Lágrimas de Portugal

Lia Jordão

  • Nem só de descobertas foi o período das Grandes Navegações. Na memória histórica do povo português, os séculos XVI e XVII também ficaram marcados pelas vidas dragadas pelos mares. Foram tantas as narrativas de naufrágios publicadas na época que levaram à formação de um gênero literário próprio. Um importante exemplo é a Historia da muy notavel perda do Galeam Grande San Joam (1552), narrada por Álvaro Fernandes, um dos tripulantes do navio que afundou. 
     
    Guardado na Divisão de Obras Raras da Biblioteca Nacional, o livro parece o roteiro de um filme de suspense. A narrativa é tão intensa que, mesmo conhecendo de antemão o desfecho trágico, o leitor se pega torcendo pelos protagonistas. Não é à toa que a história é citada em diversas obras da literatura portuguesa, a começar pelo Canto V d’Os Lusíadas (1572), de Luís de Camões. 
     
    O Galeão São João partiu de Cochim, domínio português na Índia, em fevereiro de 1552, rumo ao Velho Mundo. No comando ia o fidalgo Manoel de Souza Sepúlveda, acompanhado da família, do piloto André Vaz, de outros fidalgos e de centenas de portugueses e escravos. Nos porões, um grande valor em mercadorias, entre elas produtos têxteis e 12 quintais (cerca de 60 quilos cada) de pimenta. A costa oriental africana já surgia no horizonte quando, sob o impacto do mar revolto, as condições da embarcação começaram a se deteriorar rapidamente (“sem leme, sem mastro, e sem velas, nem de que as poder fazer”). 
     
    A tripulação decidiu aportar e consertar o navio, mas nem deu tempo de executar o plano de desembarque: a nau se partiu ao meio bem perto da costa. Foi um salve-se quem puder: desesperados, os náufragos saltavam sobre a caixaria, os tecidos e os mantimentos, enquanto os que estavam em terra tentavam resgatá-los. Em menos de quatro horas, o galeão havia se desfeito e mais de 100 pessoas estavam mortas. 
     
    Pintura de Roque Gameiro representando a frota de Cabral. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)A terra firme não garantia salvação. Após uns dias de descanso, iniciaram uma caminhada em busca do rio Lourenço Marques, hoje chamado baía de Maputo, no sul de Moçambique. Foram mais de cinco meses andando, durante os quais perderam de uma a duas vidas por dia – para a fome, a sede, a exaustão, os acidentes e os ataques de “leões e tigres” – e eram ameaçados o tempo todo pelos habitantes locais. Enfim na foz do rio, negociaram com alguns africanos o uso de três almadias (espécie de jangada) para atravessá-los, pagando o serviço com pregos e outros artigos de ferro. 
     
    Àquela altura, o capitão Manoel de Souza já andava “muito maltratado do miolo”. Provavelmente sofrendo com alucinações, tentou agredir os negros que ajudavam na travessia. O surto quase custou a vida de todos. Na outra margem, nativos levaram os outros 120 sobreviventes ao encontro do rei local, que prometeu comida e abrigo com a condição de que não ficassem todos juntos. Os náufragos, então, foram espalhados pelas aldeias. É quando vem a maior armadilha: o rei propõe que entreguem as armas para não assustar os moradores. E o capitão, “fora do seu perfeito juízo”, aceita a negociação. “Vós entregais as armas, agora me dou por perdida com toda esta gente”, antevê sua esposa, D. Leonor. Estava certa: os grupos foram assaltados e expulsos das aldeias.
     
    Mas a pá de cal ainda havia de ser jogada: depois de vagar por dois dias, eles foram novamente abordados pelos habitantes da aldeia, que obrigaram D. Leonor e o marido a tirar a roupa. Em uma cena dramática, encontra-se a fidalga portuguesa completamente nua na frente de todos. Em desespero, ela se cobre com os longos cabelos, cava um buraco no chão e entra nele para nunca mais sair. Rapidamente definha, mesmo com os esforços do marido para trazer comida e água. Em uma das idas e vindas, o capitão encontra a esposa e o último filho falecidos. Sem dizer qualquer palavra, enterra os dois pelas próprias mãos. Depois disso “se meteu pelo mato e nunca mais o viram”.   
     
    Do martírio restaram pouco mais de 25 pessoas, que vagaram sem rumo até serem resgatados por um navio do comércio de marfim. Chegaram a Moçambique em maio de 1553, depois de mais de um ano da partida de Cochim. Álvaro Fernandes resolveu contar essa história para que “os homens que andam pelo mar se encomendem continuamente a Deus”. Afinal, nunca será possível prever a sorte de um navegador.
     
    A carta náutica do Atlântico, de 1579, foi produzida no auge da cartografia do início da época moderna. No início da matéria, o frontispício do documento. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)