Tão logo a República foi proclamada no Brasil, em 1889, a imperial cidade de Ouro Preto viu ameaçado seu posto de capital de Minas Gerais, ostentado desde 1720. Entre os decretos publicados pelo presidente provisório, Deodoro da Fonseca, constava um que permitia aos estados a mudança de suas capitais para onde lhes fosse mais conveniente. A partir de então, as elites políticas em Minas Gerais se digladiaram em torno do assunto.
Imediatamente após o 15 de novembro, textos publicados na imprensa mineira passaram a fazer referência a algumas cidades, brasileiras e estrangeiras, para atacar ou defender a mudança da capital. Entre todas, La Plata, construída entre 1882 e 1884 para ser a capital da província de Buenos Aires, na Argentina, foi a mais debatida.
Já em janeiro de 1890, os defensores da mudança da capital (“mudancistas”) apresentavam La Plata como “a mais bela talvez de todas as cidades americanas”. Por meio do jornal O Pharol, de Juiz de Fora, a cidade foi descrita com magníficos monumentos, avenidas, praças e jardins arborizados, movimentado comércio e operosas fábricas a vapor. Enfim, uma cidade moderna, modelo de desenvolvimento econômico, principalmente industrial, a demonstrar a necessidade e a possibilidade de Minas realizar empreendimento semelhante. Um dos artigos informava que a cidade havia sido “construída em menos de três anos por um Banco Construtor e Hipotecário sem ônus algum para o estado (província) de Buenos Aires”. Na verdade, eram dois bancos: o Constructor de La Plata, privado, e o Hipotecário, público. E, ao contrário do que afirmava O Pharol, o financiamento da construção da cidade coube ao governo provincial. Bancos como o Constructor financiavam a edificação de casas para particulares.
No dia 17 de novembro, o jornal Correio da Noite, da ameaçada capital Ouro Preto, publica o contra-ataque dos “antimudancistas”, ironizando a respeito do nome da capital da província de Buenos Aires: o interesse se resumiria ao dinheiro, la plata: “A questão da mudança (...) já não resume, pois, senão em apetites de la plata”, afirma o editorial. A discussão continuou durante todo aquele ano. Em novembro, o Jornal de Minas acrescentaria que “La Plata foi uma das causas pelas quais ficaram arrebentadas as finanças argentinas”, situação que poderia ser pior no Brasil, onde o governo federal não colaboraria com a construção da nova cidade – como aconteceu na Argentina com a indenização feita à província, pela federalização da cidade de Buenos Aires. “Em Minas vai tudo nos custar”, alertava o jornal.
A Argentina, após um boom econômico na década de 1880, passa no decênio seguinte por forte recessão econômica, alta inflacionária e crise política, explicitada na renúncia do presidente Juarez Celman. Nesse novo contexto, La Plata tornava-se um exemplo a ser rejeitado, pois “há cidades que nascem espontaneamente como capitais, e Paris é uma delas; outras cidades são edificadas a propósito, como Washington. (...) Nenhuma, porém, já se fez única e tão somente para um fim especulativo, senão a famigerada La Plata, a brecha aberta nas falências argentinas”.
A associação entre La Plata e a crise econômica não se confirma segundo a realidade histórica. É certo que o aumento dos gastos públicos foi uma das razões da crise, mas a ele se somaram a especulação financeira e a diminuição do fluxo de capital externo que financiava o crescimento do país. Sem lastro a partir de 1889, a Argentina não pôde honrar os serviços da dívida externa pública, o que ocasionou a “crise Baring”, quando o principal banco credor exigiu o pagamento dos serviços da dívida e não concedeu novos empréstimos ao país.
A Constituição Estadual de 1891 enfim aprovou a mudança da capital mineira, dando início aos estudos de cinco localidades para assumir o posto: Barbacena, Belo Horizonte, Juiz de Fora, Paraúna e Várzea do Marçal. Em 1893, os políticos mineiros reuniram-se excepcionalmente em Barbacena, porque em Ouro Preto os ânimos se agitavam. A então capital era rejeitada por ter aspecto considerado sombrio e colonial, topografia e clima inóspitos, era vista, à época, como propensa à propagação de endemias, e com baixa produtividade animal e vegetal. Além disto, era considerada fora do eixo de vitalidade econômica do estado. Estes argumentos foram levantados principalmente pelas elites da Zona da Mata e sul mineiro, que tencionavam diminuir o poder das elites de Ouro Preto, do centro e do norte do estado. Para os mudancistas, a velha capital não teria condições de conduzir “a corrente civilizatória que arrasta o povo mineiro ao progresso para o qual fadou-o a natureza”, como publicou o jornalO Pharol, de Juiz de Fora, em 28 de dezembro de 1889. Na ocasião, decidiu-se que a capital seria construída no arraial de Belo Horizonte, antigo Curral Del Rei. Acontecia em Minas o mesmo que sucedera em Buenos Aires: diante da necessidade de uma nova capital, decidiu-se pela construção de uma nova cidade. O exemplo argentino parece ter surtido efeito.
La Plata foi um modelo urbanístico inspirador para o engenheiro paraense Aarão Reis (1853-1936), que planejou e deu início à construção da nova capital de Minas Gerais. Como chefe da Comissão Construtora da Nova Capital (CCNC), ele se dedicou a realizar o sonho dos mudancistas: construir uma capital que fosse fruto dos avanços da modernidade industrial, que incorporasse as conquistas do urbanismo moderno, que expressasse beleza em sua arquitetura, que contribuísse para o progresso material do estado e, assim, se equiparasse às modernas cidades europeias e americanas.
Em ambas as cidades, quando estavam sendo planejadas e construídas, houve a confecção de uma série de imagens, como plantas arquitetônicas, álbuns fotográficos e cartões-postais. Em La Plata, os retratos do governador Dardo Rocha foram aplicados em lenços distribuídos no dia de lançamento da pedra fundamental da cidade, e incluídos em álbuns fotográficos enviados para representações diplomáticas no exterior e para bancos – o que evidencia o propósito de angariar investimentos e atrair imigrantes para a nova cidade. O surgimento da cidade foi registrado pelo fotógrafo argentino Tomás Bradley. Entre 1882 e 1885, ele fotografou o local onde seria construída a capital, a festa de lançamento da pedra fundamental, as ruas, as avenidas, as praças e os edifícios que iam surgindo. Reunidas em três álbuns, suas fotografias se tornaram verdadeiras imagens inaugurais da cidade, chamadas constantemente para comprovar a modernidade nacional.
Em Minas Gerais, dentro da CCNC foi instalado um Gabinete Fotográfico. Entre 1894 e 1897, ele reproduziu diversas plantas e projetos, fotografou o arraial de Belo Horizonte que estava em vias de ser demolido, registrou a abertura de ruas e avenidas, bem como a construção de alguns edifícios. As imagens foram postas à venda, distribuídas às redações dos jornais e aos empreiteiros. O registro coube a um grupo de fotógrafos, nem todos exatamente profissionais: Adolfo Radice (engenheiro), Alfredo Camarate (arquiteto), João da Cruz Salles (fotógrafo), Raymundo Alves Pinto (fotógrafo) e Francisco Soucasaux (fotógrafo, construtor civil e empreendedor no ramo teatral). Enquanto em La Plata as fotografias caracterizam o surgimento da cidade moderna, em Belo Horizonte prevalecem as plantas e os projetos, bem como imagens do antigo arraial. Em parte isto se explica porque houve contenção de custos a partir de 1895, o que comprometeu o trabalho do Gabinete Fotográfico em 1896 e 1897.
Outra diferença marcante na fundação das duas cidades foi a participação dos políticos. Na Argentina, foram os interesses do governador da província de Buenos Aires, Dardo Rocha, que permitiram que o projeto se viabilizasse em tempo recorde (1882-1884). O governador ocupa então o lugar de fundador de La Plata. Já durante a construção de Belo Horizonte, vários presidentes de estado estiveram no poder, destacando-se Afonso Pena(1892-1894)e Bias Fortes (1894-1898). Sob o governo do primeiro foi organizada a comissão para estudo das localidades indicadas para a nova capital e também iniciada a construção. No governo do segundo, a capital foi inaugurada, com o nome de Cidade de Minas, alterado somente em 1901. Na memória histórica de Belo Horizonte, a fundação está mais associada ao engenheiro Aarão Reis do que aos governadores da época.
Rogério Pereira de Arruda é professor da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri e autor de Cidades-capitais imaginadas pela fotografia: La Plata (Argentina) e Belo Horizonte (Brasil), 1880-1897 (Fino Traço Editora, 2013).
Saiba mais - Bibliografia
BARROS, José Márcio de. Cultura e comunicação nas avenidas de contorno em Belo Horizonte e La Plata. Belo Horizonte: PUC Minas, 2005.
BARTOLOMEU, Anna Karina Castanheira. “Pioneiros da fotografia em Belo Horizonte. O Gabinete Fotográfico da Comissão Construtora da Nova Capital (1894-1897)”. Vária História, Fafich, UFMG, jul. 2003.
JULIÃO, Letícia. “Belo Horizonte: itinerários da cidade moderna (1891-1920)”. In: DUTRA, Eliana de Freitas (org.). BH: horizontes históricos. Belo Horizonte: C/Arte, 1996.
PAULA, Alberto S. J. de. La ciudad de La Plata, sus tierras y su arquitectura. Buenos Aires: Ediciones del Banco de la Provincia de Buenos Aires, 1987.
RIVELLI, Andrés. La Plata, memoria visual de la fundación y construcción de la ciudad de Dardo Rocha (1882-1890). Colección de fotografía de Tomás Bradley, Juan Maróstica y otros. La Plata, 2007.
Internet
Acervo da Comissão Construtora da Nova Capital de Minas
http://comissaoconstrutora.pbh.gov.br/
CAMPOS, Luana Carla Martins. “Instantes como estes serão seus para sempre: práticas e representações fotográficas em Belo Horizonte, 1894-1939”. Dissertação de mestrado em História Social da Cultura (UFMG, 2008). http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=134014
La Plata, um belo horizonte
Rogério Pereira de Arruda