Com o olhar distante, uma empregada doméstica negra está polindo a prataria da casa de família onde trabalha. A imagem é da tela “Limpando metais”, do pintor Armando Vianna (1897-1992), que mostra uma cena da vida cotidiana. Mas não é só isso: o quadro, de 1923, levanta a questão do lugar da mulher negra na pintura e na sociedade brasileira.
Apesar de diminuto, esse tipo de produção artística foi estabelecido nas primeiras décadas depois da Abolição. Obras como a de Vianna deixam claras algumas das opções nada animadoras destas mulheres na sociedade: podiam desaparecer pela miscigenação, permanecer reclusas na periferia e nos morros ou aprisionar-se na cozinha, trabalhando sempre. Entre as telas do período, as mais conhecidas são “Engenho de mandioca” e “Redenção de Cã”, do espanhol Modesto Brocos (1852-1936); “Mulata quitandeira”, do italiano Antonio Ferrigno (c. 1893-1903); “Mãe negra”, de Lucílio de Albuquerque (1877-1939), e “Tarefa pesada”, do italiano Gustavo Dall’Ara (1865-1923).
No século XIX, os negros povoaram as obras dos pintores viajantes, como Rugendas (1802-1858), e estiveram presentes no trabalho de vários fotógrafos, a exemplo de Alberto Henschel e Christiano Jr., sendo raras as representações em pinturas a óleo. Entretanto, o final do século trouxe consigo a valorização da pintura de cenas de costumes, por vezes representadas em quadros de grandes formatos. Buscava-se atingir sentimentalmente o observador, comovendo-o diante da situação vivenciada pelos personagens, mas sem grande dramaticidade. Assim, a mulher negra poderia ser representada expressando seus sentimentos, não mais reduzida a elemento puramente exótico.
Essas telas eram, quase sempre, de autores estrangeiros. São quadros que se tornaram peças importantes na estratégia dos pintores para a conquista de premiações. A maioria delas fez parte dos Salões da Escola Nacional de Belas Artes e muitas acabaram sendo adquiridas pelo governo.
“Limpando metais” não fugiu a essa regra: foi pintado exclusivamente para concorrer ao prêmio da 31ª Exposição Geral da Escola Nacional de Belas Artes. O artista conseguiu a medalha de prata e não mais representou mulheres negras. Como neto de escrava alforriada, era de se esperar que Vianna desse continuidade a essa temática.
De origem humilde, Armando Vianna teve uma trajetória semelhante à de muitos outros jovens artistas brasileiros. Começou na oficina de pintura do pai, pintando placas, carrocinhas e charretes, aos 13 anos. Depois, cursou o Liceu de Artes e Ofício, estudando com Rodolpho Amoedo (1857-1941) e Rodolpho Chambelland (1879-1967). O trabalho artístico sempre foi o seu ganha-pão: pintava de tudo, de flores, paisagens e nus femininos a telas históricas e religiosas. Três anos depois de ter ficado em segundo lugar com “Limpando metais”, Vianna conquistou, finalmente, o almejado prêmio de uma viagem de estudos em Paris com “Primavera em flor”.
O quadro, que retrata cinco mulheres brancas bem vestidas, tomando chá ao ar livre, é bem diferente de “Limpando metais”. Executando uma tarefa doméstica, a negra ocupa quase a metade vertical da tela; no entanto, ela surge deslocada, espremida entre uma mesa repleta de objetos e o armário ao fundo. Ao mostrar com virtuosismo cristais e metais sobre a mesa em primeiro plano, o pintor faz o observador titubear entre o seu brilho e os reflexos do vidro do armário. É neste percurso que o olhar se fixa na face da empregada negra. Embora a roupa esteja iluminada e o rosto se situe no encontro de diagonais, a cor da pele, pintada propositalmente sem reflexos, não se destaca rapidamente na obra.
O pintor não só representa uma pessoa no papel de empregada doméstica, como procura mostrar sua individualidade, fazendo-a desviar-se da atenção ao trabalho para pensar, talvez, sobre sua própria existência. Neste sentido, o quadro lembra “Um bar no Folies-Bergère”, de 1882, do pintor francês Édouard Manet (1832-1883). Na tela, uma garçonete apoiada num balcão, de costas para um espelho, encara o espectador. Em contraste com o ambiente festivo de um café-concerto parisiense, seu aspecto é de desconforto, alienação e tristeza. Manet se preocupou com o íntimo de sua personagem, interrogando-se sobre seu estar no mundo, humanizando-a.
Confinada entre a mesa e o armário, a empregada negra de Armando Vianna também se aliena de seu entorno. Alguns elementos acentuam o diálogo entre as obras, como os reflexos azuis que estão em ambas as telas e as cores quentes – as laranjas em Manet e o tecido vermelho no quadro de Vianna. Ao aproximar-se da representação do pintor francês, o artista brasileiro dá à solidão da empregada negra uma dimensão universal.
No Brasil, uma obra que apresenta paralelo com “Limpando metais” é a célebre tela “A negra”, de Tarsila do Amaral (1886-1973). As duas entraram em cena no mesmo ano, 1923. Mas a obra da pintora modernista em pouco tempo ganhou fama. Produzida em Paris, “A negra” de Tarsila foi exibida com entusiasmo pelo importante artista francês Fernand Léger (1881-1955) aos seus alunos. Reproduzida na capa de um livro de poemas escrito por Blaise Cendrars (1887-1961), tornou-se rapidamente símbolo de ruptura absoluta. A obra reduz o corpo nu feminino a uma superfície plana, meio alaranjada, salientando tão somente suas características étnicas, incorporando à estética moderna um elemento de identidade nacional.
Anônima e monumental, “A negra” passou a ser referência obrigatória, um arquétipo. A partir dela, o modernismo brasileiro produziu um número expressivo de representações de negros e mestiços. “Limpando metais”, por sua vez, faz parte da produção artística brasileira ignorada pela crítica militante modernista que tanto celebrou o quadro de Tarsila do Amaral. Embora chamasse a atenção para um tema contemporâneo – a inserção do negro no mercado de trabalho –, a empregada doméstica de Vianna fora pintada à moda antiga e com um pessimismo pouco recomendável para os tempos modernos.
Felizmente, o quadro foi incorporado ao acervo do Museu Mariano Procópio, em Juiz de Fora (MG), em data ainda indeterminada, lá permanecendo à espera de novos olhares.
MARALIZ DE CASTRO VIEIRA CHRISTO É PROFESSORA DE HISTÓRIA DA ARTE DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA.
Saiba Mais - Bibliografia
CARNEIRO, José Maria. Armando Vianna: sua vida, sua obra. Rio de Janeiro: Arte Hoje, 1988.
CONDURU, Roberto. Arte afro-brasileira. Belo Horizonte: C/Arte, 2007.
HILL, Marcos. Quem são os mulatos? Sua imagem na pintura modernista brasileira entre 1916 e 1934. Belo Horizonte: EBA-UFMG, 2008.
Saiba Mais - Internet
CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira. “Algo além do moderno: a mulher negra na pintura brasileira no início do século XX”. 19&20, Rio de Janeiro, v. IV, nº 2, abr. 2009.
www.dezenovevinte.net/obras/obras_maraliz.htm
LIMA, Heloísa Pires. “A presença negra nas telas: visita às exposições do circuito da Academia Imperial de Belas Artes na década de 1880”. 19&20 – A revista eletrônica de DezenoveVinte. Volume III, nº 1, janeiro de 2008.
www.dezenovevinte.net/19e20/
Limpando metais
Maraliz de Castro Vieira Christo