- Convivi 23 anos com Paulo Freire. Como pessoa, ele era uma unanimidade. Como pensador, não poderia agradar a todo mundo. Muitos não gostaram de ele ter sido proclamado, em 2012, “patrono da educação brasileira”. Nenhuma teoria pedagógica alcança consenso, e isto é muito bom. Aprendemos na diferença.Dono de posições firmes e bem fundamentadas, ele próprio valorizava as críticas, sustentando que podemos sempre aprender com elas. Seu livro Pedagogia da esperança (1992) é uma leitura crítica de sua principal obra, Pedagogia do oprimido (1968), que poderia ser chamada também de “Pedagogia da libertação”.Paulo Freire era uma pessoa simples, alegre e bem humorada. Um educador preocupado com a construção de uma sociedade mais justa, mais democrática, que queria contribuir “na criação de um mundo em que seja menos difícil amar”. Dizia que toda educação supõe uma visão de mundo, um projeto de sociedade. Por isso, toda educação é política. Podemos ter uma pedagogia que oprime e uma pedagogia que liberta.Desde as primeiras obras que produziu, a liberdade é a categoria central de sua concepção educativa. A finalidade da educação será libertar-se da opressão e da injustiça, levando à transformação radical da realidade, para melhorá-la, torná-la mais humana, permitir que as pessoas sejam reconhecidas como sujeitos da sua história, e não como objetos.A libertação como objetivo da educação situa-se no horizonte de uma visão utópica da sociedade. O mundo que nos rodeia é um mundo inacabado, por isso a educação deve permitir uma leitura crítica da realidade e a denúncia da injustiça e da opressão. A crítica transformadora é o anúncio de uma nova realidade a ser criada. Esse outro amanhã é a utopia do educador de hoje. Para Paulo Freire, não pode ser realista o educador que não é utópico.Educação não é só ciência: é arte e prática, ação e reflexão, conscientização e projeto. Como projeto, a educação precisa reinstalar a esperança. Nada mais atual do que esse pensamento, numa época em que muitos educadores vivem alimentados mais pelo desencanto do que pela esperança.A afirmação da utopia como práxis docente e discente lembra o paradigma humanista, cristão e socialista. O que há de original em Freire, em relação ao marxismo ortodoxo, é que ele afirma a subjetividade como condição da revolução, da transformação social. Daí o papel da educação como conscientização. Ele não entende a história como possibilidade que se realiza por meio de um movimento mecânico de luta de classes, pura e simplesmente, mas pela ação consciente de sujeitos históricos organizados.A relação entre educação, libertação e utopia está na base de seu pensamento. Ela pode ser resumida em quatro princípios. O primeiro: para construir o futuro é preciso primeiro sonhá-lo, imaginá-lo. Freire critica o neoliberalismo exatamente por ser fatalista, negar o sonho e a possibilidade de mudança. Por se apresentar, arrogantemente, como a plenitude dos tempos. O neoliberalismo não reconhece que a história continua se fazendo: afirma o “fim da história” porque não lhe interessa que ela mude.O segundo princípio é o da pedagogia como um guia na construção do sonho. O autor apresentou os “saberes necessários” para realizar o sonho, e ofereceu, em Pedagogia da autonomia, a mediação pedagógica para conquistá-lo. A pedagogia vê primeiro o futuro, um futuro melhor para todos, a utopia. Depois é que se volta para o presente e para o passado: este é o terceiro princípio. O último apresenta a pedagogia freiriana como dialógico-dialética. Não mecânica. A dialética continua válida desde que não exclua a subjetividade. Caso contrário, ela se transforma numa mecânica sem sentido que lembra a divina providência cristã. A dialética mecanicista é idealista e idealizadora da realidade.Certamente Paulo Freire defenderia a liberdade de quem, em praça pública, pedisse que sua pedagogia fosse retirada das escolas, pois ele defendia a liberdade de expressão. Mas ele distinguia diversas concepções de liberdade. Seu primeiro livro, publicado em 1967, tem por título Educação como prática da liberdade. A educação libertadora seria problematizadora da realidade opressiva, ao contrário da educação dogmática, sectária.As pedagogias clássicas também tratam desse tema, sobretudo do ponto de vista psicológico, opondo a liberdade do educando e a autoridade do educador. A pedagogia tradicional centrava a educação no educador, enquanto a nova pedagogia privilegia o educando. Paulo Freire centrou-se na relação entre os dois. Daí a importância que ele dava aos vínculos, à mediação pedagógica.Seu pensamento continua atual, pois ele trabalhou muito a formação crítica do educador e introduziu novas metodologias, novas formas de aprender e de ensinar, novos métodos de pesquisa. Devemos continuar estudando a sua obra, mas não para segui-lo como a um guru. Ele afirmou certa vez que não queria ser seguido, mas sim reinventado. Honrar um autor não é repeti-lo, mas sim estudá-lo e revê-lo criticamente, retomar seus temas, seus questionamentos diante das exigências colocadas pelo presente.Depois de Paulo Freire, certamente não se pode mais afirmar que a educação é neutra. Ele demonstrou sua importância na formação do povo sujeito, soberano. Não só convenceu inúmeras pessoas em tantas partes do mundo pelas suas teorias e práticas, mas também despertou nelas a capacidade de sonhar com uma realidade mais humana, menos feia e mais justa. Como legado, nos deixou a utopia.Moacir Gadotti é presidente de honra do Instituto Paulo Freire, professor aposentado da Universidade de São Paulo e autor de Convite à leitura de Paulo Freire (Scipione, 1989).Saiba MaisFREIRE, Paulo. A Importância do Ato de Ler. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1989.FREIRE, Paulo. Alfabetização: Leitura do Mundo, Leitura da Palavra. São Paulo: Paz e Terra, 2011.FREIRE, Paulo. Política e Educação. São Paulo: Cortez Editora, 7ª edição, 2003,Na internetAcervo Paulo Freire, memória e presença: www.acervo.paulofreire.org
Lições de utopia
Moacir Gadotti