Laços de família e de política

Ronaldo Pelli

  • Entrevistado pela própria filha em casa, Carlos Henrique Escobar se mostra bastante à vontade para falar sobre política, filosofia e seu passado. (Divulgação)

    Um depoimento de um ex-guerrilheiro que lutou contra a ditadura instalada há 50 anos e, por isso, foi preso e torturado. Uma difícil entrevista com um professor universitário e dramaturgo brasileiro há muito tempo vivendo quase como um ermitão numa cidade pequena de Portugal. Um encontro entre pai e filha meio século mais nova. Definir o filme Os dias com ele, de Maria Clara Escobar, não é tarefa das mais fáceis. Nem mesmo a definição de documentário é simples: o pai, Carlos Henrique Escobar, inventa cenas no meio das filmagens, como se estivesse num filme roteirizado por ele.

    “Eu pessoalmente acredito que sempre somos personagens de nós mesmos, e vemos os outros como personagens da nossa jornada e, se essa diferenciação não existe na vida, por que insistir que exista no cinema?”, questiona a cineasta, no mesmo clima do pai.

    O filme, que entra em circuito em abril, foi eleito ano passado a melhor produção do Festival de Tiradentes, conhecido por exibir filmes mais experimentais. A obra de Maria Clara é experimental, sim, mas não difícil: é pequena, intimista, frágil, mostra os momentos mortos da vida de Carlos Henrique Escobar, em sua casa em Aveiro, entre uma pergunta e outra sobre como foi ser preso durante a ditadura.

    “Ele é um intelectual muito bom em argumentar, tem consciência da encenação, da câmera”, explica Maria Clara sobre o pai, lembrando como ela ficou surpresa quando ele contou sobre os choques que recebeu. “Não acredito na conduta que a nossa classe média burguesa vem exercendo há anos e anos de que não enfrentar, não deixar doer seja a solução para qualquer coisa”, e complementa: “enfrentar as questões, até que se tornem mais palpáveis, é um caminho mais interessante, mais humano e mais engrandecedor”.

    O filme de Maria Clara se insere num grupo de produções atuais latino-americanas em que a história recente de um país é contada de um ponto de vista familiar, como acontece com Diário de uma busca (2010) e Em busca de Iara (2013). No caso de Os dias com ele, o entrevistado pôde fazer um balanço de seus dias de militância, e uma crítica sobre a situação política atual. Em certo momento do filme, o autor de peças teatrais como Matei minha mulher (A paixão do marxismo: Louis Althusser), critica fortemente o governo atual, afirmando que a esquerda que está no poder não conseguiu mudar a cultura brasileira da corrupção.

    “Esses meus amigos que eram stalinistas, que eram professores como eu, estão dirigindo até hoje as universidades e ganharam grandes empregos dos governos Lula e Dilma. Enquanto os meus amigos que fizeram luta armada, ou morreram, ou estão desempregados, o Lula e o [José] Dirceu expulsaram do Partido dos Trabalhadores, porque eles eram pessoas firmes. Tudo o que nós tínhamos de melhor e arriscamos pelo Brasil foram os excluídos, e eles são os temidos até hoje”. Mesmo distante do país, o crítico intelectual parece continuar afiado.