Todos os anos, com as comemorações do 9 de Julho, são relembradas histórias de guerra que já entraram para o imaginário paulista. Há muitos os lugares em São Paulo que guardam a lembrança de 1932. Alguns ajudam a contar a história, como a Praça do Patriarca, local de importantes comícios e campanhas dos revolucionários, ou a Rua Dom José de Barros, onde manifestantes do 23 de Maio foram alvejados. Outros servem de homenagem, como os conhecidos Obelisco, o Túnel e a Avenida Nove de Julho, as ruas MMDC – nome formado pelas iniciais de vítimas da Revolução – espalhadas por Osasco, Butantã, Pinheiros...
O Edifício Ouro para o Bem de São Paulo, localizado na Rua Álvares Penteado, região central da capital, tem uma história interessante: foi feito com o dinheiro que restou das doações feitas para a revolta. Na verdade, as doações foram em ouro. A construção de monumentos e edifícios, a nomeação de ruas e outras localidades foram intensas nos anos posteriores à derrota de São Paulo. Mas como as histórias e os marcos presentes no estado nos ajudam a entender a Revolução de 1932 e seu legado para São Paulo e para o Brasil?
Novos estudos sobre o tema trazem hoje visões contrastantes sobre muitos dos pontos fundamentais da história do conflito. Os reais motivos que levaram ao levante, por exemplo, até hoje dividem opiniões. De um lado, a ideia de separatismo de São Paulo; de outro, a luta pela democracia – sem contar as inúmeras causas políticas e pessoais que motivaram cada cidadão da época a levantar (ou não) a sua bandeira. As memórias difusas e mesmo os documentos existentes sobre a guerra civil paulista, que completa 80 anos, revelam que não há consenso quando o assunto é esse conflito que marcou o país em julho de 1932.
“A memória que se guarda do que aconteceu é parcial”, diz Marco Cabral dos Santos, professor da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap). Para ele, um dos pontos fundamentais de discordância é com relação aos verdadeiros motivos do embate. “O acervo de Mário de Andrade, por exemplo, foi pouco utilizado. Ele revela contradições extraordinárias relativas aos motivos que levaram São Paulo à guerra”. Ele queria escrever uma obra sobre 1932, mas desistiu.
Santos ainda aponta como um dos aspectos principais da Revolução de 1932 o mito da “excepcionalidade paulista”. “Este é um mito que vai tanto fomentar a guerra como sustentar as elites políticas. O estabelecimento de monumentos públicos em alusão ao conflito de 1932, por exemplo, foi intenso nos anos posteriores. Esforços para enaltecer o sentimento de ‘paulistanidade’, opondo-se à ideia de nação brasileira”, completa.
Mas qual é a herança dessa revolução para São Paulo e para o Brasil? “Seria tentador afirmar que o movimento de 1932 pode ser visto como um clamor popular pela democracia, mas isso é balela. Os acontecimentos das décadas seguintes não confirmam essa hipótese. Muitos dos que participaram mostraram pouco apreço pela democracia nas décadas seguintes”, afirma o historiador. Outro ponto fundamental é a participação da população paulista na revolta. “Em discursos oficiais, falava-se sobre o apoio unânime do povo, porém, se analisarmos o envolvimento dos intelectuais, veremos que isso não existe; as opiniões são mais díspares do que a versão oficial dá conta”, explica Santos.
Memória viva do movimento,ocomandante Pires, hoje com 93 anos, era escoteiro em 1932 e trabalhava na antiga Casa do Soldado, lugar de fornecimento de materiais e de prestação de serviços diversos às tropas. Com a aproximação das comemorações de 9 de julho, ele vive uma rotina agitada, com frequentes ligações e pedidos de entrevistas, além de muitas homenagens. Em seus relatos, relembra a participação maciça e a grande euforia daqueles dias: “A cidade toda parecia um formigueiro, com o povo todo correndo e trabalhando ao mesmo tempo; não se via ninguém parado.”
Para Marcelo Santos de Abreu, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, “a cada momento em que a memória de 1932 é evocada, ela também se altera”. Segundo ele, “não é possível supor que todos os grupos envolvidos imaginem aquele passado da mesma maneira, nem que façam dele uma bandeira para as mesmas causas”.
Presidente da Sociedade Veteranos de 32 – MMDC, o coronel Ventura, 75 anos, guarda muitas memórias da época. Embora não tenha vivido a guerra, ele mantém um arquivo de documentos, fotografias, histórias, que foram sendo coletados ao longo dos anos em parceria com colaboradores. Ventura adverte que há muitas lendas que envolvem a memória da guerra, como a morte de estudantes no Largo de São Francisco durante os conflitos. “Nas palestras que faço, tento desmistificar algumas coisas sobre 1932. Por exemplo, os quatro estudantes que morreram [Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo] não eram estudantes, e morreram 11, e não apenas quatro”. Foram os quatro primeiros, no entanto, que tiveram suas iniciais imortalizadas – por isso o MMDC no nome da Sociedade Veteranos – e transformadas em símbolo de heroísmo, com o poder de motivar vários segmentos da sociedade na luta armada.
“Outra lenda dos livros de História é que a revolução foi feita pela elite. Foi pela Força Pública, e ela é o povo”, afirma Ventura. Ele diz ainda que não havia plano separatista: “Em documentos da Força Pública, você não encontra menção a uma separação de São Paulo. O estado era contra o governo, mas dizer que queria se separar é um exagero”.
Na sede da Sociedade, é possível ter acesso a algumas das histórias dos veteranos de 1932. Como a de Esmeraldo Figueira Filho, já falecido, que se alistou para se juntar aos amigos que se inscreveram como voluntários. No relato ele afirma: “Na época, eu não conhecia o ideal pelo qual lutávamos, mas sabia que, se São Paulo estava indo à guerra, era porque tinha razão”.
Em outra memória, o ex-combatente Ulisses Rodrigues de Oliveira, de 99 anos, conta que, logo após o estouro do movimento revolucionário, um professor e alguns alunos da Faculdade de Direito do Largo São Francisco chegaram a Limeira, sua cidade, para incentivar os rapazes a se alistarem. Ele fala das cartas que recebia durante a guerra: “Eu me emocionava com todas, porque ficava sabendo que minha avó, meu pai e as pessoas amigas, todos nos incentivavam na trincheira”.
Nos meses que antecedem as comemorações de 9 de Julho, a Sociedade Veteranos de 32 – MMDC organiza uma série de homenagens na capital e no interior, em locais onde ocorreram batalhas. O historiador Marcelo Santos de Abreu acredita que as comemorações de hoje indicam um decréscimo do apelo à lembrança do movimento. “Por um lado, há um distanciamento daquela experiência que marcou algumas gerações. Por outro, as escolas foram operando críticas à celebração cívica como estratégia pedagógica. Desde os anos 80, há uma crítica contundente às comemorações do calendário cívico nacional ou regional como expressões conservadoras, de modo que o engajamento nas comemorações do 9 de Julho e de outras datas vem decrescendo”. Ele acredita que a experiência histórica contemporânea alterou a relação com a memória, tornando-a mais fragmentada: “Não significa dizer que esquecemos mais; ao contrário, há, contemporaneamente, uma obsessão com a lembrança que leva a uma inflação de memória”.
De fato, as comemorações estão menores a cada ano. O coronel Ventura, que acompanha há muito tempo os desfiles e comícios, conta que o número de pessoas que participa das passeatas é cada vez menor, assim como a duração dos eventos.
Enquanto uns lutam para desmistificar certas crenças, outros tentam manter viva a memória dos ex-combatentes. É o caso de dois netos de veteranos, Camila Giudice e Ricardo Della Rosa. Camila é voluntária na Sociedade Veteranos e trabalha com as famílias de ex-soldados. Ricardo Della Rosa é publicitário e organiza um site (www.tudoporsaopaulo.com.br) para contar um pouco das histórias de quem viveu 1932. “Fizemos uma grande guerra civil em busca de uma Constituição. Fomos derrotados militarmente, mas vencemos politicamente”, afirma, orgulhoso, o coronel Ventura. Para ele, o movimento de 1932, mais do que uma discussão política, serve de inspiração para a luta por causas justas: “Foi uma revolução em prol dos direitos constitucionais e da liberdade. Hoje, não há lutas por ideais, nas quais as pessoas se unam por algo que vá além de suas próprias vontades imediatas”.
Katia Calsavara e José Sampaio são jornalistas.
Saiba Mais - Bibliografia
SANTOS, Marco Cabral dos; MOTA, André. São Paulo 1932: Memória, Mito e Identidade. São Paulo: Alameda, 2010.
Saiba Mais - Internet
ABREU, Marcelo Santos de. “Os mártires da causa paulista: culto aos mortos e usos políticos da Revolução Constitucionalista de 1932 (1932-1957)” (UFRJ, 2010).
www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=182075
Sociedade Veteranos de 32 – MMDC
Lendas da liberdade
Katia Calsavara e José Sampaio