Ligações e tudo o mais

Lia Jordão e José Augusto Gonçalves

  • Anúncio do “Lyncoln- Zelphir V-12 para 1942, cujo modelo alcança a perfeição, sendo o mais aristocrático dos automóveis”, uma das propagandas da lista telefônica paulistana. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)Quem circula pelos quilômetros de estantes da Divisão de Publicações Seriadas da Biblioteca Nacional encontra muito mais que jornais e revistas. Uma grande variedade de volumes, com estilos e formatos distintos, lota as prateleiras de um acervo que cresce exponencialmente na instituição. São anuários, boletins, almanaques, catálogos e outras publicações que têm em comum o fato de serem editadas em números seriados, em geral com intervalos regulares e por tempo indeterminado.
     
    Uma certamente se destaca como objeto já nostálgico para pessoas mais velhas (e nem tão velhas assim): as listas telefônicas. Um dia elas foram recurso de consulta fundamental, renovadas anualmente e presentes em toda casa que tivesse um telefone, em todo hotel, em muitos locais públicos. Hoje, servem como fonte interminável de informações históricas. 
     
    No meio das listas telefônicas de todos os cantos do país, publicadas em diferentes datas e incorporadas ao acervo da Biblioteca pelo cumprimento da Lei do Depósito Legal, está o Livro Vermelho dos Telefones – São Paulo.
     
    Criado em 1876 por Alexander Graham Bell e seu assistente Thomas Watson, o telefone revolucionou as comunicações. A invenção foi apresentada na Exposição do Centenário da Independência dos Estados Unidos, na qual esteve presente o imperador D. Pedro II. Sempre muito interessado em inovações, ele logo mandou instalar os primeiros telefones na Corte. Em 1882, foi regularizada a concessão para exploração comercial dos serviços. Surgia ali a necessidade de disponibilizar informações aos proprietários e usuários das linhas. Em 1884, a lista da Companhia de Telegraphos Urbanos, publicada pela Tipografia de Laemmert, já estava no volume 8º e continha exatos 714 assinantes. 
     
    À medida que o número de linhas crescia, e rapidamente, os catálogos requeriam novas atualizações. Em pouco tempo, havia mais de 5 mil assinaturas de telefones. Várias listas foram editadas ao longo do tempo, cada uma com suas peculiaridades. Em 1927 foi a vez do Livro Vermelho dos Telefones chegar às ruas de São Paulo. E fez sucesso, continuando a ser editado nos anos seguintes. A introdução de sua 15ª edição, em 1942, comemora: “O Livro (...) vem sendo, desde há 15 anos, o guia seguro e fiel da indústria e do comércio paulistas e tem acompanhado o progressivo e extraordinário desenvolvimento da atividade econômica de nossa terra, procurando aumentar pouco a pouco a esfera da eficiência, introduzindo-se em cada campo social. Pode-se dizer que o Livro (...) espelha fielmente a ascensão esplêndida das atividades econômicas paulistas e nisso sentimos grande e reconhecido orgulho”.
     
    De fato, o Livro Vermelho prometia ser mais que uma mera lista de assinantes. Vendido ao preço de 35$000 (trinta e cinco mil réis), mas também distribuído gratuitamente a embaixadas e representações brasileiras no exterior, em especial na Câmara do Comércio, a publicação visava alcançar um grande público, consumidores em potencial. Além da ampla lista nominal contendo proprietários e seus respectivos números telefônicos e endereços, era possível fazer a busca por profissões, serviços e ruas em um formato que lembra bastante as listas que se consagrariam posteriormente como “páginas amarelas”. 
     
    A capa de O livro vermelho dos telefones, São Paulo, 1942, 15º edição. O processo de elaboração da publicação era bastante demorado, requerendo um esforço coletivo. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)O Livro Vermelho tem de tudo: a relação de caixas postais, endereços telegráficos, todo o corpo consular em São Paulo, hospitais, calendário nacional, fusos horários de cidades estrangeiras, entre outras coisas. As paróquias e demais igrejas da cidade também estão disponíveis ali. Na edição de 1942, a Arquidiocese de São Paulo aproveitou para divulgar em anúncio de página inteira a realização do 4º Congresso Eucarístico Nacional, que reuniria milhares de católicos entre 4 e 7 de setembro.
    Convenientemente, a lista traz “telefones úteis”, como os dos bombeiros, polícia, “acidentes de animais” e – quase uma ironia nos dias de hoje – um número para reportar a falta d’água na cidade. Secou a torneira? Era só ligar para 4-8111. Para chamar a telefonista, bastava discar o “zero”. Em caso de problemas com os próprios serviços de telefonia, o número era 114.  E se um número não fosse encontrado na lista, era possível solicitá-lo pelo 113. 
     
    O livro oferece também uma seção que traz informações sobre as vias de comunicação entre São Paulo e outras localidades, listando os meios de transporte que faziam os trajetos e os preços das passagens. Quem folheia suas páginas fica sabendo que, para ir de São Paulo ao Distrito Federal, por exemplo, o viajante poderia optar pelo trem. Ele faria uma parada em Pouso Seco e seguiria em frente até o Rio de Janeiro. Pela primeira etapa, teria de pagar 377$500 e, pela segunda, 126$000. Outra opção seria ir de trem até Santos e completar o percurso por via marítima. Quem escolhesse esta alternativa iria desembolsar um total de 450$000.  
     
    Ainda mais impensável para os dias de hoje é a lista com todos os automóveis licenciados e em circulação de São Paulo, com suas respectivas placas, marcas e proprietários. Pois o Livro Vermelho de 1942 tem. O emplacamento de veículos foi instituído em 1900, quando o prefeito Antônio Prado regulamentou o uso dos carros em São Paulo, prevendo também o pagamento de imposto, prenúncio do atual IPVA. As placas, naquele tempo, eram vinculadas aos proprietários e não aos veículos. De acordo com a lista do Livro Vermelho, a placa nº 1 do município, que registrou o primeiro automóvel da família Matarazzo, permanecia entre seus parentes: era um Cadillac de propriedade de Francisco Matarazzo Jr. 
     
    Na mesma seção é possível consultar a tabela de multas da época. Dirigir sem licença custava caro: 100$000. A falta de buzina era menos grave: 20$000 de punição ao infrator. Entretanto, usá-la indevidamente gerava multa bem maior: 100$000. Beber e dirigir, felizmente, já era falta gravíssima na época, sujeita ao pagamento de 200$000, um dos maiores valores estabelecidos. E os enamorados que se cuidassem: 100$000 era o prejuízo por “permitir no veículo a prática de atos atentatórios à moral pública”. 
     
    Outra faceta interessante, fundamental para o Livro Vermelho, é a veiculação de propagandas em suas páginas. A própria publicação se qualificava como uma arena de “publicidade eficientíssima”. Afinal, lá se poderia encontrar todo tipo de produto e serviço, desde o jornal diário da grande metrópole ao armazém de um rincão afastado, no interior. 
     
    Alguns anunciantes são praticamente onipresentes: em um pequeno “tijolinho” que aparece a cada duas páginas, entre os assinantes listados, Domingos Leardi, “corretor de imóveis desde 1918”, atende pelo número 2-4788. A Cervejaria Rio Claro, notabilizada pela fabricação da Cerveja Caracu, também não poupa esforços, surgindo em repetidos reclames ao longo de toda a publicação. Da mesma forma, a cada duas ou três folhas desponta o antigo Laboratório Vegetal Catedral, produtor do Regulador Catedral (“seguro alívio das senhoras nos dias críticos do mês”), do Peitoral Catedral (para os problemas respiratórios) e do suplemento de “Cálcio Catedral”. Em anúncios de página inteira há vários destaques: empreendimentos imobiliários, empresas jornalísticas e itens de luxo, como o “Lyncoln-Zephir V-12 para 1942”, “o mais aristocrático dos automóveis”. 
     
    O organizador da publicação, V. Ancona Lopez, explica o processo de construção daquela imensa obra: “O Livro vermelho dos telefones não é feito em um dia. A preparação é muito cuidadosa e demorada e, caso haja algum erro, ligue para nós para fazer a correção”. O número para contato com o próprio Ancona, claro, também está lá: 2-0033. E para assinantes novos, que ainda não constam na lista, é disponibilizado um cupom destacável solicitando todo tipo de informação possível para que seus dados sejam incluídos na edição seguinte. 
     
    Obra viva, coletiva e essencial para o seu tempo, o Livro Vermelho é uma da muitas publicações vitimadas pela revolução das tecnologias de comunicação e armazenamento de dados. Seu destino seriam as traças, caso não fossem salvas pelas bibliotecas para alimentar a memória futura.