Transportar jovens estudantes para o universo da Grécia Antiga não é das tarefas mais fáceis. A mitologia da época pode servir como atalho. Repletas de magia, deuses e heróis, as narrativas míticas são metáforas que revelam os processos históricos e os valores sociais daquela cultura. O estudo dos mitos gregos permite ao aluno compreender o período de modo lúdico e prazeroso, livre do peso do discurso acadêmico.
As epopeias da Ilíada e da Odisseia, compostas por Homero aproximadamente entre os séculos IX e VIII a.C., estão entre as principais fontes históricas para a análise da Grécia Antiga, no período que vai da Civilização Micênica à chamada “Época Arcaica”. As duas narrativas relatam os mitos da guerra de Troia e as façanhas espetaculares de seus principais heróis, Aquiles e Ulisses, responsáveis pela vitória dos gregos contra os troianos. Escritas como grandes aventuras, as obras de Homero costumam envolver o leitor, transportando-o para um mundo de valores diferentes dos nossos, onde as cidades pertenciam aos reis e não aos seus habitantes, e no qual predominavam os ideais guerreiros da honra, da glória e da vingança.No canto I da Ilíada, já se contam nove anos da guerra e os gregos ainda não conquistaram a cidade de Troia. Os exaltados ânimos da tropa provocam uma briga entre os dois principais chefes gregos. Rei e comandante do exército, Agamêmnon exige de Aquiles, filho da deusa do mar Tétis, que lhe entregue uma princesa escravizada. Ela é um troféu conquistado por Aquiles durante o saque a uma cidade vizinha, um símbolo da excelência do guerreiro. Aquiles entrega a princesa, porém sente sua honra ofendida com a humilhação e se retira da guerra, causando a derrota temporária das fileiras gregas. Mas o herói pede à sua mãe que interceda por ele. A deusa Tétis prontamente vai ao Olimpo, roga a Zeus para ajudar o filho e é logo atendida pelo rei dos deuses: para vingar a honra ferida de Aquiles, Zeus pune Agamêmnon fazendo com que o exército grego sofra contínuas derrotas diante dos troianos. Mais tarde, Aquiles volta à luta e Agamêmnon lhe restitui a princesa.A narrativa expressa a importância da guerra como meio de aquisição de escravos e de bens materiais em uma Grécia onde o comércio existia apenas em um estágio incipiente. Percebe-se o enorme valor guerreiro da timé – a honorabilidade individual, baseada em ideais aristocráticos: o herói deve defender sua honra antes de tudo, mesmo colocando em risco seus amigos e a vitória na batalha. No embate entre Agamêmnon e Aquiles, fica claro também que a Grécia aristocrática não era um Estado unificado, nem o poder era centralizado. Agamêmnon não é o “rei da Grécia”, mas da cidade de Micenas. E ele entra em confronto com o herói cujo pai, Peleu, vem a ser o rei de Ftía, outra cidade grega.
As estruturas de poder e a divisão dos privilégios sociais eram determinadas no âmbito religioso. Apesar de ser o soberano da cidade mais poderosa da Grécia na sociedade micênica, a autoridade de Agamêmnon é colocada em dúvida por outro nobre. Aquiles, física e moralmente superior, possui maior cacife político por ser filho de uma deusa e protegido por Zeus. A narrativa da Ilíada esclarece, portanto, que a autoridade de um rei podia ser questionada por um nobre, o que indica que as cidades gregas, desde tempos remotos, nunca aceitaram plenamente a monarquia, rapidamente substituída pelo governo coletivo.Os versos da Odisseia reservam outros aprendizados. Enquanto o guerreiro grego Odisseus (Ulisses em português), rei da ilha de Ítaca, permanece perdido no mar durante nove anos após o término da guerra de Troia, o reino que comandava é invadido por nobres que pretendem se apossar do seu trono. Sua esposa, a rainha Penélope, já perdeu as esperanças de rever o marido. Resolve decretar, então, uma competição para a escolha do novo rei: aquele que conseguir vergar o arco de Odisseus e acertar uma flecha em um alvo circular será o seu novo companheiro e soberano de Ítaca.Ocorre que o arco tem poderes mágicos, pois pertenceu ao deus Apolo e a vários ancestrais heroicos. Odisseus é o único homem capaz de vergá-lo. O herói ressurge milagrosamente do mar, exatamente no dia da disputa, para comprovar o poder divino de seu arco e revelar ser o único e verdadeiro rei de Ítaca. Pouco antes do desafio, porém, Odisseus sente medo por não saber se os deuses estariam ao seu lado. Então o próprio Zeus troveja alto, mostrando ao herói que aprova a vingança que estava prestes a se consumar. O herói acerta o alvo e depois mata todos os pretendentes com seu arco.A saga da Odisseia é um exemplo para o estudo da Grécia em um período de transição, entre 1200 e 800 a.C., que sucede à queda das monarquias micênicas e anuncia a época das oligarquias. Há ali uma sociedade sem um código público de leis que possa oferecer proteção e garantias a um rei enfraquecido e confrontado por um grupo de nobres. O único modo de Odisseus provar que tem direito ao trono é apelar para um tipo de justiça privada e familiar, alicerçada na ética da vingança e realizada através de demonstrações de força, eleição divina, torneios, armas mágicas e fórmulas religiosas. A narrativa revela uma sociedade fragmentada em reinos independentes entre si, onde “a espada era a lei”.A partir das mudanças que ocorrem na cultura grega na virada da época arcaica (800-500 a.C.) para o período clássico (500-338 a.C.), o imaginário mítico e religioso começa a se modificar. O desenvolvimento do comércio, as colonizações e a queda das monarquias preparam o advento da pólis e o desenvolvimento da noção política de Cidade-Estado. Surge um novo grupo social formado por homens comuns enriquecidos: artesãos, comerciantes e camponeses começam a se opor aos aristocratas e a reivindicar um novo tipo de poder, mais justo e igualitário.A narrativa da Teogonia, de Hesíodo, poeta da metade do século VIII a.C., ilustra esse período. O mito conta a história da criação do universo a partir das três gerações divinas que se sucedem, de Urano a Zeus. Urano, o deus do céu, fecundou a deusa Terra (chamada Gaia), mas não deixa seus filhos nascerem, empurrando-os de volta para o útero da mãe. Um deles, porém, castra o pai e consegue se libertar do ventre materno. É Cronos. Ao castrar o pai, ele se torna o rei do universo. Mas Cronos, por sua vez, tem medo de ser destronado pelos filhos, então os devora tão logo nascem. Um dos filhos de Cronos, Zeus, escapa de ser comido pelo pai: sua mãe, Reia, engana o marido dando-lhe uma pedra para engolir no lugar do filho. A Teogonia termina com a vitória dos deuses olímpicos, liderados por Zeus, sobre os Titãs, comandados por Cronos. Nesta batalha se confrontaram as forças da luz e da ordem contra as forças do caos e das trevas.No mito, Hesíodo faz de Zeus o portador de um novo poder cósmico que substitui a velha ordem calcada na tirania e na força bruta. O personagem usa justiça, inteligência e diplomacia para governar, em oposição aos Titãs, que representam a injustiça e a violência. Apesar de ser ainda e sempre um rei, o filho de Cronos e Reia já expressa certos princípios democráticos e representa o ideal do Estado centralizado. Ao vencer os Titãs, ele divide as honras com os outros deuses. Por isso Zeus é “eleito” por todos para ser rei, formando um “Estado” olímpico unificado, com base em uma lei mais justa e racional.A Teogonia representa os ideais igualitários e não aristocráticos que estão se formando naquela época de transição, e que resultarão, no período clássico, na democracia da pólis. Zeus expressa a fantasia de um mundo de paz, justiça e equidade, que vem substituir uma era de reis violentos e devoradores de filhos.Pelos caminhos da fantasia e da ficção heroica, as narrativas míticas dos antigos gregos podem ajudar as crianças e os adolescentes de hoje a se desligarem dos seus parâmetros cotidianos e literais. Com sua linguagem poética e simbólica, os mitos expressam as paixões e os dramas humanos mais profundos, e conferem aos processos culturais uma luminosidade atemporal, permitindo um mergulho prazeroso na alteridade das culturas antigas. O estudante pode, ao mesmo tempo, se reconhecer e se estranhar, ampliando de forma significativa o seu horizonte de valores e expectativas.Isabela Fernandes é professora do Departamento de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e coautora de A Vida, a Morte e as Paixões no Mundo Antigo: Novas Perspectivas (Editora Cassará, 2012).Saiba MaisBRANDÃO, Junito. Mitologia Grega. Vols. 1, 2 e 3. Petrópolis: Editora Vozes, 2009.GRAVES, Robert. Os Mitos Gregos. Rio de Janeiro: Ediouro, 2008.
Lições de deuses e heróis
Isabela Fernandes