, isso varia enormemente e é definitivo no curso do diagnóstico e do tratamento. 

    RH Seria possível imaginar a História sem Freud? 

    JF A história do ocidente europeu, pelo menos, é impossível. Freud teve um impacto enorme nas ciências humanas, na Antropologia, na Sociologia e mesmo em alguns setores da História. E sua influência no cotidiano foi extraordinária. Por exemplo, os aspectos da obra de Freud, digamos, mais fáceis de serem absorvidos – o inconsciente, a sexualidade, o complexo de Édipo – foram tatuados na cultura com uma força imensa. A maneira como os pais educam seus filhos, o modo como encaramos o problema da sexualidade, o jeito como discutimos a liberação sexual, etc. As pessoas são freudianas sem saber.

    RH Quando a dimensão corporal se tornou uma questão? 

    JF A partir dos anos 1980, sobretudo, começou a surgir uma série de problemas clínicos que não existiam antes: o fisiculturismo compulsivo, a bulimia, a obesidade mórbida, a anorexia. Uma extrema obsessão com a aparência física começou a se tornar evidente, forçando o corpo a se exprimir de um modo novo. Na minha formação como psiquiatra, nunca tinha visto um caso de anorexia. De repente, você tem uma enxurrada. Ora, é claro que só poderia ser alguma coisa no imaginário cultural que estava trazendo o corpo para o centro da formação da identidade. 

    RH Como isso se explica?

    JF A hipótese com a qual eu trabalho em O Vestígio e a Aura (2004) é a de que o corpo começou a tomar o lugar de outras instâncias na constituição da identidade. O que eu quero dizer com isso? Antes, quando alguém se perguntava “quem sou eu?”, tinha como resposta: “sou politicamente conservador ou liberal, sou pai, sou mãe, sou católico, sou protestante, sou kardecista, sou comunista, sou socialista etc.”. Quando essas instâncias tradicionais – a política, a religião, a família etc. – que doavam nossas identidades começam a perder o brilho e o peso cultural, o indivíduo vai buscar normas de conduta em outro lugar. A profunda metamorfose das ideologias trouxe o sujeito para si, ou melhor, para essa dimensão de si que é o corpo. Ele está presente nesse cuidado com o check-up, nas tecnologias de scanners e tomografias, nas práticas new age e em religiões como o budismo. E esse reencantamento do corpo tem, por um lado, um potencial de liberação e, por outro, o risco da servidão.

    RH Essa centralidade do corpo também existia em temos passados?

    JF Existia, mas rebatida sobre outras ideologias ou visões de mundo. O corpo era um elemento no reforço ou na composição de uma ideologia. Por exemplo: no racismo, a centralidade do corpo é evidente. O corpo branco, imposto como norma biológica, estética e moral, justificava o modo de vida do europeu, enquanto os outros corpos tornavam patente para o racista a razão do atraso dos demais povos colonizados política, econômica ou culturalmente. A questão dos gêneros também. O corpo estava na pauta dos grandes debates do século XIX sobre as diferenças anatômicas do homem e da mulher. Lembram da chamada “Querela dos Ossos”? Dizia-se que a mulher tinha a bacia muito grande e a cabeça menor que a do homem. Ou seja: ela era feita para procriar, não para participar do espaço público.

    RH Mas não havia patologias como a obesidade e a bulimia?

    JF Não temos registro de que elas tivessem existido com a estridência de agora. Havia, é claro, uma preocupação com a beleza: todas as culturas têm os seus padrões de beleza, seus critérios para se decidir o que é bonito e o que é feio. Neste sentido, é óbvio, não há cultura sem corpo. Não somos anjos desmaterializados. Mas a preocupação com a estética se dava em outros termos e intensidades. As divisões eram muito grosseiras. Ou você era belo ou feio, velho ou jovem. E as regras eram diferentes. Um jovem no século XIX queria parecer velho. Ele deixava a barba crescer, começava a ficar encurvado, engordava um pouco. Se sentisse artrite, maravilha! [risos]

    RH O que mudou?

    JF Agora é o contrário. As ideologias políticas – ou o que restou delas – estão começando a servir de linha auxiliar para o corpo. Dou como exemplo o novo funcionamento do capitalismo. É preciso trabalhar, as empresas têm que ser eficientes e competitivas no mercado, mas desde que você não enfarte, que não perca os cabelos, que não faça uma úlcera por estresse, etc. Observe que as religiões são descritas como “boas” e aceitáveis quando não reprimem o corpo. É o corpo quem comanda, ele é o maestro. O problema então é esse: o corpo a serviço de quê? De si próprio ou de algo que o transcende? Essa é a questão. Quando o corpo começa a ganhar uma autonomia que ele não devia nem podia ter, começam os problemas. 

    RH É o que você chama de “cultura das sensações”?

    JF Sim. Quando lancei mão desse conceito, queria mostrar o porquê dessa proeminência do corpo hoje. Eu opus a idéia de “cultura de sensações” ou “felicidade sensorial” à noção de “cultura de sentimentos” ou “felicidade sentimental”. O fato é que o ideal de felicidade mudou. A noção de família, por exemplo. As relações começaram a ser mais experimentais. Os casamentos se tornaram menos estáveis. E quando as pessoas começam a casar e descasar, isso tem reflexos que nem imaginamos. Desde a idéia de divisão de patrimônio até a formação de uma cultura um pouco niilista, descrente da felicidade dos sentimentos. Pelo menos do sentimento como o romantismo definiu.

    RH Como assim?

    JF As pessoas querem se prevenir contra decepções. O movimento cultural é o de duvidar de que vai dar certo. Ora, se a entrega ao sentimento romântico pode produzir muito sofrimento, a saída é usufruir do meu dia-a-dia, cultivar relações sexuais satisfatórias que não exijam compromisso emocional. Isso fez com que as sucessivas experiências de relacionamento sentimental, como o amor romântico, perdessem grande parte de seu encanto. Na verdade, estamos passando por um período de transição. Vivemos em um mundo dividido entre a “cultura dos sentimentos” e a “cultura das sensações”. Pois ainda temos saudade dessa “época sentimental”. Ela é ainda muito marcante, criou um imaginário cultural extraordinário. A música, a literatura e o cinema são filhos do romantismo amoroso. Hoje em dia, as pessoas ainda são capazes de chorar baldes de lágrimas com histórias sentimentais. Quase toda a música popular brasileira, por exemplo, funciona nessa chave: “Ela me abandonou”, “Eu deveria ter desconfiado”, “Vai embora maldita, agora arranjei outra”.

    RH Qual é o papel do corpo na concepção que temos de nós mesmos?

    JF É gigantesco. Distinguimos fundamentalmente duas dimensões do corpo: o esquema e a imagem corporais. O esquema corporal é inconsciente e inato. Por volta de um ano e meio, uma criança é capaz de localizar os dedos da mão e do pé. Ela sabe onde está sua cabeça e as demais partes de seu corpo. E isso é absolutamente fundamental para a subjetividade. A primeira experiência de si é a experiência do esquema corporal. É o que nos faz perceber que somos diferentes da terra onde pisamos e de todas as outras coisas nas quais esbarramos. Já a imagem corporal é aprendida no contato com o outro. E essa é a que causa mais problemas. É da imagem corporal que dependem todas essas distorções no cuidado de si.

    RH O corpo não teria se transformado em uma espécie de refúgio?

    JF Claro. Existe essa dimensão um tanto ilusória de que o corpo pode ser controlado. O filho vai embora, não quer saber de mim; minha mulher (ou marido) me deixou; o político e o empresário não ligam se estou bem ou mal; Deus me abandonou ou eu não acredito mais nele. Então, em que posso confiar? Essa é a ilusão. É que a matéria está aqui. Eu toco, eu vejo se emagreci, se engordei. Aparentemente, eu a controlo. Mas não tem jeito: nós vamos adoecer, envelhecer e morrer.

    RH Como entender a proliferação das tatuagens e do piercing? 

    JF É um pouco diferente. Na idéia de adorno do corpo como provocação, como desafio às normas tradicionais, o que existe é uma simples e diferente manifestação de estética corporal. Entre o piercing e o batom ou o brinco, vejo apenas uma questão de grau. Não se conhece nenhuma sociedade na qual os indivíduos tenham se contentado em nascer e morrer com o corpo que têm. Nas sociedades etnológicas, por exemplo, as mulheres punham aquelas argolas para o pescoço crescer ou artefatos parecidos nos lábios. Na China tradicional, era habitual diminuir o tamanho dos pés das mulheres por meios mecânicos. A diferença é que tudo isso era feito em nome do ritual, fazia parte de algo maior. A tatuagem e o piercing se parecem com a maneira de se vestir das pessoas da contracultura nos anos 60.

    RH E as práticas mais extremas, como a mutilação?

    JF Aí muda. Uma coisa é você botar brincos no corpo e se tatuar. Outra completamente diferente é se pendurar pela pele ou se amputar. É brincar com fogo. A gente está dando corda ao corpo, não é? Coisas impensáveis até bem pouco tempo atrás começam a vir à tona. Quando incentivamos essa cultura do corpo, o que acontece? Vem o pacote completo. Vem o bom e o saudável, e vem o monstruoso.

    RH Como tratar isso?

    JF Ainda não sabemos ao certo. O que parece interessante fazer é entender que muitos dos conflitos corporais exigem um tratamento que não seja exclusivamente o tratamento pela palavra. Daí a importância da ioga, do shiatsu, do pilates, do RPG, da acupuntura, etc. São atividades que influenciam nossa imagem corporal alterando a percepção de nosso esquema corporal. Essa idéia ainda não é unânime entre os psicanalistas.  Eu e outros colegas, no entanto, estamos convencidos de que é uma idéia frutífera, dado que a ênfase excessiva posta na corporeidade está produzindo quadros clínicos que a terapia pela palavra, sozinha, pode não resolver. E o que é mais importante: os resultados são ótimos. Algumas pessoas se beneficiam muito disso. 

    RH Costuma-se associar a questão do corpo ao narcisismo. Mas você pensa diferente.

    JF Isso. Este, aliás, é o tema do meu próximo livro. Acho um absurdo dizer que somos mais narcisistas ou egoístas hoje do que fomos ontem. As pessoas sofrem mais, são mais isoladas e descrentes, pensam muito em si por sofrimento, mas não se tornaram monstros nem psicopatas morais. Isso não é verdade. Elas estão o tempo inteiro pensando: “Como é que eu poderia ser melhor? O que eu estou fazendo? Será que eu não estou sendo muito materialista?” Neste sentido, continuam iguais. Quando ocorrem tragédias, por exemplo, você vê uma solidariedade de imediato. A mesma coisa em relação às desigualdades sociais. Nunca houve tanta gente mobilizada e engajada em trabalhos voluntários no Rio de Janeiro. Como é que se pode dizer que vivemos em um mundo narcisista? Eu acho isso tão tonto quanto dizer que vivemos em uma sociedade de prazer.

    RH Por quê?

    JF Vivemos em uma sociedade de tudo, menos de prazer. O espetáculo, a publicidade, em suma, a visão de mundo hegemônica dizem: “Goze, goze, goze”. Agora, daí a gozar... é outra história! Só estamos autorizados a comer meia folha de alface. Temos que nos matar de exercícios físicos, fazer palavra cruzada para evitar Alzheimer. Check-up cinco vezes por ano. Está entendendo? E um medo pavoroso de câncer. Nunca houve tanta propaganda em torno de pratos exóticos e refinados no Brasil, da cozinha tailandesa à peruana, passando pela do Tibete e a do Brunei. Mas o sujeito não pode usufruir de nada, absolutamente nada disso. Ele vai ficar com medo do colesterol, de ser olhado como um estulto, um irresponsável, pelos amigos: “Neurótico, não cuida de si. Vai fazer psicanálise, ioga” [risos]. Então, abre-se mão do prazer, que se tornou, paradoxalmente, algo extremamente escasso. E isso numa cultura que se auto-representa como “hedonista”.  

    Saiba Mais - Verbetes:

    Marco Aurélio (121-180)

    Imperador de Roma desde 160 até sua morte, dedicou-se também à filosofia, especialmente à corrente do estoicismo, escrevendo as Meditações, obra na qual aparece com insistência o tema da caducidade das coisas.

    Ernest Hemingway (1899-1961)

    Escritor norte-americano, correspondente de guerra na Espanha durante a Guerra Civil,  que inspiraria um de seus melhores livros, Por Quem os Sinos Dobram. Prêmio Nobel de Literatura em 1954, é autor também de Paris é uma festa, Adeus às Armas e O Velho e o Mar. 

    Instituto de Medicina Social (IMS)

    Criado nos anos 1960 por professores da Faculdade de Ciências Médicas da Uerj para aprofundar e sistematizar reflexões sobre as questões de saúde, o IMS caracteriza-se pela interdisciplinaridade e o compromisso com a realidade social brasileira.

    Michel Foucault (1926-1984)


    Filósofo, psicólogo e historiador francês, autor de estudos sobre o tema do poder, do conhecimento e do discurso. Escreveu, entre outras obras, História da Loucura, A Arqueologia do Saber, Vigiar e Punir, deixando inacabada uma História da Sexualidade.

    Saiba Mais - Principais obras do autor:

    O vestígio e a aura: corpo e consumismo na moral do espetáculo. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.

    A Ética e o Espelho da Cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

    História da Psiquiatria no Brasil – Um corte ideológico. 4ª ed. Rio de Janeiro: Campus, 1989.

    Ordem Médica e Norma Familiar. 2ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1983.