Lavradores reais

Angela Ancora da Luz

  • Foi na fazenda de café onde nasceu que Portinari (1903-1962) viu os tipos que constituíram sua rica fábula dos retirantes, tão característica de sua obra. Na propriedade, localizada em Brodósqui, no interior de São Paulo, estavam as imagens que povoaram sua infância, marcada pela presença da lavoura do café – os nordestinos maltrapilhos e famintos e os leprosos que pediam esmolas.
     
    Os retirantes que entravam na cidade ficavam acampados à espera de dias melhores, de trabalho na lavoura e de alguma comida. Candinho, apelido carinhoso do pintor, gostava de visitá-los, apesar da recomendação materna de não se aproximar daquele acampamento. Ali, viu um enterro na rede, observou as crianças pançudas e sentiu o drama da seca.

    Quando a crise econômica mundial atingiu a economia do café, em fins de 1929, Portinari já havia se dado conta de quanto o produto era importante para o país. A vida rural era sua grande motivação. Ele sentia o gosto da terra dentro dele, como chegou a afirmar. Era como se os pés de café e os homens brotassem do chão, nascendo como irmãos. O Brasil de Portinari surge do solo pelos braços dos lavradores.

    No desenho “Cena Rural” (1954), ele faz uma síntese dos elementos que povoam sua alma e lhe dão o sentido de vida. Com traço rápido e preciso, ele constrói os tipos encontrados ao longo de sua produção. A nordestina com o filho no colo e a trouxa na cabeça – que também está em “Retirantes” –, o cavalo e o carneiro, presentes em muitas outras, e o espantalho, que o acompanhou desde cedo. À direita, há sacos de café empilhados, tendo ao lado o esboço de uma figura agachada e ao fundo, a perder de vista, toda a plantação. Todo o desenho apresenta fragmentos de outros trabalhos do artista.

    Portinari destaca aqueles que lavram, a mulher que peneira o grão e o homem que levanta ou repousa a saca de café. O realismo expressivo do pintor põe em evidência o homem e a terra. Nas três figuras centrais, percebe-se uma atitude de reverência diante do solo de onde vem a riqueza.

    Do ponto de vista da regra de composição, ele se mantém fiel à tradição, mas na forma se projeta como artista moderno, como expressionista Ele seguia as regras de composição clássica de acordo com o espaço perspectivado, mas a forma era trabalhada fora das proporções exatas, com distorções expressivas, como um artista moderno. Apesar da visão crua da realidade social, ele alcança o homem além da aparência física. Procura sua interioridade, a expressão das figuras que se unem à terra através de pés nodosos, planos e torturados, mostrando tendões e ossos sob a pele. As mãos que seguram a enxada e a peneira são extremidades reveladoras do interior da alma humana.

    De igual modo, observamos que ele mantém as mesmas preocupações do lavrador com a terra na tela “Café”, premiada na exposição internacional do Instituto Carnegie de Pittsburgh, Estados Unidos, em 1935. Esta é uma pintura que lembra as composições renascentistas dos teóricos da perspectiva no século XV, quando estes iniciaram o processo de construção do espaço em três dimensões. A linha do horizonte foi elevada acima do limite do quadro. Homens e pés de café se alinham ao longo da composição ocupando este espaço. A paisagem integra todos os elementos da tela, contrapondo o verde do cafezal a uma variada gama de cores terrosas, marcando a fase marrom de Portinari.

     É o café que pontua os cromatismos, ou seja, o colorido é ditado pela cor do café: mais claros, quase pardos, para os corpos dos trabalhadores; mais acentuados e luminosos nas sacas do grão; com tom vermelho, mais quente, para os pés dos lavradores e para a terra. Neste particular, a cor revela a identidade do artista que afirmava ter vindo “da terra vermelha e do cafezal”. As figuras parecem esculturas, robustas, congeladas na ação do trabalho, com mãos e pés enormes e pele rugosa. Os rostos desaparecem sob o peso das sacas, poucos revelam seus traços individuais. Sob o olhar do capataz de gesto militar, os homens trabalham. A colona sentada, que nos faz lembrar as sibilas que Michelangelo pintou no teto da Capela Sistina, repousa brevemente, enquanto a riqueza da terra circula pelos braços dos lavradores e pela imaginação de Portinari.

    Esta visão social do artista traz a afirmação racial dos negros e mestiços, seus tipos preferidos, na construção dos trabalhadores rurais. Suas convicções políticas, reforçadas pelos ideais do líder comunista Luiz Carlos Prestes (1898-1990), estão implícitas na força do trabalho coletivo como instrumento transformador do mundo.  Portinari sonhava com a reforma agrária anunciada por Prestes e chegou a pertencer ao Partido Comunista.

    Os problemas sociais estão evidentes também em “Terreiro de Café”, obra de 1959. Na tela, os homens espalham o café para a secagem dos grãos, cuidando para que sua distribuição seja uniforme e cobrindo a terra na área determinada, destacando a importância do trabalho coletivo. Há também uma grande superfície quase negra, que se recorta do vermelho, uma referência ao colorido do solo. As casas, preenchendo alguns espaços no lado direito do quadro, são meros detalhes na composição. A evidência está no fundo verde da plantação que faz o contraste simultâneo com o vermelho da terra, dirigindo nosso olhar para aquele ponto em que é possível captar a extensa área que se perde no horizonte. No primeiro plano da composição, vários homens e mulheres estão executando atividades diversas com as cabeças cobertas por chapéus de palha, panos ou trouxas.

    Portinari trabalha com a pincelada solta nesta obra, eliminando a linha, dando autonomia à cor na construção da imagem. O artista utiliza o branco para iluminar os braços do trabalhador em primeiro plano, ao centro, bem como muitos outros detalhes, como a bandeira, cujo mastro em diagonal acentua a ação do braço humano. É um branco brilhante que dispara a luz nos corpos.

    Em “Espantalho na tempestade”, ele utiliza guache e grafite sobre papel, mas persiste nos contrastes. Aqui o fundo escuro é recortado pelos relâmpagos que explodem no céu e iluminam a cena, colocando em foco a dramática figura do espantalho. Esta obra foi concluída em 1959, quando sua saúde já estava muito debilitada. Portinari viria a falecer no dia 2 de fevereiro de 1962.

    O espantalho foi um tema que acompanhou o artista desde o início de sua trajetória e pontuou sua obra. Era o seu autorretrato, como gostava de afirmar.  Ele descreve como se deu o seu primeiro encontro com esse boneco de palha: ainda pequeno, perdera-se numa plantação, começando a correr no meio dela. Sua emoção foi grande quando estacou diante do espantalho. A imobilidade do grande homem esfarrapado de braços abertos o paralisou.

    A figura se associou ao medo dos leprosos de Brodósqui, numa experiência única. O azul quase cobalto do céu do espantalho ficou em sua retina e em tantas de suas telas. Nesta obra, o temporal que irriga a terra acentua a solidão do homem na figura do boneco. De forma trágica, ele nos encara como um crucificado envolto em panos. Como alguém que vai sair de cena. A figura dramática permanece defendendo as plantações. O tracejado da chuva em várias direções e a claridade que se abre ao fundo da figura são gritos expressionistas com os quais Portinari revela o homem e a terra brasileira ao mundo.

    Filho de um casal de imigrantes italianos, Portinari fez apenas o curso primário. Ainda jovem, veio para Rio de Janeiro estudar na Escola Nacional de Belas Artes, onde iniciou seu aprendizado no final de 1918. No entanto, muito mais do que o ensino formal, o que marcou mesmo as telas do artista foram as lembranças da infância, que jamais se apagariam de sua memória.

    Já no fim da vida, abreviada pelo contato com o chumbo das tintas que usava, Portinari escreveu, num pequeno poema, que sua memória já não alcançava mais os cafezais de sua terra: “Minha memória já não alcança/ aqueles cafezais.Começa/no passado. Antes há lembranças entrelaçadas/ e sonhos. Mesmo se prolongando/ até lá, vejo esfumaçado.”

    Os poemas foram publicados em 1964, dois anos após a morte do pintor. Ele os via esfumaçados, em meio às lembranças. Em outro momento, fez uma análise de sua vida dizendo que nascera num pé de café e reafirmou que devia ter vindo por engano, pois o material usado em sua fabricação provavelmente se destinava a folhas de árvore e água. A terra avermelhada em que correu e jogou bola se misturou, com o tempo, à poeira levantada pelos pés dos nordestinos que abandonavam a seca e chegavam até Brodósqui.

    ANGELA ANCORA DA LUZ É PROFESSORA DA UFRJ E AUTORA DO LIVRO UMA BREVE HISTÓRIA DOS SALÕES DE ARTE: DA EUROPA AO BRASIL. (Caligrama, 2005)


    Saiba Mais - Bibliografia

    BENTO, Antonio. Portinari. Rio de Janeiro: Leo Christiano Editorial Ltda., 2003.
    DAMM, F. Um cândido pintor Portinari. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1971.
    FABRIS, Annateresa. Portinari, pintor social. São Paulo: Ed. Perspectiva e
    Edusp,1990.


    Saiba Mais - Internet

    www.portinari.org.br